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MARVIN MARVIN
Roberto Schima
Eu o avistei certo dia, 21/07/2017, depois de observar os modos inquietos de minha cachorra, a maneira como mirava as pequenas árvores em nosso jardim, farejando. Já de idade avançada, sua visão tornara-se péssima, entretanto, o olfato permanecia bastante apurado. Devo ter dito algo como: "O que foi, Loba?", porém, isso é somente uma suposição. Minha memória anda tão ruim quanto a visão da Loba. Talvez, alguns digam que, com o tempo, nosso cérebro vai preservando somente o essencial, sem se ater a detalhes. Pessoalmente, costumo comparar o meu ao HD de um computador há muito fora de linha: velho, rateando, cheio de falhas feito os buracos de um queijo suíço. Seja como for, deixe-me continuar essa história, a maneira como agora eu a vejo ou desejo ver.
O jardim em frente de casa é somente um retângulo encravado no piso. Um pedaço pequeno, porém precioso em um mundo onde mais e mais casas surgem a matar a terra, não reservando qualquer espaço para uma árvore, um arbusto, uma gramínea que seja. Embora pequeno, nele foram transplantados dois pés de nectarina, cujas sementes eu havia enfiado em um vaso de argila após ter comido os frutos, e, felizmente, brotaram. Antes disso, já havia uma pequena árvore de tronco e galhos retorcidos, a qual, de tempos em tempos, presenteáva-nos com belos cachos de flores amarelas. Infelizmente, não sei seu nome.
Observando atentamente no alto de um dos pés de nectarina, onde a Loba ficara farejando, finalmente, consegui vê-lo.
Era um pequeno gambá.
Eu já ouvira o Sr. Muniz - um senhor bondoso que, juntamente com sua amável esposa, D. Cleide, olhavam nossa casa de vez em quando - comentar que os passarinhos vinham e comiam as "ameixas". E eu próprio reparara em alguns frutinhos amarelos caídos, meio comidos. O Sr. Muniz, por sinal, fora quem transplantara as mudas de nectarina para o jardim. Acreditei, então, que veria uma ave, mas fiquei surpreso e contente por ver o tal gambá. Contente? Sim, contente. Eu já vira um gambá vários anos atrás. Caminhava sobre o muro de uma edícula em que eu morara. Também já lera sobre o assunto em algum lugar. Sua aparência faz lembrar um rato, um rato enorme, do tamanho de um gato, porém, não tem nada a ver. O gambá é um marsupial, creio que o único das Américas. E esse em particular que estava no jardim era bem bonito: pelagem acastanhada, orelhas pretas. Fui depois consultar do atual "pai-dos-burros", o Google, e vi tratar-se de um gambá-de-orelha-preta. Devia ser um filhote, ainda sem muita experiência, para ter sido flagrado daquela maneira, em plena luz do dia. Provavelmente, viera comer a noite, tendo sido percebido pela Loba, e, com esta nas proximidades, não teve como retirar-se antes da alvorada.
Creio já tê-lo avistado alguns meses antes. Quando estava prestes a dormir, na tela da janela do quarto, vira projetado um vulto na sombra do tronco de árvore. Parecera-me uma ratazana. Impulsiva e tolamente, eu dera um grito e um tapa na janela. Fora um susto e uma preocupação - ao menos para mim, pois o gambá devia ter morrido de rir. Agora, acreditei ter descoberto o responsável.
Ficou lá, imóvel feito uma estátua, enquanto eu procurava fotografá-lo.
Tive pena. Se a imobilidade era uma de suas defesas - além de expelir uma substância malcheirosa - esta tornava-se inútil após ter sido descoberto.
Mostrei o ladrãozinho de frutas para a minha esposa, Márcia, a qual mostrou-se igualmente encantada.
Depois, procuramos deixá-lo em paz. Mas lá ele ficou, horas e horas, praticamente imóvel, sem comer, sem beber, só aguardando pela proteção da noite para evadir-se. Pela tela da janela do quarto, reparei que ele movia lentamente a cabeça para um lado ou outro, ou avançava muito devagar. Mas era só.
A Loba ficou um bom tempo ao pé da árvore. Não sei ao certo se ela o atacaria se tivesse chance. Ela é muito antissocial e de fazer estardalhaço - apesar de, conosco, ser extremamente dócil - e a gente sempre procurou não pagar para ver em relação a outros cães. Mas já mordera um homem que se aproximara demais. Então, provavelmente avançaria sobre o gambá, nem se fosse mais por medo do que por braveza. Se fosse o Adam (husky já falecido), com certeza, atacaria. (A ficha corrida dele era bem cheia: matara até gatos.) E antes dos dois, nós tivéramos um pastor alemão, Sheik. Ele era muito de latir (feito a Loba), mas "na hora do vamos ver", só ficava de longe, tanto que eu o apelidara de "poodle gigante".
Acho que, apesar de tudo, esse gambá - modéstia a parte - teve sorte. Se tivesse sido descoberto em outra casa, talvez acabasse morto, confundido com uma ratazana ou por simples maldade.
Estando na nossa casa, a próxima etapa foi dada pela minha esposa: dar-lhe um nome. Batizou-o de Marvin. Por quê? Era o nome de um peixinho dourado do personagem Herbert, vivido por Jerry Lewis, num filme que gostamos, "O Terror das Mulheres". Na verdade, o Marvin sequer aparecia no filme: era mencionado por acaso pelo Herbert. Contara ele que, um dia, achando o peixe muito solitário em seu aquário, ou algo assim, tirara-o de lá e o levara para dormir com ele em sua cama...
O "nosso" Marvin ficou no pé de nectarina até o dia terminar, até a Loba ir para o seu canto, até nós dormirmos.
No dia seguinte, vi que ele se fora. Sentimos um misto de pesar e alívio, torcendo para que ele tivesse uma boa e longa vida.
Quem sabe, estaria curtindo um merecido sono após haver contado suas desventuras para a turminha dele, exagerando aqui e ali.
Ficamos nos perguntando se ele tornaria a voltar.
Ainda vejo frutinhas meio comidas pelo chão e folhas caídas as quais não atribuo somente à força do vento.
Mas minha esposa já avistara pássaros fazendo estardalhaço nas árvores.
Então, eu não sei.
Com a experiência, talvez o Marvin tenha aprendido a ser mais prudente, mais sorrateiro, mais cauteloso, mais furtivo. Quero crer que sim para o seu próprio bem. Quero crer que, na calada da noite, ele retorne de vez em quando para mordiscar os frutos e especular sobre as enormes e curiosas criaturas que vieram observá-lo dia desses mas que, graças a proteção do santo padroeiro de todos os gambás, nada lhe fizeram de ruim. Talvez, no fundo de sua mente de gambá, franzindo uma testa que não tem, ainda lhe reste uma derradeira pergunta:
- Mas, com tantos nomes, tinha que ser "Marvin"?
(RS - 05.08.2017; retificado em 06.08.2017)
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