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Sobre a crise do paradigma da civilização ocidental: uma introdução Para se compreender a crise por qual passa o planeta Terra neste momento da sua história, uma crise que se espraia pela economia, pela sociedade e pelo meio ambiente, é preciso também que se busque a compreensão da crise que se abateu sobre o mundo da ciência a partir da segunda metade do século XX. Assim, deve-se retroceder no tempo, voltando aos primórdios da Revolução Científica, a partir do século XVII, e verificar como nasceu e se formou o atual paradigma, a visão de mundo que serve de baliza ao conhecimento da civilização base¬ada na tecnologia e na indústria.
Todavia, caso se queira fazer uma análise mais profunda da relação do ser humano com a natureza, que é uma questão central no paradigma ocidental, há que se recuar ainda mais no tempo, pois a separação homem-natureza é uma característica central na filosofia ocidental, cuja matriz localiza-se na Grécia e Roma clássicas. O ocidente nem sempre foi assim; houve uma época em que o modo de pensar a natureza era antagônico ao da atualidade, pois o mundo dos filósofos pré-socráticos era bastante diferente. Para os gregos, até mesmo após os pré-socráticos, o psíquico também pertencia ao mundo das coisas naturais, fazia parte da physis. Na mitologia grega os deuses não são apenas entidades sobrenaturais, eles integram a natureza e tudo na natureza tem alma. A alma habita a physis, concedendo-lhe a sua inteligência, afastando-a, então, da anarquia e do caos. Esta concepção de que as divindades, nas suas mais variadas formas, pertencem ao mundo natural caracteriza todo o pensamento pré-socrático.
Com os filósofos Platão e Aristóteles é que começa um menosprezo à natureza e um maior apreço ao homem e às ideias. Acontece, a partir daí, uma desqualificação dos antigos filósofos, que passam a representar a expressão de um pensamento mítico e não filosófico. Mais adiante, com a influência judaico-cristã, a oposição homem-natureza e espírito-matéria adquiriu outra dimensão. Para os cristãos, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e, assim, ele passou a ser dotado de um privilégio em relação aos demais seres da natureza. Também com o advento do cristianismo, o Deus ocidental subiu aos céus e, instalado em lugar privilegiado, apartado da natureza, atua soberano sobre o mundo material imperfeito do dia-a-dia dos mortais.
Com o tempo, durante o transcorrer da Idade Média, ao assimilar as filosofias de Platão e Aristóteles, o cristianismo consolidou definitivamente a separação entre espírito e matéria. Platão discorria que apenas a ideia era perfeita, em oposição à imperfeição da realidade mundana. O cristianismo medievo fará a sua leitura particular de Platão e do platonismo, opondo a realidade divina à imperfeição do mundo material. Com a difusão e crescimento do cristianismo, eliminando as antigas religiões politeístas do território europeu, os seres divinos não mais habitam a matéria, como na concepção pré-socrática.
Contudo, foi com o filósofo francês René Descartes, em seu Discurso sobre o Método, no século XVII, que a oposição homem-natureza, espírito-matéria, sujeito-objeto (res cogitans versus res extensa) ficou mais completa, transformando-se no eixo do pensamento ocidental. Dois aspectos do pensar cartesiano marcam a modernidade: 1) o caráter pragmático do conhecimento em clara oposição à filosofia especulativa; 2) o antropocentrismo, o homem é colocado no centro do mundo e torna-se sujeito em relação aos objetos exteriores, em relação à natureza. Estes aspectos provocam dois desdobramentos: 1) o cartesianismo passa a ver a natureza como um recurso, um meio para atingir um fim; 2) o homem, possuidor do método científico, pode mergulhar nos mistérios da natureza e, então, tornar-se senhor da natureza, à imagem e semelhança de Deus, que ele acredita ser.
Curiosamente, no mesmo século XVII, Baruch de Spinoza, um contemporâneo de René Descartes, desenvolveu concepções diferentes, antagônicas ao pensamento cartesiano. Para ele Deus está em tudo e tudo está em Deus; o universo visível é corpo de Deus e a energia que move o universo é o Seu espírito. Spinoza traz Deus de volta ao mundo. Para o filósofo francês a vida consiste em três entidades separadas: um corpo mecânico, um espírito pensante e, acima dos dois, o espírito de Deus. Já Spinoza combina as três entidades em uma única. Para ele, Deus não está acima do ser, mas dentro de cada ser. Então, o corpo, a inteligência e o espírito são três aspectos de uma realidade única. O mundo material é o corpo de Deus, o pensamento que o contempla é a Sua inteligência e a energia que o move é o Seu espírito.
Por que as concepções de Spinoza não tiveram a mesma projeção que as concepções cartesianas? Por que o ocidente aceitou sem resistências a ideia da separação? Alguns fatores podem ter influenciado nessa preferência. Baruch de Spinoza era filho de judeus portugueses num mundo majoritariamente cristão. Sua família saiu de Portugal, fugindo da perseguição católica, e fixou residência na Holanda. Esse país foi palco de uma grande ironia: Baruch que significa abençoado em hebraico foi excomungado pela sinagoga de Amsterdã pelas mesmas razões, as suas ideias, que o fariam vítima do Santo Ofício caso fosse católico como era René Descartes, que não chegou a sofrer grandes perseguições. Spinoza ficou sem lugar no mundo. Além disso, o pensamento cartesiano estava em pleno acordo com o mundo que emergia da Idade Média, marcadamente pragmático e fundamentado na ciência e na técnica, o mundo da burguesia florescente. A filosofia do Movimento Iluminista, do século XVIII, consagrará em definitivo o filósofo francês e limpará o pensamento renascentista dos seus últimos traços religiosos.
Definitivamente, o antropocentrismo vitorioso legitimará a capacidade humana de dominar a natureza. Por sua vez, a natureza despovoada de deuses, transformou-se em objeto e, como objeto, pode ser cortada, dividida, modificada e até destruída. Com o advento da Revolução Industrial essa concepção será levada aos extremos. O século XIX assistirá a vitória do racionalismo e do pragmatismo; a ciência e a tecnologia assumirão, a partir daí, um papel central na existência humana, o que acabará criando, com o correr do tempo separações problemáticas no próprio mundo científico. Num primeiro momento, as ciências da natureza separaram-se das humanidades, criando,desse modo,um abismo entre uma e outra. Hoje, a ecologia enquanto saber e o movimento ecológico denunciam os malefícios dessa divisão.
Outra consequência importante da separação entre homem e natureza, pro¬movida pela Revolução Científica é a excessiva fragmentação das ciências. A primeira grande divisão que ocorreu foi entre as ciências naturais e as humanas. A partir daí os dois grupos seguem, cada um do seu lado, subdividindo-se continuamente e produzindo, com esse movimento, um amontoado de especialidades. As especializações, se por um lado estimulam um maior conhecimento sobre questões específicas, por outro lado limitam a visão do todo.
As ciências organizaram-se mantendo uma forte separação entre o ser humano e a natureza. Na Zoologia, e parte da Medicina, por exemplo, considera-se o homem como ser natural, desconsiderando a sua sociabilidade. Nas humanidades o homem social é estudado na antropologia, na sociologia, na economia, na história, na psicologia, mas separando-o da natureza. Por sua vez, as ciências naturais desconsideram o poder do homem para transformar e destruir a Natureza.
A economia, por exemplo, que teria grande facilidade para promover a integração entre homem e natureza, tampouco o faz. A teoria econômica concentra-se em enxergar o mundo apenas pelo lado social, estudando as relações sociais de produção e de troca. Ela se relaciona com a natureza considerando-a apenas como uma base de recursos, os chamados recursos naturais. Falta à teoria econômica uma visão mais ampla do processo natural. Não é por acaso que as intervenções econômicas sobre a natureza têm provocado muitos problemas ambientais.
Contribuiu muito para todo este processo de fragmentação do saber a arrogância com que o ocidente vive o seu sonho de poder, a ideia de que o homem é, efetivamente, a imagem e semelhança de Deus. O conhecimento tem sido utilizado para justificar as suas ações, desconsiderando as críticas e, muitas vezes, dando o caráter de verdade absoluta a certas crenças. Na cultura ocidental, as ciências e as religiões são vistas como saberes concluídos, fechados, e isto lhes proporciona uma arrogância própria. O conhecimento disciplinar e a educação têm priorizado os saberes concluídos, inibindo a criação de novos saberes. O mundo ocidental, por conta da sua peculiar arrogância intelectual, também tem sido impermeável à penetração de conhecimentos de outra origem, no caso os do mundo oriental.
Contudo, alguns avanços já estão acontecendo nos espaços consagrados ao conhecimento, os templos da modernidade, as escolas tradicionais, as academias. A disciplinaridade evoluiu para a multidisciplinaridade e tem evoluído com dificuldade para a interdisciplinaridade, que é o diálogo permanente entre os saberes. Todavia, o avanço real, que abre novas possibilidades para o saber, é a transdisciplinaridade, onde os limites de cada ciência são rompidos e elas se interpenetram. Isto só é possível com o fim da arrogância científica. A transdisciplinaridade, ao assumir a incompletude dos seres humanos, acaba por rejeitar a arrogância do saber concluído e das certezas pré-estabelecidas e, então, pode propor a humildade da busca permanente. Isto posto, há que se concluir que uma ampla revisão das ciências é necessária; um olhar-se para dentro de cada um dos cientistas é mais que bem-vindo para o bem da humanidade e da Terra.
Referência
GALLO, Zildo. Ethos, a grande morada humana: economia, ecologia e ética. Itu (SP): Ottoni Editora, 2007. 130 p.
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