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A Vagina do Picasso - Um conto nada intelectualA VAGINA DO PICASSO
(Um conto nada intelectual)
No momento do anúncio da morte de Fidel Castro, Deus e o Diabo estavam no purgatório. Calma. Eles não estavam esperando Fidel. Viram a notícia no grande telão que transmitia vinte e quatro horas por dia o reality show humano.
Se alguém perguntasse aos dois qual a lembrança mais marcante que tinham de Fidel, certamente contariam a mesma. Era outubro de 1962, e por treze dias consecutivos nenhum deles tirou os olhos dos dedos de John Kennedy Nem dos dedos de Nikita Kruschev. Medindo a distância que os dedos dos dois estavam dos botões.
Talvez, Fidel já tivesse chegado. E se tivesse quem era Fidel para não poder esperar um pouquinho antes das entrevistas. Que também durariam mais de sete horas.
Deus e o Diabo liam as últimas páginas do cronograma de um projeto que começou ali mesmo um ano e meio antes. Quando no mesmo telão, Deus viu um novo recorde ser batido. A obra “Les Femme d´Alger” (Mulheres de Argel) de Pablo Picasso, foi vendida em leilão por US$ 179,3 milhões.
A ideia de botar lenha na fogueira do reality show humano partiu de Deus. O Diabo apenas deu seu aval. Claro que sem seu aval a ideia não seguiria adiante. Deus perguntou o que aconteceria se Picasso aparece para uma entrevista coletiva, e dizer que viera buscar todo aquele dinheiro.
Primeiro o Diabo achou que Deus estivesse brincando. Depois viu aquilo sorriso de menino sapeca. Entendeu que era sério. E porque não um pouco de comédia num reality show repleto de tragédias?
O cronograma acabou atrasando. A culpa foi de Deus. Mais tarde ele admitiria a culpa por querer fazer tudo à moda dos humanos. A coisa deu tão errada que Deus e o Diabo conheceram o stress. E não gostaram da sensação.
No cara e coroa com uma moedinha que o Diabo pegou de souvenir do saquinho de Judas, deu coroa e ele ganhou. Sempre ganhava com ela. Deus sabia, mas não se importava.
Como vencedor, o Diabo escolheu a parte do vestuário que Picasso usaria. Deus ficou com as hospedagens. Foi aí que os problemas começaram. Na Europa as compras do emissário do Diabo esbarravam sempre na emissão da nota fiscal.
O Diabo não tinha, e o emissário nem sabia o que eram documentos. Nas duas vezes que mencionou o nome de Picasso a polícia foi chamada. Sem outra saída, o Diabo deu duas alternativas e deixou o seu emissário escolher. Brasil ou China. O mês era janeiro. Verão de rachar no hemisfério sul. Na China certamente não haveriam chinesas de biquínis.
Seu prazo para voltar ao inferno era de cinco dias. Nunca mais aquele emissário compraria dez ternos tão rápido. Quem perguntou pela emissão da nota fiscal foi ele. Ouviu a vendedora meio sem graça responder:
— Só se o cliente exigir.
Depois de cinco dias passeando pelas praias, pegando um bronzeado de sol e não de fogo, o emissário voltou feliz ao inferno.
E não deixou o Diabo feliz. Não foi apenas no inferno. Quando descobriu que os ternos comprados não eram Versace originais, os gritos do Diabo praguejando foram ouvidos também no céu e no purgatório.
No contrato assinado dizia que Picasso podia escolher o local onde daria a entrevista. Não escolheu a Espanha, e Deus não entendia a sedução que o glamour de Paris despertava nas pessoas. Mesmo nas mortas.
Deus ligou para o primeiro hotel de se identificou como... Deus, é claro. A resposta foi um tum, tum, tum. Com o segundo hotel aconteceu o mesmo. Chamou um de seus assistentes e pediu que descobrisse o que significava aquele tum, tum, tum. Não demorou muito e o assistente voltou.
— Eles chamam isso de desligar na cara.
Então Deus mudou de tática. Quando atendiam Deus perguntava quem estava falando e se acreditava nele. Todos acreditavam. Oba! Deus pensava e se apresentava. O tum, tum, voltava. Isso quando Deus não ouvia coisa muito pior. Desistiu, admitindo estar errado, pensando que lidar com humanos era fácil.
Não era. Mesmo depois de uma agência de eventos humana ser contratada problemas aconteceram. O que era segredo foi vendido por um funcionário. O jornal sensacionalista publicou que Picasso voltaria. As redes sociais entraram em parafuso.
Claro que entre os intelectuais a notícia não foi compartilhada, mas todos deram um jeitinho de espiar. Aquilo era lugar de imbecis e eles não se misturavam. Tudo mudou quando nas cinco emissoras de TVs com direitos exclusivos de transmissão do evento, as chamadas com Picasso falando começaram aparecer.
Na última hora Deus e o Diabo ainda tiveram de contornar a vontade de Picasso desistir daquilo tudo. Aconteceu quanto ele ficou sabendo dos acontecimentos no mundo a partir da sua morte em 1973. Foi convencido pelo Diabo que disse:
— Você foi humano. Eles são assim mesmo.
E nunca antes na História do mundo, viu-se uma corrida tão grande de intelectuais atrás dos trezentos ingressos ao preço de 25 mil euros cada um. Trinta deles com direito a uma pergunta custavam o dobro. Esgotaram em menos de dez dias.
E Deus pensou: “Quantos ingressos seriam vendidos se fosse eu”? O Diabo não.
O agente brasileiro pediu treze ingressos. Teve de se contentar com sete. Vendeu três. Com os outros quatro resolveu ganhar dinheiro. Contratou um ladrão para roubá-los. Nas mãos de cambistas europeus eles foram vendidos com ágio de 150%. É a lei da procura e oferta. Que os políticos brasileiros aprenderam com a corrupção e estavam ensinando.
Um dos ingressos foi comprado por um político. Que viu oportunidade de lavar dinheiro desviado. Um imortal da academia sem nenhuma obra publicada comprou o segundo.
O terceiro teria causos para contar. Pediu um adiantamento pelo livro que escreveria no primeiro semestre de 2017. Foi negado. Suas obras anteriores estavam encalhadas nas livrarias. Sem saída recorreu a um político amigo de copo e de ideologia. O político tinha um amigo dono de empreiteira. O resto do causo...
O alvoroço do dia da Queda da Bastilha, era fichinha perto do que Paris vivia naquela quinta-feira, 15 de dezembro. Com uma diferença. Ninguém perdeu literalmente a cabeça.
Ali estava Picasso olhando para aquelas 299 pessoas. Alguns suavam apesar de fazer frio. Pareciam hipnotizadas e dispostas a aceitar qualquer sacrifício. Depois confessaria a Deus que fizeram ele sentir-se um deus. Deus entendeu e perdoou. Picasso não foi o primeiro e nem seria o último com aquela sensação.
Antes das perguntas Picasso deu uma declaração. Daria outro destino ao dinheiro arrecadado pela sua obra que bateu recorde. Isso não era tudo. Da renda daquele evento, 50% iriam para ajuda humanitária. Essa declaração fez com que muitos celulares de advogados tocassem. Nenhum deles assistiria o resto da entrevista.
Previsto para durar três horas, o evento acabou em quarenta e cinco minutos. Das trinta perguntas possíveis, vinte e três acabaram desperdiçadas. Todos foram alertados antes. Picasso não responderia nada sobre de onde veio. De como era, e etc.
Só que a teimosia e a curiosidade humana venceriam outra vez. A cada pergunta não respondida Picasso pensava: “Quem deveria estar perguntando era eu”.
O nível intelectual do evento seria avaliado dias depois com a escolha da melhor pergunta feita a Picasso. Justamente a última.
— O que o senhor quis representar quando pintou sua obra mais famosa?
— Aquela ali? — Picasso perguntou apontando para uma enorme gravura na parede atrás de si.
— Sim.
Picasso pensou alguns instantes e respondeu:
A buc... A vagina da mulher com quem transei um dia antes.
Houve um silêncio mortal. Muitos diriam depois, que puderam ouvir o anjo da morte respirando. De que todos olharam para a porta de entrada ninguém tinha dúvidas.
O intelectual brasileiro, amigo do político que era amigo do dono de empreiteira chegou atrasado. Esteve numa balada na noite anterior. Mais tarde diria ainda estar de porre. Era mentira. Ouviu apenas a última pergunta e a última resposta. E começou gritar:
— Gênio! Gênio! Gênio!
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