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O Invasor e Polyana Augusta Os ponteiros do relógio caminhavam distraídos. Estavam quase apontando meia noite e quarenta e cinco minutos. — Não. Não era horário de verão. Ainda.
A mulher, totalmente absorvida, trabalhava.
Seus dedos iam de uma tecla a outra, na emergência de concluir a matéria. Ela devia enviá-la logo mais. Havia gente aguardando por esse texto na cidade distante.
A noite abafada e o destempero da menopausa a fez imprudente. Trabalhava compenetrada diante do monitor. Todas as janelas da casa, escancaradas. As portas? Estas estavam trancadas. Mas as janelas, abertas.
Que mal poderia haver nisto? Cidade interiorana... Supõe-se que seja mais segura do que os grandes centros.
Tudo se deu em frações de segundos.
Ela não sabe de onde, nem como tudo aconteceu.
Sem essa nem mais aquela, "sentiu" seu campo energético sendo invadido por "ele". Sim. Era ele. A energia era masculina. E nem um pouco agradável. Diga-se de passagem. Ele invadia, e passava pelo escudo do seu campo magnético.
Dizer que ela tenha ouvido qualquer ruído, por mais insignificante que o fosse, seria mentir. Despudoradamente. Ela não ouviu nada. Ou melhor, ouviu sim, a frase emergente ribombando em sua cabeça:
— Feche a janela AGORA! IMEDIATAMENTE.
Ela girou a cadeira, os pelos dos braços arrepiados. O medo percorrendo o caminho da espinha dorsal. Ergueu-se e venceu a pequena distância que a separava da janela; a abrir-se para o jardim lateral, atapetado pela grama verde e macia. Sempre recolhendo as flores vermelhas da primavera em caramanchão.
Diante da janela, a máquina de costura, atrapalhando o livre movimentar-se. Era preciso arcar o corpo e esticar as mãos para alcançar as abas da janela. Puxou a aba esquerda, trazendo-a para o centro. Nesse momento a ordem mental gritou:
— Rápido, ou ele puxa a sua mão.
Coração ribombando, ela esticou a mão para puxar a aba direita. — Diabos! De vez em quando ela emperra. Não desliza corretamente. O tempo desgasta tudo. O sol e a chuva corroem e enferrujam o alumínio.
Os segundos escoando pelos vãos dos dedos, e ela lutando com a aba da janela.
Quem seria o sujeito? Estaria armado? Apontaria um revolver para ela? Ah, Deus! Se ele apontasse um revolver em sua direção, não teria nem de se dar ao trabalho de atirar. A simples visão da arma a deixaria em pânico. Um pânico tão grande que a faria desmaiar. Ou talvez até matasse, tamanho é o horror que ela nutre pelas armas de fogo. O medo inconfundível, arcaico, que a acompanha bestamente, desde sempre. O pavor. Das armas. Não de todas. Algumas ela até encara. Mas revolver? Melhor lutar com aquele bicho asqueroso, nojento, horrendo, que a faz saltar para o tampo da mesa. O rato.
A aba finalmente cedeu e deslizou. Faltando dois centímetros para se acoplarem nos puxadores, ELE apontou a cara diante da janela que se fechava com estardalhaço.
O suor escorria cascateando de sua testa. A voz saiu tremula. Porém alta:
— Cara, vaza daqui! Vou chamar a policia. — e movimentou-se em direção ao telefone, ouvindo a resposta dele:
— Ei dona! Eeee...
— Vaza. Some daqui!
Droga! Todas as janelas abertas. Correu para a sala, e as foi trancando. Tá. Pensou com seus botões. Tranquei estas, mas e o meu quarto? Ó senhor da Gloria, a janela da cozinha também está aberta. E agora?
Alcançou a base do telefone. Discou. Do outro lado uma policial atendeu. No segundo toque.
Se ela viu como é o sujeito? Se ele estava de jeans? Se ele tem alguma cicatriz ou tatuagem? Qual a cor da cueca? Santo DEUS! É claro que ela não viu nada, a não ser os cabelos escuros, emoldurando um rosto duro.
— Não moça. Eu não vi nada. Só sei que o homem pulou o muro e está aqui, no meu quintal. Dá pra mandar uma viatura?
— Fique calma senhora. Vou passar o aviso pelo rádio e a viatura mais próxima irá...
— Tá. Obrigada moça.
Ao desligar o telefone ela ouviu vinda da rua a voz de um outro homem, parado diante da sua casa.
— Ei cara, sai daí. Sai agora. To ligando pra policia.
No que o invasor respondeu:
— Nem precisa cara. Aió... A dona aí já tá chamando... — e pulou o muro, escapulindo no mundo.
Segundos depois ela ouviu a voz de uma vizinha perguntando se ela estava bem, e comunicando o fato de que o invasor tinha se mandado.
Sim, ela estava bem. Ao menos achava que estava. Bem. Tão firme quanto uma gelatina, mas estava em segurança.
As luzes foram acesas. A porta aberta para agradecer os vizinhos e a chegada do esquadrão policial, coincidindo com a sua chegada ao portão. Cinco viaturas. Sem acrescentar mais nenhuma. Já está de bom tamanho. E entre os diligentes, prestativos, bravios e heróicos fardados, uns dois ou três, belos desvios de caminho! Santa Mãe de Deus! Porque ela não era mais jovem? — Porque não era. Ora essa é muito boa!
Uma viatura ficou ali, enquanto as outras foram correr ronda. E abordar o meliante duas ou três quadras acima. — ela não sabe direito — Apenas abordar, posto que nada, havia de fato acontecido.
Tudo silenciou. Portas e janelas, devidamente trancadas. Ela tentou retomar a digitação da matéria, no silencio da madrugada... Tentar não é conseguir. Não mesmo.
Preparou uma chaleira de chá, e sentada diante da mesa da cozinha, tomou baldes de chá, até o dia clarear. O sono? Foi-se. E ela só tomou chá, o tempo todo? Não fez mais nada?
Fez! Pensou e pensou e pensou. Deu-se conta do quão, solitária e vulnerável estava. Apesar de ser independente. Forte, destemida (feito gelatina), determinada, audaciosa. Dona e senhora do seu próprio nariz... A verdade é que estava só. E frágil. Presa fácil.
Lá pelas quatro da madrugada, a mulher forjada no aço da vida desabou, e chorou. Um pouco. Só um pouco que é para não enferrujar o escudo feito de ferro.
Pensou nos filhos. Distantes. Seguindo suas vidas. No marido. Ex. de escafedeu-se.
Depois de hoje, tenho de arrumar um namorado. Um companheiro. — ela tentou se convencer. — Já não sou assim tão jovem, mas nem sou assim tão velha. Ainda posso arrumar alguém. É só querer. — alguns rostos de alguns poucos pretendentes desfilaram na tela mental, e cada um deles lhe dizia:
— Me dê à preferência?
Ela os foi empurrando, gentilmente, mas os empurrou para o lado. NÃO! Pensando bem e melhor pensado é mais prudente não arranjar sarna pra se coçar. Depois homem dá trabalho. Uma trabalheira de fazer gosto. E junto com a trabalheira toda, eles ainda traem a gente. Sempre. — E agora ela falava com conhecimento de causa. Diplomada na Universidade da Sagrada Vaca Celeste. (Da Deusa dos Cornos). Sabia muitíssimo bem que se o sujeito não estivesse ali, diante dos seus olhos, a um palmo dos olhos, e, ao alcance do seu faro, jamais a uma distância maior do que a mão possa alcançar; nunca mais acreditaria em homem algum.
Namorado?! Companheiro?! Pra que? Ela nem era mais petista. Do partido do presidente da nação.
Mais sábio - ponderou - seria arrumar um cão de guarda. — É isso! Um cão de guarda. Vai me dar menos trabalho. — ela concluiu.
Foi assim que dias depois, saindo à cata de um cão de guarda, ela adotou, sem maiores questionamentos, e sem se importar com a linhagem dessa nova filha por ela batizada de Polyana Aug usta.
Da mais pura raça. A raça dos, Tomba. Bege e amarela com pintas de perdigueiro.
E arrumou pra cabeça. Porque Polyana Augusta é tudo, menos cão de guarda. Decididamente.
Copyrigth© 2008 by Edna Vezzoni.
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