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AZUL — A última colina!
Agora você deu para adivinhar, Set? Nossos instrumentos estão loucos com esta radiação absurda.
— Eu sei o que estou dizendo. E isto basta...
Ele sabia.
Não havia como duvidar de Set quando ele partia para afirmações incisivas. Elas eram sinais de tempestades na alma indecifrável de nosso navegador. Varias vezes esta habilidade havia tirado nossa nave ou mesmo nossa equipe em missões de terra, de grandes apuros.
Após a última colina — fim de urna quase interminável sucessão de elevações — estávamos frente a frente com o que parecia ser um núcleo de vida em Solius 3. Era espantoso ver aquela espécie de oásis em meio a um inferno radioativo como há muito tempo não encontrávamos
Mesmo na nave, nossos instrumentos haviam enlouquecido. Pensamos que fosse um sistema de defesa, mas era apenas efeito da destruição radioativa que havia caído sobre aquele antes belo planeta.
— Este planeta foi catalogado como um dos mais propícios à vida e já recebeu colônias no inicio de nossa expansão espacial.
— Sabemos disso, Rama - argumentei - mas não é isto que estamos vendo. Está tudo tão ... vazio.
— Tomara que nem todos os dados estejam incorretos. Na última visita feita por nosso povo, quando foi criada uma colônia aqui em Solius 3, os nativos eram rudimentares, mas pacíficos — e queriam aprender.
Rama fazia uma pesquisa histórica sobre os planetas da Rota Branca, caminho utilizado por nossos antepassados para colonizar a galáxia. Seu ar sempre jovial a tornava uma menina entre velhos senhores carrancudos. Eu inclusive.
Na verdade, eu nem era tão velho assim. Apenas me tornei um observador — silencioso e normalmente sem brilho. Fui escalado, acredito, por meus conhecimentos sobre sistemas como o de Solius, mas, tenho certeza , não por ser alguém especial.
O mesmo, tenho a impressão, acontecia com nosso comandante, um oficial estelar que sempre teve uma vida neutra — em semitons. Em toda a nossa exploração de Solius 3, Set era quem nos guiava e, realmente, comandava o grupo. O capitão Artol permanecia evasivo e desinteressado. Nem mesmo a ausência de tudo o que nossos antepassados presenciaram há poucos mil anos parecia incomodá-lo.
— Vazio...
— O que foi, comandante?
— Nada não, Rama... Diga, o que você acha que existe naquele povoado?
— Se é que se trata realmente de um povoado... Espero que haja vida!
— Já estou cansada deste deserto radioativo!
— Então imagine o que devem pensar os moradores daqui...
O portal do povoado estava escancarado. Tremi quando a voz de Set ecoou sem resposta por um tempo terrivelmente longo. Parecia que estávamos em uma caixa de milhares de lados, onde o mínimo som ecoava como um trovão. Nossos passos pela cidadela não pareciam de apenas quatro pessoas — era como se um exército entrasse furiosamente no local.
Aparentemente, não havia o menor sentido para aqueles prédios enormes e desabitados. Todos em um tom amarelado, resultado da poeira do deserto.
A chegada àquele lugar vazio havia mexido um pouco com cada um de nós. O comandante, quebrando nossas normas de segurança, abaixou-se para tocar o solo. Com aquela forte radiação, até nossos trajes poderiam não resistir ao contato com o solo.
O deserto que percorremos desde o ponto de desembarque penetrava aquilo que deveria ter sido um povoado. Solius 3, então, estava realmente morto...
— O que foi, Set?
— Eu senti vida! Foi o que me guiou até aqui. Não pode estar tudo morto.
Saindo completamente de sua calma habitual, o comandante Artol pegou um pouco daquela poeira radioativa — que deveria ter abrigado um imenso jardim em outras eras — e atirou sobre Set.
— Quer prova maior do que esta, navegador? O que poderia resistir a uma radiação como esta?
— Almas!
— Conversa! Você perdeu a sanidade!
— E você parece que perdeu o controle, Artol ...
O já velho Artol, famoso por sua aparente apatia, havia, finalmente, perdido a calma. Agora estava atônito.
— Acho que este deserto me enerva...
— A todos nós, comandante — disse Rama, tentando esfriar os ânimos — mas temos que cumprir os procedimentos.
— Tem razão! Vamos investigar.
Cada um partiu para sua busca particular. Rama procurava indícios históricos, documentos de qualquer espécie. Eu fazia um paralelo entre aquele mundo antes verde e vivo com sua morte radioativa. O comandante queria respostas para algumas perguntas íntimas, que não se atrevia a revelar.
Set observava.
Permaneceu parado no centro do povoado, sentindo os sinais, como gostava de definir seus momentos de ausência.
— Quem são vocês?
De onde eu estava, Set parecia falar sozinho.., mas ele sempre viu e sentiu mais do que nós.
— O que houve com seu mundo?
— Morte ... Tudo corroído ... Cascas vazias ... Ecos ...
— Há quanto tempo?
— Já não sabemos. Não estamos mais no seu plano de existência. Agora somos como ventos. ..
— Pelos deuses! Solius 3 era um dos mundos mais cheios de vida neste lado da galáxia!
— O que é Solius 3?
— É como chamamos seu planeta. — Por que vocês me chamaram?
— Queremos reconstruir nossas vidas, nossa espécie. Aqui ou em outro lugar qualquer.
— Mas vocês são espíritos...
— Precisamos de corpos. Dois, apenas ... É o suficiente para que nossa espécie, nossas memórias e a história de nosso povo sobrevivam. Mas vocês têm que concordar com isso. Não queremos, nem podemos, tomar seus corpos.
Set parou sua conversa insólita com os espectros do povoado. Olhou para o céu sem nuvens e abriu os braços.
Rama chegou desolada.
— Há tão poucos vestígios! Os prédios estão vazios. Quase tudo que não era concreto virou pó.
Set permanecia calado e contemplativo. A noite caía como uma cortina de estrelas. Um manto de mistérios, cada vez mais desconhecidos.
Eu estava exausto. Não demorei muito a dormir. O comandante deixou Set como guarda e também adormeceu.
A noite, como um rio, nos levava para longe...
— Rama, eles precisam de nós.
— Eles quem, Set?
— Os habitantes de Solius 3. Seus espíritos precisam de corpos para continuar a evolução.
— Não há mais nada aqui, Set. É loucura! A radiação deve ter afetado os seus miolos.
— Não, não! É verdade. São espíritos que precisam encarnar.
— E nossos espíritos. Onde ficarão? Vamos perambular neste planeta morto?
— Não! Podemos voltar para nosso planeta, encarnar em algum novo ser. Talvez até mesmo nos filhos que eles terão. Viver tudo, cada momento de nossas vidas de novo. Imagine só!
— Pelos deuses!
— É só você querer, Rama. Uma aventura em outra vida.
— E deixar de lado meu corpo...
Acordei sobressaltado, emergindo de um sonho estranho. Olhei para o lado e vi uma luz envolvendo Rama e Set. Eles tinham as mãos dadas e estavam em silêncio.
Não entendi. Pensei que o sonho ainda me dominava e lutei para acordar. Set falou de um jeito estranho.
— Está completo.
— Um corpo! Deus, que sensação maravilhosa!
— Rama. Este agora é o seu nome... — Você é Set... São mais bonitos que nossos antigos nomes.
— Vamos recomeçar em outro lugar, até podermos voltar a este deserto que já foi nossa casa.
— Será uma longa viagem.
— Muito obrigado! Vocês dois nos devolveram a vida.
Agora Set falava novamente com o nada, no mesmo tom estranho.
— Estaremos juntos de você. A vida fora do corpo é... estranha ...
— Ver outra mulher no meu corpo tão ...
— Absurdo!
— É! Um fascinante absurdo...
Na nave, em nossa saída de órbita, Set e Rama continuavam estranhos. Convenci-me de que não havia sonhado. Algo que eu não entendia acontecera naquela noite.
Olhando pelas escotilhas, os dois conversavam, abraçados como velhos namorados — coisa que nunca haviam feito.
— Agora podemos ter filhos, Set.
— É. Pelo menos dois, para abrigarem nossos amigos — que nos emprestaram os corpos e os nomes.
Ficaram em silêncio por alguns instantes, como se buscassem palavras.
— Tão bonito! Um planeta assim, cercado de estrelas ...
— Nossa velha casa, Rama, que estamos deixando ...
— E que, apesar de tudo, ainda é Azul!
(Parte do livro "Viajante Noturno", de William Mendonça, disponível para download gratuito no site. Direitos reservados.)
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