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OKADA

Bastou uma rápida olhada para suas próprias mãos, para que Okada notasse a transformação começando.
- Não! Outra vez, não!
Olhou em volta e percebeu que o momento não podia ser pior – em plena Avenida Central, cercado de gente por todos os lados. E dessa vez, tudo estava acontecendo muito rápido – um turbilhão de pensamentos e informações desconexas tomou conta de sua mente.
Logo, dezenas de pessoas estavam à sua volta, com olhares horrorizados, tentando compreender a cena. Okada pensou em correr, e chegou a caminhar em direção ao prédio da Biblioteca, onde trabalhava, mas os passos não obedeciam seu comando.
Quando caiu no asfalto da avenida, Okada já não estava mais no controle de si mesmo.


- Okada! Okada! Pode me ouvir?
Ele podia, mas a confusão mental não ajudava muito. Quanto tempo havia passado? Okada abriu os olhos e a luz de uma tocha, criando sombras bailarinas nas paredes, pareceu uma alucinação.
Os grandes olhos negros da jovem que estava de pé, ao seu lado, repentinamente tomaram conta da paisagem.
- Okada!
- Desculpe ... é que ainda estou meio confuso ...
- Não há problema ...
- Quanto tempo faz que ...?
- Doze dias, desde o incidente – mas não se preocupe, tudo foi contornado. – A voz da jovem era suave e transmitia confiança. Okada ergueu as mãos e constatou que a forma humana havia voltado. As pernas também deram sinal de vida. Talvez pudesse levantar. Quando tentou se erguer, uma tontura terrível tomou conta de sua cabeça. Tudo rodava.
- Não tente se levantar ainda. Seu corpo está sofrendo os efeitos da transformação, e não deve responder de forma eficiente aos estímulos.
- Mais doze dias na cama?
- Não, não – só mais algumas horas. – disse a jovem, abrindo um sorriso.


Nesse tempo, Okada soube dos transtornos que sua inesperada transformação causou à comunidade e, é claro, à imprensa – um flagelo da humanidade que Okada e seus semelhantes não compreendiam muito bem.
A notícia de que um pacato funcionário da Biblioteca Pública de São Paulo tinha sofrido uma estranha mutação, transformando-se em uma besta mitológica que foi classificada como uma espécie de dragão, foi manchete de jornais, rádios, televisões. Por sorte, nenhum fotógrafo ou cinegrafista amador conseguiu flagrar a mutação, antes que a equipe de resgate, liderada pela geneticistas Lílian Woods, colocasse o estranho ser, ainda desacordado e em fase de transformação, em um lugar seguro.
Estavam agora a centenas de quilômetros da metrópole onde tudo tinha acontecido. Como não houve fotos ou filmagem, o episódio foi tomado como mais um degrau na histeria urbana. Okada foi levado para uma cabana, na Chapada dos Guimarães, em Goiás – onde boa parte dos remanescentes da colônia encontrara abrigo. A própria Lílian Woods, uma das colaboradoras humanas da comunidade, cuidara de Okada nos últimos dias.
Refeito, ele caminhou até a entrada da cabana, apoiado por Lílian, e pôde rever a paisagem deslumbrante da Chapada – uma vastidão verde no coração da América do Sul
- Sabe, não venho aqui desde a infância. É bom rever o lugar onde nascemos ...
- Um lugar lindo! – disse Lílian, com os olhos brilhando.
O tempo, para as duas espécies, era muito diferente. Os humanos, mesmo com a utilização das ervas do local, viviam algumas dezenas de anos, já os Dragões – como acabaram sendo chamados – mediam seu tempo às centenas. Chegaram ali, naquele lugar, mais de três mil anos antes – e alguns dos viajantes originais ainda estavam vivos, comandando os destinos da comunidade.
Okada já fazia parte da terceira geração. Nascera na Chapada, há quase oitocentos anos – muito antes da civilização humana a que Lílian pertence tocasse aquelas terras. Em sua infância, Okada pôde viver como um dragão, sem riscos, pois o lugar era seguro. Hoje, assumir sua forma original seria assinar uma sentença de morte – como ocorreu em outros pontos do mundo, ao longo dos últimos séculos.
Poucos humanos eram receptivos. Lílian Woods também nascera ali, na Chapada, filha de pesquisadores ingleses, que buscavam a origem mitológica dos dragões. Na Chapada, James e Marsha Woods confirmaram suas teorias, com um dado a mais – os dragões não eram naturais da Terra ou guardiões das coisas de deuses ou demônios – eram uma espécie alienígena, que partiu de seu planeta para colonizar uma lua desabitada, mas que acabou na Terra, já povoada por uma espécie inteligente, porém decididamente hostil.


- Não entendo porque é tão difícil que nossas espécies convivam sem conflitos – disse Lílian, enquanto catava folhas na varanda.
Okada, observando o cenário majestoso da Chapada, pensou por alguns instantes. Ele mesmo sonhara em ver as espécies reunidas, e seu trabalho junto aos humanos, em quatro “vidas” humanas diferentes, fez com que entendesse melhor aquela gente.
- Às vezes penso assim ... Mas sempre lembro dos versos do mestre japonês de quem herdei o nome.
- Taoshi Okada, já li muitos dos poemas que ele escreveu ...
- Certa vez, mestre Okada teve um embate intelectual com um de nós, cada um de um lado de um lago. Quem vencesse, atravessaria o lago primeiro. O mestre disse:
“Água clara, vejo
do homem, reflexo em dragão;
dragão, vejo o homem”.
- E ele venceu o desafio ...
- Porque viu no reflexo do homem a natureza da fera, e no reflexo do dragão a civilização. O dragão dessa história era o meu pai, que prometeu honrar o poeta com o nome de seu filho.
Lílian deu-se conta de que Okada, mesmo sendo jovem para um dragão, tinha centenas de anos de experiência, várias vidas entre as pessoas, coisas que para ela eram impensáveis. Aquele jovem, de traços orientais, era como o velho mestre de quem herdara o nome – maduro e ponderado.
Depois da transformação traumática que tinha passado, Okada teria mais 40 ou 50 anos de vida naquela forma humana, uma vida normal humana – com seu envelhecimento, o trabalho, a rotina. Em dado momento, deveria recolher-se à comunidade para uma nova transformação. Seriam ainda dezenas delas até a morte definitiva de Okada, o dragão.


- Não sei o que houve de errado desta vez, Lílian. Talvez eu esteja doente. Eu deveria ter pressentido a hora da transformação, e com grande antecedência. Sempre foi assim, mas nas duas últimas vezes aconteceu de surpresa – comentou Okada, ainda preocupado com as circunstâncias em que ocorrera sua metamorfose.
Lílian Woods não respondeu de pronto. Ela mesma não tinha certeza sobre o que acontecera com Okada. Relatos como o dele não eram incomuns, e geralmente ocorriam quando o metabolismo do dragão já estava desgastado com a série de metamorfoses. Nesses casos, a morte estava próxima, e o membro da comunidade escolhia o seu destino – viver como um dragão, ou cumprir seus últimos anos na forma humana.
Okada ainda era jovem, e seu metabolismo não deveria estar ressentido com as transformações. A médica – que, para os padrões humanos, poderia ser chamada de bruxa, pelo uso que fazia de uma série de poções milenares herdadas da tradição dos dragões – fizera alguns exames e utilizou seu laboratório, em São Paulo, para analisar o caso.
- Acho que seria bom para você ficar um pouco aqui, na comunidade, para recuperar as energias, entrar em contato com a natureza novamente. A vida urbana é quase intolerável ... – comentou Lílian.
A alguns metros ao longe, os dois avistaram um grupo que seguia a trilha discreta, entre o verde da paisagem. Eram três pessoas, que pareciam não ter pressa, observando o caminho.
- Temos visitas! – Lílian levantou-se e apressou-se em pôr um bule com água no fogo, para um infalível chá. “Bebida de dragão”, pensou, lembrando o uso constante que a espécie fazia do líquido para equilibrar suas energias.
Okada, que estava se recuperando bem, lutava apenas contra um torpor ocasional e dores nas pernas. Levantou-se e olhou as figuras que cresciam no horizonte. Logo percebeu um rosto familiar.
- Zammerlin! Meu irmão!
Ainda longe, o ancião que caminhava com certa dificuldade, percebeu a euforia de Okada. Nesta atual passagem pela forma humana, os dois irmãos pouco tinham se falado. Zammerlin, apesar de mais novo como dragão, ainda teria mais alguns anos naquela forma humana, que já passava dos 60 anos. O paradoxo do irmão mais novo que, na verdade, parecia avô do mais velho, ocorriam de tempos em tempos, mas sempre causava estranheza.
- Vai com calma, Okada! Você tem que parar de dar trabalho pra gente! – disse Zammerlin, quando já estava mais perto.
- Pensei que a família não me conhecesse mais. Duas semanas aqui e ninguém veio me ver! – devolveu Okada, no jogo de ironia que era quase um passatempo entre a comunidade.
- Ora, não reclame ... Você está jovem, com uma bela moça cuidando das suas asas, enquanto eu fico carregando essa massa velha de ossos aqui!
Lílian, na porta da cabana, riu do encontro. Conhecia muito bem Zammerlin, que fora seu mestre na medicina dos dragões, e era um grande amigo de seus pais. Há mais de quinhentos anos, o irmão mais novo de Okada vivia naquelas terras, pesquisando plantas, escrevendo livros de fitoterapia e botânica – um velho sábio para os humanos, mas um jovem cientista para sua espécie.
Com ele vinham Aratê, um índio goiano que em toda a sua vida foi guardião do segredo dos dragões em sua tribo, e Henriete, líder espiritual da comunidade – uma das poucas remanescentes do grupo que chegou à Terra milênios antes. Seu aspecto era de uma jovem senhora, com menos de quarenta anos. Ela sim estivera algumas vezes na cabana, quando Okada estava inconsciente.


Quando Okada e Zammerlin se abraçaram, foi como se o tempo parasse. Seres que se acostumaram a viver sob outra forma, para viver naquele planeta, por um instante pareciam ter recuperado o brilho mítico dos dragões – seu poder sobre o fogo e os ventos, as asas que permitiam viajar por continentes, a sabedoria avassaladora que tornava tudo simples, como um grão de arroz.
- Eu te invejo, irmão! Com este corpo de vinte anos, eu estaria escalando o paredão da Chapada, e não arrastando a cauda pelo caminho.
- No mês passado eu parecia um daqueles mestres japoneses de karatê, dos filmes, a barba longa, rugas em todo o rosto ... respondeu Okada, na mesma medida.
- Fiquei preocupado, Okada ...
- Agora está tudo bem!
- Você lembra de Saíma Henriete, não é?
- Claro! – Okada apressou-se em fazer a reverência que cabia na ocasião, afinal era uma visita ilustre – Grato pela visita, Saíma!
- Vejo que você está realmente melhor. O fogo dos deuses voltou aos seus olhos. A doutora Lílian fez um ótimo trabalho! – todos concordaram. – Este é Aratê, guardião do segredo!
- Fique à vontade, guardião. Venham! O chá é para todos.
Na cabana, o tempo passou como o tempo dos dragões. Horas de animada conversa pareciam minutos. Histórias de tantas existências que não se podia contar foram abertas sobre a mesa. A mistura de ervas nativas do chá deu à cabana um aroma suave, como uma brisa no fim da tarde, trazendo a chuva.
Okada soube que seu irmão mais novo, nascido em terras dinamarquesas – mas que em seus primeiros anos mudou-se para a Chapada numa migração forçada pela caçada aos dragões na Europa – tinha descoberto que o efeito da poluição nas grandes cidades sobre a sua espécie podia se tornar devastador, nos próximos anos.
- É pior do que uma caçada! Será a morte de muitos, de quem não quiser voltar aos lugares de poder.
- Tão sério assim? – perguntou Okada, pensativo.
- Essa parafernália de gases tóxicos, produtos químicos, lixo industrial e tudo mais, enlouquece o nosso metabolismo. Vai nos matar antes de matá-los! Tenho pesquisado e recolhido ervas e cristais por aqui. Outros fazem o mesmo trabalho na Europa, na Ásia, em todos os lugares. O diagnóstico é sempre o mesmo – disse Zammerlin, sem esconder que o assunto era grave.
- E quanto tempo até esses efeitos? – perguntou Lílian.
- Arrisco a dizer que em uma geração humana. Mesmo na forma humana, não poderemos viver nas grandes cidades. E vamos precisar proteger refúgios, como a Chapada, a todo o custo, para não termos que fugir deste planeta – sabe-se lá como!
O momento de silêncio que se seguiu deu a exata medida da apreensão de todos. Aratê entoou uma oração indígena ao deus do fogo, enquanto a última rodada de chá era servida.
Saíma Henrite levantou-se, decretando o fim da visita. Em momento nenhum deixou de parecer preocupada, e fez questão de alertar Okada.
- Continue aqui se recuperando. Não há pressa para que você volte à civilização humana. Outro de nós já assumiu suas pesquisas. Descanse, até segunda ordem.
- Sim, Saíma!
Nas despedidas, Zammerlin chorou. Raramente os dragões choravam, e Okada notou que seu irmão, mesmo depois do reencontro, estava triste.
- Vamos nos ver de novo, Zammerlin. Vou ficar aqui um bom tempo, eu acho.
- Sei que vai, irmão.
No abraço, a noite já se fazia notar, com o brilho de vaga-lumes entre a vegetação. Estranhamente, Zammerlin parecia mais velho do que quando chegou, e a visita terminou em tom de melancolia, não de festa ...


Nos três dias seguintes, Okada se readaptou perfeitamente ao corpo humano, semelhante aos que já havia possuído por tantas vezes. A vida simples na cabana e a companhia agradável de Lílian levaram para muito longe as preocupações urbanas, no longo tempo em que trabalhou como arquivista entre os humanos.
Quando acordou, naquela manhã, o sol mal tinha se erguido no horizonte. Foi até a varanda e procurou sinais de civilização. Não havia qualquer construção na vastidão verde e a cabana quase se perdia, em tanta beleza. Somente a trilhas que levava até a cidade mais próxima podia ser distinguida na paisagem.
Okada não conseguiu deixar de pensar em quanto tempo passou recolhendo informações sobre a civilização humana, ajudando outros de sua espécie a se adaptarem, que quase perdera a identidade com seu lugar, e deixara de lado sua paixão pela mineralogia. Talvez agora fosse a sua vez de recuperar o tempo perdido ...
Estava tão mergulhado nos próprios pensamentos, que não percebeu que alguém chegava pela trilha, a passos apressados. Quando notou, Aratê estava bem próximo à cabana, com uma expressão cansada, como se a caminhada estivesse além de suas forças. Okada foi cordial ao recebê-lo.
- Aratê, guardião do segredo!
- Mestre Okada, bom dia! – fez uma reverência, apressado – Desculpe a hora, mas recebemos à noite uma entrega para a doutora Lílian, que parecia urgente.
Lílian apareceu na porta da cabana, alertada pela visita de Aratê. Por um momento, Okada pareceu ver nela uma figura lendária – um pássaro de olhos brilhantes e asas longas, branco, tomando conta dos mistérios da Chapada. A beleza natural da médica, que sempre parecia parte daquela paisagem exuberante, fez com que Okada se perdesse em pensamentos.


No tempo mais lento dos dragões, Okada fazia de um simples minuto uma pequena eternidade, repleta de histórias que viu e ouviu por tantos anos. Lembrou-se de dragões, em tempos longínquos, que preferiram assumir definitivamente a forma humana, e a morte rápida que isso representava, para viver uma paixão com alguém da outra espécie.
Nunca esse desejo passara pela sua cabeça. Okada era prático, e sempre vivera para o estudo. Nos curtos períodos em que voltava à forma original, vivera namoros intensos que, no entanto, não resultaram em filhos. A vida errante que levava não permitia que criasse afeições muito profundas. Na forma humana, os namoros também eram rápidos – mas, então, sem chance de procriar, pois a mutação deixava-o temporariamente estéril. Somente a opção definitiva pela forma humana permitiria uma vida humana plena e fértil.
Okada congelou aquele momento, como se a vida pudesse parar. Notou os traços indígenas de Aratê, que dominaram aquelas terras por centenas de anos, antes da chegada dos conquistadores europeus. “Pena que nem todos os povos nos aceitem como o dele”, pensou. Em todo o tempo dos dragões na Chapada e em outros pontos do país, sempre houve apoio dos índios e a troca de informações médicas entre os povos. O guardião do segredo conhecia a língua dos dragões, entendia sua escrita e transmitia o conhecimento aos demais. Era um posto honrado que Aratê recebera de um ancestral.
Num rápido movimento, que ninguém poderia perceber, Okada aproximou-se de Lílian e notou quanta admiração nutria por aquela jovem, que salvara sua vida e o segredo da espécie. Vários dias de cuidados, sem um momento de desânimo ou tristeza – ela não cobrara de Okada qualquer coisa em troca. “Esses olhos podiam ser minha última visão na vida, e a vida já valeria à pena”, pensou.


- Bom dia, doutora! – a voz de Aratê tirou Okada do seu mar de pensamentos – Essa entrega chegou ontem à noite de São Paulo. Parece urgente!
- Obrigado, Aratê! – Lílian pegou a caixa e hesitou alguns instantes. A tradição mandava que ela oferecesse um chá ao visitante, mas o próprio Aratê pôs-se apressadamente no caminho de volta, despedindo-se com um aceno.
- Okada notou o logotipo do laboratório Woods, o mesmo que estava nos blocos onde Lílian fazia anotações. “Meus exames”, pensou.
A médica ainda olhou o horizonte, distinguindo as novas cores da manhã. Quem vivia ali aprendia logo cedo o quanto observar a vastidão verde acalmava o espírito.
- Devem ser os resultados dos seus exames, Okada – disse ela, sem entrar em detalhes. Colocou a caixa sobre a mesa e foi preparar um chá. Okada tentou controlar a ansiedade, e evitou questionar o porquê da demora em abrir a caixa.
O chá pareceu mais lento que o habitual. Lílian estava pensativa, segurando a xícara sem pressa em beber.
- Estou com uma dúvida incomodando, que não me deixa ficar tranqüila – disse a médica, quebrando o silêncio que já parecia longo demais.
- Já sei, não sabe quando vai abrir o pacote! – falou Okada, afoito ...
- Não, não ... Qualquer que seja o resultado não fará diferença.
- E o que é, então?
- É que desde criança eu ouvi histórias sobre as restrições no relacionamento entre nós e os dragões. Minha mãe dizia que, talvez, fosse melhor não saber que a pessoa de quem se gosta é um dragão ...
Parou alguns instantes e saboreou lentamente mais um gole de chá. Aquele olhar que acordara Okada para essa nova vida parecia ainda mais brilhante.
- Eu não entendia bem do que ela estava falando até encontrar você – disse Lílian, tentando escolher as palavras. – Mas, agora, eu queria ter vivido ao seu lado todas as centenas de anos que você viveu ou, pelo menos, viver os anos da vida que ainda terei.
Ela ergueu os olhos, e Okada não sabia o que dizer. Sentia o mesmo, e Lílian não saía mais de seus sonhos, de seus pensamentos.
- Se eu não soubesse quem você é, poderia viver ao seu lado até a minha morte, e um dia você voltaria à forma original, e seguiria seu tempo ... Mas meu coração não conseguiu evitar.
- O meu também não! – Okada tomou as mãos de Lílian, que já não segurava o choro. – Eu trocaria tudo o que tive até agora, as vidas e viagens, tudo, por ficar com você o tempo que me resta. Eu nunca amei na vida, nem pensei que fosse possível, mas você ...


Em mais um momento, o tempo pareceu parar, como o tempo dos dragões. A pequena cabana no meio do verde transformou-se, como que por encanto, no único centro de vida em toda a Galáxia. O primeiro beijo parou o universo, com a força de uma nova dimensão surgindo naquele pequeno planeta.
Dentro de Okada, a natureza apaixonada dos dragões explodiu, revelando cores e sons que nunca vira antes. Repentinamente, um vento morno invadiu a cabana e fez a vegetação em volta transformar-se em um turbilhão de luz.
Lílian, que temeu pela reação de Okada e chegou a pensar que não seria correspondida, se entregou ao carinho, à energia da primeira vez.
O tempo de amor pareceu se estender por dias – mesmo sob a forma humana, o espírito dos dragões sabia dominar os caminhos do tempo e tornar cada momento eterno. No auge das carícias, Lílian sentiu-se tomada por calafrios, e poderia jurar ter viajado por eras e estrelas.
Okada sentiu que qualquer sacrifício valeria a pena por aquele momento, e tantos outros que viriam.


Já era noite quando Lílian, depois de um banho de ervas, aliás um dos pontos altos de se viver na Chapada, lembrou da caixa com o resultado dos exames. Okada ainda dormia, com uma expressão serena. Talvez o seu mundo desmoronasse com o conteúdo daquela caixa – talvez não.
Lílian avaliou se seria melhor deixar tudo aquilo para depois, e fazer daquele dia feliz um tempo sem fim para os dois, mas concluiu que não seria justo, não só com Okada, mas com toda a sua espécie. “Tantas diferenças entre nós ...”, pensou.
Abriu a caixa e o resultado temido logo mostrou ser verdadeiro: Okada era a primeira vítima confirmada da síndrome urbana que, mais dia menos dia, afastaria todos os de sua espécie das grandes metrópoles humanas. O metabolismo de Okada fora alterado por radicais livres e o diagnóstico era sombrio – esta seria sua última metamorfose e a morte não viria em milhares de anos, mas em algumas dezenas – talvez uma vida humana.
É claro que haveria uma chance – as pesquisas para reverter os efeitos da síndrome iriam continuar, e Zammerlin era muito competente. Outros como ele, e colaboradores humanos, trabalhavam contra o tempo. Mas Lílian não conseguiu deixar de pensar no que seria, de uma hora para outra, perder a eternidade.
Quando Okada despertou, era noite alta. Procurou por Lílian na pequena cabana e deduziu que ela estivesse vendo a Lua, na varanda. A sensação de amar e ser amado mostrava o mundo sob novas cores a Okada – uma beleza que o levava a admirar tudo. Foi a primeira vez, naquele tempo, em que notou o bonsai tão bem cuidado, que Lílian mantinha próximo à pequena janela para os fundos. Na verdade, apenas nessa momento Okada percebeu que estava há dias vivendo na casa de Lílian, na Chapada – o local pertencia à família da médica, desde a chegada de seus pais ao local, muitos anos antes.
O retrato de James e Marsha Woods também estava lá, em molduras rústicas feitas com madeiras nativas. Cristais de vários tipos estavam dispostos em uma pequena arca, numa ordem que não parecia aleatória. Em cada detalhe, um pouco da personalidade de Lílian se destacava, o que só agora Okada conseguia registrar. “Que engraçado – demorei tanto para perceber essas coisas”, pensou Okada, enquanto caminhava até a varanda.
- Por que você não me convidou para ver a Lua? – disse ele, enquanto abraçava Lílian – Você esteve chorando!?
Lílian não respondeu. Beijou Okada longamente, sentindo que poderia adiar a conversa sobre a doença. Mas não podia ...


- O que foi, Lílian? Alguma coisa que eu fiz, ou disse?
- Não, de jeito nenhum ... Você é a melhor coisa que aconteceu na minha vida! – Okada abriu um sorriso, mas Lílian continuava tensa – É que eu tenho uma notícia delicada para te dar, e preciso ser a médica de novo ... E você meu paciente.
- Uma coisa não precisa interferir na outra. Já percebi que é algo sério ... – Okada sentou-se e milhares de alternativas passaram pela sua cabeça. A pior delas, por incrível que pareça, não seria a morte, mas sim não poder mais viver aquela incrível história de amor. Para isso ele não estaria preparado.
- É que eu recebi os seus exames, e a suspeita que eu e seu irmão tínhamos a respeito da sua metamorfose repentina foi confirmada: você está com a síndrome do stress urbano, aquela que a gente estava comentando noutro dia. É o primeiro caso confirmado.
- Quer dizer que ... eu vou morrer, não é mesmo?
- Não agora, nem amanhã ... Você terá toda essa vida na forma humana! Mas, se não encontrarmos uma cura para isso, esses serão seus últimos anos, sim ...
Okada olhou a Lua, imponente, cheia, estéril em seu solo mas aparentemente tão cheia de vida para a Terra. Um astro cinzento e poeirento, com o brilho emprestado do Sol. De repente, sentiu-se assim também e procurou forças para não mergulhar num sentimento de pena sobre si mesmo. Poderia viver mais cinqüenta anos. Até mais! Tempo para lutar pela cura ...
- Pode ser minha última viagem, Lílian ... – Okada olhou aqueles grandes olhos negros que mudaram sua vida, e viu que estava, finalmente, começando a viver de verdade. – Eu só preciso saber se você vem comigo!
- Sempre, amor, sempre!


O casamento da doutora Lílian Woods com o mineralogista e poeta ocasional Taoshi Okada trouxe o senhor e a senhora Woods da Austrália, onde estava auxiliando um grupo de dragões preso em um grande incêndio florestal. Muito da cultura e do que construíram por milênios naquelas terras estava sendo destruído pelo fogo. O sotaque britânico era leve, pois os dois comunicavam-se em várias línguas e dialetos, inclusive com os dragões em sua forma original.
Quando James Woods encontrou Okada, quase pôde ver o pujante dragão jovem que se ocultava naquela forma – ele sempre tinha esses insights, e levava esses primeiros encontros muito a sério. No aperto de mão, nenhuma palavra, apenas a troca de energia.
Soube que você preferiu viver o tempo que lhe resta definitivamente na forma humana, e não voltar mais à sua exuberância de dragão, para viver com Lílian.
- Sim, senhor. – Okada estava um pouco intimidado. Realmente poderia viver seus últimos anos como dragão, se quisesse, forçando a metamorfose agora, mas a idéia nem lhe passou pela cabeça.
- Então minha filha escolheu a pessoa certa. Sejam felizes, filho! – O abraço selou a aprovação da família Woods ao amor entre Lílian e Okada. Marsha Woods concluiu.
Mas ele também escolheu a pessoas certa, James. Se há alguém nesse mundo capaz de descobrir a cura para esta doença, é Lílian. Vocês verão!
Okada lembrou-se de tudo o que tinha vivido em pouco mais de um mês – de um velho bibliotecário nissei, trabalhando em São Paulo, ao jovem finalmente apaixonado, após centenas de anos. À sua volta, amigos novos e antigos, a paisagem da Chapada dos Guimarães, seu irmão Zammerlin – “de volta à casa”, pensou. Lílian, entre os convidados, feliz como uma criança, era como um presente – aquele que Okada esperou pela vida inteira.
- A cura virá sim, senhora Woods, mas para os outros que sofrerem desta doença. Eu já fiz a minha escolha: ser um homem comum, ao lado de quem amo. – deu um beijo na sogra e abriu um largo sorriso, como se quisesse iluminar o mundo. – Sinceramente, eu nunca estive melhor em toda a minha vida!


(Parte do livro de contos "Viajante noturno", de William Mendonça, disponível para download gratuito em www.williammendonca.com. Direitos reservados.)

 
   
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