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O MENINO E O COMETA O MENINO E O COMETA
Roberto Schima
Era uma noite quente de outono.
Com a suave brisa noturna acariciando meu rosto, subi a rua de minha casa.
Eu era menino então. Morava num bairro em que as casas eram afastadas umas das outras, e os espaços vazios eram freqüentes. O centro da cidade acessível apenas de trem. Era grande e barulhento, surgindo todas as manhãs por detrás do morro.
Em noites quentes como essa, a vizinhança tinha o hábito de ficar em frente de suas casas, conversando sobre os afazeres do dia ou fofocando sobre algum outro vizinho. Os meninos gosta-vam de ficar brincando: jogavam bola, brincavam de pega-pega, ou esconde-esconde. Mas eu não. Gostava de passar meu tempo livre em algum lugar sossegado: um campo verdejante, uma beira de rio, um fundo de quintal. Meus maiores companheiros eram as robustas árvores repletas de folhas a me saudar com seu farfalhar; eram os pequenos animais a pular, voar ou silenciar ao redor; era o ria-cho de águas cristalinas a borbulhar segredos para o cascalho.
Nessa noite em particular, meus maiores amigos eram as estrelas.
Brilhavam em grande número no céu. Pequenos pontos luminosos que minha mente infantil custava a crer serem sóis. Como poderiam estar tão longe assim? Foi talvez a primeira vez que tive noção do imensamente longe, do tremendamente grande, do incomensurável infinito.
Eu subia a rua com o olhar quase fixo no céu. Tropecei várias vezes, quase caí. A rua sem asfalto era bastante irregu-lar; chuvas de anos e anos tinham esculpido o chão duro, constru-indo canais que o cortavam como veias e artérias.
Enquanto caminhava, recordo-me de haver dialogado com as estrelas.
- Como é aí em cima? - perguntei. - Será que o Sol é tão pequeno para vocês, como vocês são para mim?
Eu murmurava baixinho. Inconscientemente sabia que não era bom facilitar para os outros. Um garoto solitário já era considerado estranho, mas um garoto solitário, que andava olhando para cima e conversando com as estrelas era, no mínimo, uma boa fonte de renda para um psiquiatra infantil.
As estrelas nunca respondiam. Ficavam lá cintilando uma após a outra, e eu pensava: "Estão respondendo para mim, sei que estão, mas estão tão longe no céu que não posso ouvi-las."
Tornava-se assim mais emocionante imaginar o que estari-am respondendo, ao invés de saber o que respondiam de fato.
- Como é aí em cima? - perguntei novamente.
- Aqui é lindo, amiguinho, como o melhor de seus sonhos - diziam em minha mente, numa voz calma e compassada. - Na negra vastidão do espaço, temos mundos de cristal, estradas de arco-íris que guiam os viajantes em carrosséis de fogo. Existem luga-res onde as montanhas andam e cidades que, como bolhas de sabão, flutuam ao vento. Aqui você seria como os super-heróis que tanto admira. Teria a força de um gigante para vencer qualquer inimigo. Seria rápido como o relâmpago. Voaria em um cavalo alado e teria uma armadura de prata para lutar contra os semideuses pela glória da aventura. Você poderia vir aqui, se quisesse.
- Eu? - perguntei, subitamente perplexo e maravilhado. - Mas como?
- Voando.
- Voando? É impossível! Não sou leve como a pluma dos pássaros que lhe dão o dom de navegar pelo céu. Não sou as folhas secas do outono levadas num redemoinho para as alturas. Não sou suas carruagens de fogo, percorrendo os mundos, e tampouco tenho um cavalo alado para atingir as cidades flutuantes. De que jeito poderia as estrelas atingir?
Formulava a pergunta quando acabara de atingir o ponto mais alto da rua. Já não havia mais casas por perto. Estava escu-ro ao redor. O silêncio era quase absoluto, não fosse por alguns grilos que tocavam sua serenata por entre as folhas invisíveis.
Deitei na folhagem. O seu aroma refrescava-me um pouco do calor.
Lá embaixo, via as luzes das casas, crianças correndo, vozes abafadas pela distância. Cada luz representava um universo todo particular e distinto dos demais. Toda uma história de vi-das, sorrisos e lágrimas para as quais eu não possuía qualquer acesso. Mesmo naquela luzinha que, apesar de ser como as outras, distinguia-se destas por ser da casa em que morava, eu me sentia um estranho. Desde cedo não tive um pai com quem conversar; e minha mãe, apesar do carinho que me dava, passava a maior parte do tempo perdida em seus próprios pensamentos, recordando momen-tos que jamais voltariam ou sonhos que nunca se realizaram.
Assim, criei meu próprio mundo; um mundo imaterial feito de sonhos e fantasias, feito de livros de histórias, feito do Sol, feito da Lua, feito das estrelas.
Desviei meu olhar das luzes abaixo, dos estranhos mundos abaixo, para as luzes acima, para os familiares mundos acima.
Voltei a me concentrar no diálogo e a repetir a pergun-ta:
- Como poderei voar até as estrelas?
Aguardei um instante e, parecendo que vinha do mais profundo dos abismos, as estrelas piscaram sua resposta:
- Nós enviaremos um Carrossel de Fogo para pegá-lo. Os homens o chamam de cometa, e os jornais têm anunciado sua chega-da. Ele virá numa esteira flamejante e o trará até nós.
Pensei um pouco.
- Mas se ele é de fogo, não vai me queimar?
- Não - respondeu o coro cintilante. - É um carrossel mágico, feito do coração das estrelas para abrigar e proteger as crianças que sentem o desejo de vir até nós.
- As crianças... então não sou o primeiro a viajar? - perguntei com uma ponta de decepção pela perda de exclusividade.
Nas profundezas, as estrelas pareceram piscar ao mesmo tempo e, trazidas pelo vento, sussurraram:
- Não, você não é o primeiro e nem será o último. Não fique triste. Periodicamente, a cada setenta e seis anos, nosso Carrossel de Fogo retorna ao seu pequeno planeta. Ele vem aten-dendo aos desejos de dezenas de crianças que, como você, querem vir até nós. São crianças que não encontraram amiguinhos junto aos outros meninos e voltaram seus olhos para as belezas naturais da Terra e as maravilhas do céu. Você não é o único a se sentir assim. Acharia justo que só levássemos você e deixássemos as outras crianças?
- Não, claro que não.
- Então. É por isso que sempre, através do séculos, o Carrossel de Fogo tem retornado. Ele é grande o bastante para abrigar todas as crianças. O espaço também é infinitamente enorme para que, cada qual, sinta-se feliz em seu próprio mundo, super-heróis em suas próprias batalhas.
Um vento frio soprou subitamente. Estava ficando tarde e eu deveria voltar para casa. Levantei-me, alisei a roupa, reti-rando as folhas que grudaram no tecido. Flexionei os membros adormecidos e, voltando uma última vez os olhos para cima, per-guntei:
- Quando o carrossel virá me pegar?
- Nas próximas noites poderá vê-lo chegando. Parecerá uma estrela comprida, movendo-se entre as estrelas fixas. Na noite de maior aproximação, você estará a bordo.
O dia seguinte passou lentamente. Todas as pessoas fala-vam do cometa. Muitas tinham medo que ele fosse se chocar com a Terra ou que sua cauda envenenasse a atmosfera. Só eu, e algumas crianças do mundo sabíamos a verdade. E, estar de posse deste segredo, enchia meu coração de alegria.
Mal o crepúsculo começou a tingir o céu de vermelho, eu já me encontrava no alto da rua. Havia levado um agasalho. Ao contrário da noite anterior, esta prometia ser fria.
Pássaros voavam pelo céu, aproveitando os últimos raios do Sol. Um vendo sudoeste agitava meus curtos cabelos, arrepian-do-me as orelhas.
Minha mãe, preocupada, pedira para não ficar fora até tarde, que logo o jantar estaria na mesa. Assenti, mas levei um pacotinho de bolachas debaixo do braço para enganar o estômago.
Sentei no mesmo lugar. Em minha mente tinha visões de milhares de estrelas brilhando silenciosamente, via nebulosas multicores flutuando entre os espaços vazios, galáxias longínquas ocultando para sempre seus segredos. Predominava, sobretudo, a sensação de vazio, um grande vácuo perdido no meu mais profundo ser, abrangendo todo o Universo.
Anoiteceu.
As estrelas mais brilhantes apareceram e, aos poucos, outras ficaram visíveis. Constelações surgiram ante meus olhos. A esteira da Via-Láctea dividiu em duas a abóbada celeste.
Fiquei olhando, olhando e procurando entre aquelas cen-tenas de pontos luminosos o tão desejado mensageiro das estrelas.
O tempo foi passando e um torcicolo me fez relaxar o pescoço.
Foi inútil... Não consegui distingui-lo de qualquer uma daquelas estrelas que, ao que tudo indicava, zombavam de mim.
- Onde está ele? Onde está ele? Vocês prometeram que o cometa viria.
Silêncio.
As estrelas continuaram mudas. Tudo estava mudo, até os bichinhos do mato.
Levantei-me ao ouvir ao longe o chamado de minha mãe.
Voltei cabisbaixo, pensando comigo mesmo que até nossos sonhos poderiam nos trair. Meus passos pequenos ecoaram tristes e abafadamente pelo chão, enquanto pedrinhas rolavam. O pacote de bolachas voltou intacto.
Os dias seguintes apareceram encobertos. Vários tons de cinza mesclavam o céu. Um vento forte assobiava pela janela, trazendo a chuva que chapinhava em poças pela rua.
Espremi meu rosto no vidro, vendo a água bater contra ele, tentando enxergar além. Minha respiração embaçava a janela e, com o dedo, eu desenhava caretas.
Pensava no cometa perdido, na brilhante carruagem do espaço que iria me levar às fronteiras do infinito. Custava a acreditar que tudo se acabara. Um castelo de areia, laboriosamen-te erguido em nome do Sonho e da Fantasia não poderia ter desmo-ronado no macaréu da Realidade.
No terceiro dia após a minha decepção, fui despertado pelo cantar barulhento de pardais no telhado. Fiquei muito tempo deitado na semi-obscuridade do quarto, escutando os pássaros. Pela algazarra que faziam, deveriam estar tendo alguma briga doméstica. Sorri levemente com este pensamento.
Um raio de luz passando pela fresta da cortina dizia-me que o mau tempo terminara. Ruídos das ruas chegaram-me aos ouvi-dos: mulheres rindo, cavalos puxando carroças, crianças correndo, cães latindo. A vida despertara em cores alegres, após uma longa hibernação.
Mamãe apareceu com seu eterno olhar tristonho e cansado.
- Está na hora de levantar, filho.
- Tá bom, mãe - disse, um tanto de má vontade.
O dia estava realmente lindo.
Um extraordinário céu azul, sem nuvens, por onde dezenas de pássaros voavam em formação. Sentia o aroma do orvalho na vegetação. O cheiro gostoso de terra molhada. O Sol estava forte, nem parecia que estávamos no outono.
Passei o dia explorando o fundo do quintal. O quintal de casa era enorme, repleto de vasos com variados tipos de plantas, floridas ou não. Mamãe adorava flores. Seu perfume estava por toda parte. Eu amava aquele lugar. Amava o zumbido das abelhas e o dançar multicor das borboletas. Havia árvores também: ameixei-ras, um pé de caqui, outro de amoras e um enorme abacateiro. Uma pequena horta de alfaces, repolhos, cenouras, escarolas, batatas e tomates completava o cenário donde saía boa parte do nosso sustento.
Já havia explorado inúmeras vezes os meandros daquele quintal e nunca me cansara. Sempre descobria coisas novas. Gosta-va principalmente de ver a atividade dos insetos. Inevitavelmen-te, descobria um que nunca tinha visto antes.
Naquele dia, fiquei deitado no aveludado tapete casta-nho-avermelhado de musgos. Cobriam quase todo o chão. Passei a observar a incessante atividade das formigas. Estavam limpando o formigueiro, retirando entulhos trazidos pelas últimas chuvas. Aos poucos foram se formando pequenas crateras de grãos nas aber-turas por onde entravam e saíam. Nunca se cansavam. Logo depois, uma fileira ordenada saía para colher folhas tenras, atrás das formigas batedoras que as haviam localizado. E, passado mais algum tempo, lá vinham de volta com pedaços enormes de folhas, escoltadas por formigas-soldados. Um mundo ordeiro e imutável.
A paz de minha observação foi subitamente perturbada por vozes vindas da rua. Eram homens da vizinhança conversando sobre assuntos triviais. Trechos de suas conversas foram trazidos pelo vento:
- Que chuva... todo ensopado... nossa!
- ... e eu, então... resfriado... e até... ATCHIM!!!
- Até que enfim... dia bonito... dormir...
- ... céu limpo... hoje é dia... o cometa...
Nisso, eu que brincava distraído com um graveto, parei e, aguçando os ouvidos, procurei ouvir o que estavam dizendo.
- O que é que tem o cometa? - perguntava uma voz.
- Ora, não leu os jornais? É hoje à noite... - respondeu outra.
- É hoje à noite o quê?
- Eu também não li nada - disse uma terceira voz.
- Nem eu - completou a quarta.
A voz que mencionou o cometa começou a falar em tom professoral, como se estivesse ensinando o bê-a-bá a um bando de crianças:
- Hoje à noite - fez uma pausa -, é a noite em que o cometa estará mais próximo da Terra. Pelo menos é o que dizem os tais astrólogos, astrônomos ou astro-não-sei-o-quê. Eles fizeram uns cálculos e dizem que, se o tempo ajudar, teremos uma visão e tanto do cometa...
O graveto quebrou-se em minhas mãos em dezenas de peda-cinhos sem que eu percebesse. Meu coração pulsava aceleradamente.
O restante da conversa tornou-se turva para mim.
"... o cometa estará mais próximo...", "uma visão e tanto...", eram as palavras que me martelavam o cérebro. O cometa mais próximo, a noite da maior aproximação... a noite em que estaria a bordo!
Uma corrente elétrica percorreu meu corpo e, no instante seguinte, encontrava-me de pé, pulando de alegria, gritando feito doido, sentindo a adrenalina percorrer cada fibra de meu corpo.
- É hoje! É hoje! É hoje! - gritava pelo quintal e de-pois dentro de casa, esbarrando nas cadeiras e sujando o chão da cozinha.
Mamãe, espantada pela minha súbita mudança de tempera-mento, quis saber o que estava acontecendo.
- É hoje, mãe. O dia em que o cometa vai me levar para o céu!
- O cometa vai fazer o quê?
- Vai me levar para o céu, para junto das estrelas!
Ela me olhou por alguns instantes, um tanto confusa com a agitação de seu filho, que, segundo se lembrava, nunca demons-trara tamanha alegria; sendo, mesmo os sorrisos, momentos raros e efêmeros. Filho único, mal tendo oportunidade de conhecer o pai, morto prematuramente num acidente, construíra um casulo em torno de mim e, agora, este casulo se agitava e as paredes aparentavam estar prestes a se romper.
Após o impacto inicial, mamãe voltou a seu estado de torpor, não dando importância às minhas palavras e achando que, provavelmente, era mais uma de minhas manias, como quando falava com os grilos ou fingia ser os pássaros. Disse somente:
- É mesmo?... que bom.
Fiz os preparativos para a grande viagem. Amontoei meus brinquedos, carrinhos, blocos de montar, livros com figuras colo-ridas de príncipes e dragões, e meu maior tesouro: uma caixinha contendo diversos seixos apanhados no fundo do rio. Peguei também o pacotinho de bolachas, afinal, um pequeno astronauta tinha de estar preparado para tudo. Amarrei tudo como pude e fui almoçar.
A tarde correu rapidamente. Passei-a no quintal despe-dindo-me de meu pequeno mundo. As plantas agitaram tristes suas folhas, as borboletas e abelhas voaram ao meu redor zumbindo um último adeus. Lá estavam o pomar, as árvores, o musgo macio, as flores perfumadas, o cheiro de mato e todo um mundo que me acon-chegou em meus seis anos de vida.
Sentimentos antagônicos se apossaram de mim. A alegria arrebatadora por conhecer o Universo e encontrar um sonho oprimi-do. A triste melancolia de quem se despede de toda uma vida.
Fui também ao riacho e, sob a velha árvore, passei o fim da tarde. As águas borbulharam por entre as pedras e a vegetação em sua orla. Os galhos da árvore agitaram suas folhas num último farfalhar. Os pássaros voaram alto no céu, como a me mostrar o caminho entre as nuvens. O vento refrescou o meu rosto e sussur-rou um breve adeus.
Fitei os peixinhos. Nadavam alegremente nas enseadas que o rio formava. Suas águas ricas em oxigênio eram também abrigo de pequenos camarões de água doce, criaturas transparentes que pare-ciam ter sido delicadamente esculpidas em vidro. Habitavam ainda girinos, insetos aquáticos e até pequenas cobras. Todos eles lembranças de momentos emocionantes de explorações e descobertas.
Quando o Sol já se punha no horizonte, dei uma espregui-çada gostosa e, de um pulo, pus-me a correr para casa. Era um fim de tarde maravilhoso, como jamais houvera outro igual.
Pelo caminho ouvia fragmentos de conversas dos vizinhos. Não eram mais fofocas sobre um outro morador ou papos rotineiros como política, bailes e casos amorosos. Não. Todos falavam do cometa e desta noite, a noite de sua maior aproximação. Havia um clima de expectativa, ansiedade e até de medo.
Cheguei em casa ofegante, tomei um rápido banho na velha tina de água quente e mal toquei no prato sobre a mesa.
Havia colocado a minha melhor roupinha, incluindo um gorro e um casaquinho de lã azuis, tricotado por mamãe. Peguei minha "bagagem" e, saindo do quarto, passei pela cozinha, diri-gindo-me à porta.
- Adeus, mamãe - disse-lhe, sorrindo.
Ela se encontrava lavando as louças e talheres e, ao ouvir-me, virou-se.
- Aonde é que você vai? - perguntou, surpresa ao me ver daquele jeito.
- Já disse, mãe, vou esperar o cometa que vai me levar para o céu.
- Nada disso - respondeu. - Está tarde e você acabou de tomar banho. Agora é hora de dormir.
- Mas, mãe, eu tenho de ir...
Ela foi se colocando entre mim e a porta e, encostando-se nesta, disse resolutamente:
- Não. Você não pode ficar saindo assim toda a noite. Pode se machucar. Está frio lá fora e sabe que fica doente facil-mente. Além disso, essa roupa que está usando é para ir à igreja no domingo.
Seu avental sujo de gordura e sabão diante de meus olhos era como uma muralha intransponível. A palavra final fora dada.
Percebi pelos seus olhos a inutilidade em tentar persua-di-la. Assim, fingindo uma derrota, fui para o quarto. Em minha mente, um plano tomava forma.
Fechei rapidamente a porta do quarto. Pegando um banqui-nho tosco de madeira, levei-o até a janela. Tive um pouco de dificuldade por ser pequenino.
Subi nele com um sorriso no rosto - misto de euforia pela fuga e de alegria pelo cometa - e girei o trinco da janela.
Estava emperrada.
Meu sorriso desapareceu instantaneamente. Por mais que fizesse força, mal consegui fazê-lo se mexer.
Frustrado, passei a esmurrar a janela. Desesperei-me, então, ao ouvir lá fora vozes anunciando o cometa. Passei a gri-tar para o trinco e para a janela que resistiam a minha vontade de conhecer as estrelas. Era inconcebível que uma simples janela de madeira fosse me impedir de ouvir os ecos do cosmos.
Meus olhos estavam quase lacrimejentes, quando mamãe entrou, atraída por minha barulheira.
Vendo-me sobre o banquinho perto da janela, de imediato adivinhou minhas intenções e já se preparava para me dar uma reprimenda, quando, de súbito, estacou. Olhou profundamente em meus olhos.
- Mãe... eu preciso ir - disse-lhe num quase murmúrio.
Ela ainda ficou por algum tempo em silêncio, de pé em frente à porta do quarto. Os dedos de uma mão acariciavam a ou-tra. Os cabelos amarrados num coque no alto da cabeça exibiam fios soltos. Seus olhos colados aos meus pareciam atravessar toda a minha pequena alma e, num dado instante, sua opacidade deu lugar a um fraco brilho emergindo das profundezas de seu ser.
- Pode ir, filho - foi sua resposta. Sua voz dava a sensação de ter saído do fundo de uma caverna, do interior da própria terra.
- Posso mesmo? - indaguei incrédulo.
- Pode sim.
Ela abriu passagem para mim que disparei sem pensar duas vezes. Estava quase alcançando a última porta, quando ouvi sua voz pedir:
- Espere!
Tremi ao pensar que não fora ligeiro o bastante e que ela mudara de idéia. Ela voltou a repetir:
- Espere... quero ir também.
Antes dessa ocasião, não me lembro de uma única vez sequer que minha mãe e eu tenhamos feito qualquer atividade jun-tos. Nossos mundos eram como ilhas perdidas num vasto oceano de recordações e paredes mudas.
Assim, não foi sem surpresa que recebi suas palavras e a olhei espantado como quem, numa noite enluarada, vê um disco-voador pousar no fundo de seu quintal. Ela sumiu em seu quarto para, logo depois, retornar vestindo um casaco de lã verde, sur-rado de vários outonos. Havia um brilho esquisito em seus olhos. As louças ficaram por lavar.
Uma rajada de vento frio atingiu em cheio meu rosto assim que saímos noite adentro. Enrijeci meu corpo instintivamen-te.
Fomos subindo a velha rua em silêncio. Grilos cantavam a distância.
Passando em frente a casa de um vizinho, vimo-lo e a um outro sujeito que eu não conhecia, com os olhos arregalados, olhando para um determinado ponto no céu. Acompanhamos seu olhar.
Lá estava ele.
A Carruagem de Fogo, o Dragão Cósmico, o Mensageiro do Infinito. Entre milhares de pontos brilhantes no céu, ele se destacava nitidamente com sua grande cauda amarela, tremulando majestosamente. Um arrepio percorreu meu corpo ao observá-lo na escuridão. A abóbada celeste salpicada de estrelas; o vento gela-do penetrando-me nas narinas, trazendo de longe o cheiro adocida-do de pequenas flores; olhos voltados para o alto; mentes pensan-do nos mistérios do Universo.
Havia magia no ar; uma magia tão densa, tão real e envolvente que, se quisesse, poderia ser apalpada com as mãos. As estrelas não me traíram, afinal.
Quase sem percebermos, retomamos o caminho e fomos su-bindo a rua, olhos voltados para o céu, assim como havia feito várias noites atrás. Dessa vez havia uma diferença: eu não estava só.
No topo da colina, acomodamo-nos da melhor forma que pudemos. Mamãe levava uma velha esteira de palha e nos sentamos.
A noite estava muito fria; e o céu, extraordinariamente belo. O cometa aproximava-se lentamente.
"Então, ele veio mesmo...", pensei comigo.
- Sim - responderam as estrelas -, ele veio para fazer de seus sonhos, seu mundo. Para transformar suas ilusões em rea-lidade. Para romper seu rígido casulo e metamorfoseá-lo num alado ser do espaço.
- Mas... - Um pensamento melancólico passou pela minha mente.
- Mas o quê?
- Mamãe está comigo.
- Nós sabemos. Nós temos incontáveis olhos.
- E então...
- E então, que ela virá com você também.
- Verdade? - perguntei surpreso.
- Verdade.
- Mas vocês disseram que só crianças embarcariam, que só crianças conheceriam os mundos de cristal e as cidades flutuan-tes.
- Pequenino, dia chegará em que você, ao olhar as coisas ao redor, sentirá que elas diminuíram de tamanho. Na realidade, foi seu corpo, outrora diminuto, que se desenvolveu para enfren-tar o mundo dos homens e dele fazer parte. Nesse dia perceberá que, apesar de seu corpo ter crescido, lá no fundo, dentro de seu coração, uma pequena chama da infância continuou acesa. Uma chama pequenininha, que pode até dar a impressão de não existir. Mas está lá, viva, tremulante, hesitante e receosa. E lá ficará brilhando fracamente, até que algo em seu íntimo alimente essa chama e a faça crescer com renovado fulgor. Algo no coração de sua mãe fez dela criança novamente.
Realmente, ao desviar meus olhos do cometa e olhar para os de mamãe, vi um brilho que nunca vira igual. Poderia ser re-flexo das estrelas, mas não era. Tinham vida própria e, como as estrelas, aqueles olhos poderiam perfeitamente fazer parte do céu.
- Durante a viagem ela estará a meu lado?
- Sim e não. Ela tem seu próprio mundo para conquistar, seus próprios sonhos a encontrar. Em alguns você faz parte e em outros não. Existe um vínculo indestrutível entre os dois, e, por mais distantes que estejam um do outro, de algum modo sempre estarão juntos.
As estrelas silenciaram.
As perguntas pareceram não ter mais importância, as indagações perderam seu significado sob a grandiosidade daquele momento.
Lá vinha o cometa, navegando pelo oceano cósmico.
Meus olhos estavam fixos, quase sem piscarem.
Lá vinha o cometa do coração de todas as crianças.
A brisa passou suavemente.
Lá vinha o cometa.
Lá vinha o cometa..
Lá vinha o cometa...
Lá vinha o cometa....
Lá vinha o cometa.....
Meus olhos abriram vagarosamente. Pisquei repetidamente, procurando ajustar o foco. A primeira coisa que consegui definir foi uma longa rachadura no teto. Estava em meu quarto. Meu corpo estava comodamente aconchegado nas cobertas. Sentia-me leve e sem saber como havia chegado, como havia retornado das estrelas.
Virando a cabeça, percebi mamãe sentada ao meu lado, fitando-me serenamente. A chama em seus olhos fulguravam, ilumi-nando seu rosto.
- Mamãe... eu estive no céu. Eu vi coisas maravilhosas. Vi lagos prateados onde homens-peixes brincavam. Vi as nuvens de perto e até passei entre elas. Eu voei como os pássaros. Voei mesmo. Cavalguei o vento. Toquei as estrelas e colhi o seu fogo eterno para iluminar os mundos escuros. Eu conversei com os ani-mais. Vi tanta coisa... E eu vi papai.
O suspiro de mamãe ecoou pelo quarto e, sorrindo, disse:
- Eu sei... Eu também estive lá. Eu também vi muitas coisas lindas, que nunca pensei que veria realmente. Vi a espe-rança, vi a beleza. Nunca vou esquecer.
Ela pegou minha mão.
Lá fora, o frio açoitava as árvores, as casas e as pes-soas. Mas dentro de uma casa, uma modesta casa, uma suave chama aquecia suas paredes e dois jovens corações.
Muitos anos se passaram desde então. Anos em que cresci, em que vi o meu bairro crescer. Anos em que, saindo de minha cidade, fui viver uma nova vida. Estudar, trabalhar, amar, casar, ter filhos e vê-los crescer. Anos que viram minha primeira barba nascer e os cabelos brancos surgirem.
Faz muito tempo que mamãe morreu. Nunca esqueci o brilho em seus olhos, que se conservou até o fim. Nunca esqueci da noite do cometa vindo das profundezas e de minha "viagem" às estrelas. E, apesar de nunca me haver esquecido de tudo isso, essas recordações ficaram por décadas adormecidas em meu íntimo.
Foi então, a questão de algumas semanas atrás, assis-tindo ao noticiário pela TV, que eu soube: o cometa estava de volta. Vinha novamente do desconhecido para, quem sabe, levar mais crianças para o espaço.
Muitas recordações passaram pela minha mente. Fechei os olhos e imaginei-me menino, pequenino, explorando meu mundo, vendo as asas das borboletas faiscarem ao Sol, vendo as verdes folhas crescerem tenras no pomar e ouvindo o gorgolejar do riacho sobre o brilhante cascalho.
Envelheci nesses longos anos. Meu corpo vigoroso encur-vou-se sob o peso da idade. Meu andar tornou-se desajeitado como o de um bebê. Mas conservei a lucidez. Lembro-me de eventos que, para muitos de minha idade, não passam de borrões.
Meus filhos cresceram e me deram lindos netos, atualmen-te adolescentes. Minha amada esposa há algum tempo se foi.
O mundo também mudou. Quando vi o cometa pela primeira vez, voar ainda era uma aventura para homens ousados e inventivos - ou para crianças sonhadoras. Nos dias de hoje, voar tornou-se tão banal quanto andar de bicicleta no parque. Em poucas décadas, os engenhos de vôo evoluíram a incrível velocidade. O oceano foi atravessado. A barreira do som rompida. A força da gravidade vencida. O espaço tornou-se acessível a máquinas e homens. A Lua foi visitada. Também o foram os planetas interiores e mesmo os gigantescos planetas exteriores. Sondas automáticas partem ao Infinito, levando mensagens a possíveis habitantes de outros planetas. As estrelas tornaram-se mais próximas, e não tarda o dia em que um representante da raça humana verá com seus próprios olhos esses estranhos mundos. Pena que não estarei vivo quando esse dia chegar. Gostaria de saber se ele encontrará os lagos prateados e as cidades flutuantes...
A vinda do cometa foi recebida com novos olhos. Uma geração nascida na era da tecnologia e dos computadores viu nele um fenômeno natural a ser analisado e racionalmente compreendido. Sua composição química, as equações matemáticas que regiam seu movimento, a matéria primordial do Universo, tudo estava sendo planejado. Sondas automáticas de altíssima precisão foram previa-mente lançadas para irem pessoalmente "ver" e até "tocar" o Car-rossel de Fogo.
Olhei tudo isso com tristeza. Onde estava a poesia? Onde estava a magia? Toda aquela exatidão e sede de saber estava rou-bando o encanto daquele raro momento. Estava destruindo do coração das novas crianças a doce arte de sonhar.
Um desejo reacendeu-se em mim. Queria retornar a minha terra, a terra onde nasci e passei os primeiros anos de vida. Queria uma vez mais, uma última vez, conversar com as estrelas e viajar com o Mensageiro Cósmico.
Os preparativos foram rápidos. A era da tecnologia pre-disse com exatidão a data da maior aproximação e proporcionou um rápido meio de transporte.
Meus filhos ficaram preocupados de ver um frágil velhi-nho empreender tamanha aventura e talvez até tenha passado por suas mentes a idéia de que eu estivesse caducando. Quiseram aju-dar e me acompanhar. Recusei. Era algo que eu precisava fazer sozinho.
Diversas emoções iam se mesclando em mim à medida em que o ônibus se aproximava. Casas e edifícios de linhas retas, de construção recente, passavam por meus olhos. Ruas antes cercadas por descampados estavam agora asfaltadas e alinhadas. Áreas antes ocupadas pela vegetação deram lugar a lojas, residências, peque-nas fábricas, parques, escritórios e supermercados.
Uma melancólica nostalgia apertou meu coração. Quanta coisa mudara nesses cinqüenta anos...
Meus sentimentos em ebulição passaram a entrar em erupção quando as portas se abriram e, hesitante, pus meus pés na calçada, sendo acolhido por aquela tão antiga e tão familiar atmosfera. Estava um dia lindo. Fiquei uns instantes parado, sentindo o ar preencher todos os recantos de meu peito.
Havia chegado com um dia de antecedência antes da maior aproximação do cometa.
A primeira coisa que fiz foi procurar um hotel para passar a noite e deixar minha pequena bagagem. Encontrei um pró-ximo à colina onde, do lado oposto, ficava a casa que fora o berço de minha infância.
O hotel era pequeno e acolhedor. Escolhi-o por ter uma estrutura antiga e pesada, decorações em arabescos, linhas espi-rais e grossas portas de madeira. Era um testemunho de meu tempo. Uma catedral do passado, rígida e orgulhosa de sua herança. Não dava mostras de temer suas vizinhas modernas, angulosas e impo-nentes. Ainda assim, via-se que não estava totalmente imune às influên-cias da era moderna. Passara por várias reformas, instalações elétricas, água corrente, decoração anos 80, todo um con-traste do ontem e do hoje.
Já em meu quarto, tomei um banho relaxante, pedindo em seguida uma refeição leve, apesar de estar faminto. Depois, dei-tei-me.
Após descansar um pouco, levantei. Fitei no espelho aquele homem idoso, de rugas profundas, camisa branca e engomada, calça cinza bem folgada. Ele tinha um ar cansado à medida em que penteava os brilhantes cabelos brancos, mas conservava no geral um ar de menino. Seus olhos brilhantes e ansiosos denunciavam isso.
Saí, então, do hotel para explorar meu mundo.
Muito embora as novas construções houvessem modificado drasticamente a paisagem, no seu todo esta me era ainda muito familiar. Os contornos das colinas era o mesmo e o traçado das ruas fora conservado.
Décadas se passaram desde que parti e não tinha qualquer esperança de encontrar um rosto conhecido. Inicialmente, explorei os arredores do hotel. Automóveis passavam apressados. Caminhões iam e vinham com suas cargas. Pessoas sérias, carrancudas, anda-vam perdidas em seus próprios pensamentos, ou, quando acompanha-das, conversavam sobre assuntos do dia-a-dia.
Numa banca de jornais vi diversas publicações falando sobre o cometa e a Astronomia de um modo geral. Nas livrarias também foram recentemente lançadas várias obras do gênero. Se esta recente vinda do cometa não estava sendo encarada sob o véu de misticismo que havia no passado, ao menos pôde despertar a atenção pública para a ciência do Universo e fornecer um farto material para os amantes das estrelas.
A exploração comercial em torno do acontecimento me entristeceu profundamente. Até onde ia a falta de sensibilidade do ser humano? Uma fábrica de lâmpadas dava lunetas a uns poucos felizardos. Um tênis mencionava seu nome parecido ao do cometa. Um complemento alimentício propunha-se a dar "a força e a veloci-dade de um cometa". Cadernos, malharias, automóveis, revistas em quadrinhos, discos, relógios, chicletes, bijuterias, bolsas e carteiras, bolas, quase tudo enfim que a indústria consumista pudesse imaginar tinha impresso a figura do cometa e reclamava para si alguma propriedade milagrosa dele.
Entrei por uma rua transversal mais tranquila, ocupada quase exclusivamente por residências. Era bem arborizada de ambos os lados.
As casas eram bonitas. Algumas azulejadas, outras pinta-das de azul, bege ou amarelo. Samambaias penduradas nas paredes ou vasos num canto do quintal refletiam o inconsciente bem estar transmitido pela natureza. Entretanto, o número elevado de portões e cercas com grades pontas-de-lança demonstravam ser essa tranqüilidade um tanto frágil.
Lembro-me de um morador lavando seu quintal, crianças jogando bola e cães latindo ao longe. O Sol aquecendo meu rosto e o céu azul continuavam tão lindos como há cinqüenta anos.
Em minha mente, fragmentos de velhas recordações apare-ciam a todo instante. Vozes e rostos do passado desfilavam ante meus olhos, quando reconhecia determinada esquina, um velho casarão, um perfil de colina. Senti-me como num túnel longo e escuro, tendo de um lado o passado e, do outro, o presente. Estava osci-lando nesse túnel. Ora via as luzes de minha infância e juventu-de, ora via minha imagem refletida no espelho do hotel. Deu-me a impressão que, num momento raro e de estranha beleza, as luzes de cada extremidade se fundiram. Tornaram-se um clarão único, ilumi-nando como um farol marítimo o misterioso oceano do Tempo. E uma crian-ça tímida e pequenina caminhou de mãos dadas com um velho de cabelos brancos e roupas engomadas.
Como posso descrever em palavras as emoções que se apos-saram de mim ao ouvir logo mais à frente o som do velho riacho? Soou em meus ouvidos como uma doce canção a me embalar na nostal-gia.
Apressei meu passo em sua direção.
O riacho mudara muito desde os meus tempos de infância. Suas águas, outrora cristalinas, perderam a transparência. O som puro de seu fluxo contínuo entre as pedras perderam a nitidez, tornando-se abafado e distante. Nas margens, grossas camadas de lodo misturavam-se às raízes do matagal.
Não havia mais peixes, não havia mais camarões. Mesmo o cascalho me era invisível, separado que estava da luz do Sol pelas águas barrentas e pelo lodo mal cheiroso.
Uma alegria ao menos eu tive: a árvore em que costumava descansar ainda estava lá. A idade também se abatera sobre ela, que já era velha antes mesmo d'eu nascer. Seu tronco parecia frágil e, como eu, encurvara-se sob o próprio peso, mas ainda era bela e repleta de folhas. Acariciei seu tronco. Minhas mãos ene-greceram-se com a fuligem de longos anos, mas pouco me importei. Era a "minha" árvore. Sentei-me sob sua sombra amiga.
Relembrei as longas conversas silenciosas que tive na-quele lugar. Um grupo de pardais sobre minha cabeça me fez cogi-tar se não seriam descendentes daqueles outros que, certa manhã, despertaram-me com sua algazarra. Fiquei a observá-los em suas brincadeiras até que se foram, perdendo-se na imensidão.
As horas passaram sem que eu percebesse. O passado inun-dava-me a mente. Uma melancolia profunda fazia com que eu dese-jasse desesperadamente poder voltar no tempo e ser menino outra vez.
Um vento frio disse-me que era hora de retornar ao ho-tel.
Meu lenço ficou preto quando tentei limpar as mãos. Minha calça ficou um pouco suja de terra e o cabelo estava em desalinho.
Ajeitei-me o melhor que pude.
Antes de partir, precisava fazer uma coisa.
Fiquei de pé a beira do riacho, novamente lamentando seu estado. O som de suas águas soava como o gargarejo de uma velha banguela. Revirei meus bolsos até encontrar o que procurava. Era uma pedra. Um pequeno seixo verde e arredondado. Fora o único que restara de minha antiga coleção. Guardada com carinho ao longo dos anos como se fosse um amuleto, acompanhou-me décadas aonde quer que eu estivesse. Era por sinal a única relíquia daqueles tempos que consegui conservar.
Fitei-a por um longo tempo. Tempo... sempre o tempo.
E, então, atirei-a ao ar. Vi quando descreveu, indife-rente, uma pequena parábola até desaparecer nas águas turvas.
"De volta ao lar", foi o pensamento que me veio. Havia emoções demais transbordando em mim para poder expressá-las me-lhor em palavras.
Já no quarto do hotel, após o jantar, fiquei folheando a revista que comprara sobre o cometa. Nele, explicava a origem dos cometas como restos da nuvem primordial formadora do sistema solar. Ao que parece, há mais de três mil anos os chineses já conheciam o "meu" cometa. Pensei num punhado de crianças de olhi-nhos puxados, navegando entre as estrelas com seus rabichos ba-lançando ao vento. Quais seriam seus sonhos então?
Li sobre dados físicos e químicos, sobre uma rede inter-nacional de observação e entrevistas com astrônomos. Os vários satélites, numa frágil imitação, tentariam alcançar o Carrossel Flamejante. Como observá-lo. Como fotografá-lo. Como acompanhá-lo. Estaria, enfim, cercado por todos os lados.
As ondas leves e monótonas da sonolência foram embara-lhando as letras e fui caindo aos poucos num abismo profundo, quente e reconfortante.
Havia o som de vozes. Vozes de crianças ecoavam na escuridão como sons refletindo-se na abóbada de uma igreja vazia. Estava escuro, muito escuro, mas eu não sentia medo. Vi, então, surgindo do nada, uma pequena luz que foi aos poucos aumentando de intensidade. Um clarão passou por mim ao mesmo tempo que as vozes ribombaram em meus ouvidos, para então voltarem a diminuir. A luz foi sumindo, mergulhando novamente nas trevas. Tentei al-cançá-la, mas não sentia meus braços, nem tampouco as pernas. E a luz foi sumindo, sumindo, até que a escuridão e o silêncio reina-ram outra vez.
Abri meus olhos a tempo de ver minhas mãos estendidas para o alto, tentando agarrar o vazio.
"Que estranho...", foi tudo o que consegui pensar, além de indagar sobre o fascinante mistério do mundo dos sonhos.
Esse era o dia. O dia da grande aproximação.
Por mais que tentasse, não conseguia dominar a ansiedade e a expectativa. Os minutos aparentavam prolongar-se em horas; e as horas, em dias.
Enquanto aguardava pela noite, fui visitar o outro lado da colina.
Já no alto, tive a visão da minha rua por onde, certa noite, subi aos tropeços, conversando com as estrelas. Ela estava asfaltada. Os terrenos vazios praticamente não existiam mais e alguns edifícios tapavam a visão do horizonte, tão cara para mim. Uma brisa suave soprou um odor de fumaça que antes não existia.
Porém, apesar dos pesares, amei aquela visão. Mudasse como mudasse, aquele era o meu mundo. O mundo atual era estranho para mim, mas aquele cenário em seu todo, em sua essência, exis-tia dentro de mim, um mundo particular feito de sonhos e esperan-ças que nunca morreu.
Minha velha casa deixou de existir há muitos anos. Em seu lugar havia um prédio que, apesar das linhas retas e moder-nas, dava sinais da passagem do tempo: rachaduras nas bordas, tinta descascando, manchas... Saberiam ou ao menos indagariam seus moradores sobre os sonhos e fantasias que acalentou aquele lugar? Saberiam eles sobre o exército de formigas que por lá marchava em busca de alimento? Pensei na velha casa de reboque, no pomar tenro, no cheiro agradável das flores e das folhas ao raiar do Sol. Pensei em mamãe... todo seu mundo praticamente restrito àquele pedaço de terra sobre o qual assentava aquela construção. Todo um passado quase esquecido. Em minha mente, voltei a ver o brilho de seus olhos. O par de luzes que ilumina-ram aquela fria noite e muitas outras que se seguiram...
Senti que alguém puxava a manga de minha blusa.
- Ei, vovô - disse uma menina sardenta de cabelos dourados, com cerca de sete anos. - Por que tá chorando?
Só então percebi que, sem que me desse conta, lágrimas silenciosas rolavam pela minha face. Embaraçado, peguei meu lenço e as enxuguei.
- Não é nada, não - respondi -, é que estou com resfria-do.
- Ah... tadinho! - disse ela, pensativa. - E o senhor tá chorando porque tem medo de injeção.
Não pude deixar de sorrir ante sua lógica infantil.
- É sim, dói muito.
- Eu também tomei injeção quanto tava doente. Minha mãe falou para pensar numa coisa bem alegre que aí nem ia sentir dor.
- E deu certo? Não doeu? - perguntei.
Ela fez um muxoxo:
- Não adiantou. Pensei no dia que fui passear no parqui-nho, que andei nos brinquedos e comi doces. Mas, então, senti uma pontada no "bumbum" e abri o maior berreiro.
Ri alto, embriagado pela esperteza daquela criança, afastando, assim, a tristeza que antes me dominara.
- Você mora aí? - perguntei, apontando para o prédio que estava a fitar.
- Moro desde que nasci.
Nisso, ouvimos uma voz de mulher, chamando por alguém.
- É minha mãe - disse a menina. - Preciso ir agora. Tchau, vovô!
E lá se foi a menininha, correndo, esbanjando energia.
Uma nova geração crescia naquele lugar, um novo ciclo da vida, com suas próprias lembranças e sua própria história. Um dia, daqui a muitos anos, uma mulher retornaria àquela cidade e se lembraria de sua infância e de seu mundo como se único fosse. E, quem sabe, num recanto mais oculto de sua memória, recordar-se-ia de um efêmero encontro que teve com um velhinho a quem tão carinhosamente chamou de "vovô".
O restante do dia passei entretido, visitando outros lugares, incluindo a velha escola onde me foi desvendado o misté-rio das letras e dos números. Também li um jornal e assisti ao noticiário pela TV.
Apesar de ser um dia de grande importância para mim, observei curioso que as pessoas mal falavam sobre o cometa. Esta-vam presas demais a problemas terrestres. Invariavelmente falavam da crise econômica, dos problemas financeiros, do alto índice de criminalidade, do custo dos alimentos e por aí afora. Afigurava-me distante o tempo em que a vinda do cometa causava medo e as-som-bro, gelando o coração de milhares de pessoas.
A noite chegou finalmente.
Muito embora no hotel o jantar estivesse pronto, saí sem nada comer. Um vento repentino despenteou uma mecha de cabelo tão logo abri a porta.
Fui subindo a colina em passos vagarosos, com os olhos voltados para o chão. Receava olhar para o alto antes de haver alcançado o topo. Um temor interior parecia me dizer que as es-trelas fugiriam se assim o fizesse.
Passo a passo, fui atingindo meu objetivo. Desta vez não tropeçaria mesmo que estivesse de olhos vendados devido à rua asfaltado e à calçada cimentada.
Ouvia sons de vozes, automóveis, cães latindo, música de algum toca-discos esquecido. Porém, o som das batidas de meu coração soava mais alto.
Já no alto da colina, olhei ao redor. Milhares de luzes brilhavam na escuridão, quase transformando a noite em dia. "Lu-zes demais", pensei. Não ouvia o cantar do grilos, nem qualquer vegetação em que eles pudessem sobreviver.
Respirei fundo. Vagarosamente, voltei meus olhos para o céu.
Se pudesse imaginar a sensação que teria um alpinista ao chegar no cume de uma montanha e ver nele fincado uma outra ban-deira que não a sua, deveria ser a mesma sensação que estava sentindo naquele instante.
Olhando aquele céu de aspecto leitoso, uma pergunta perfurou meu cérebro: "Onde estão as estrelas?"
Procurei, procurei, tentando encontrar, naquela imensidão escura, as luzes que tanto amava. As poucas que encontrei davam facilmente para se contar nos dedos.
Os anos pareciam não só haver eliminado os vestígios de minha infância, mas as próprias estrelas no céu. Lembrava-me nitidamente da noite em que, pequenino, conversara com elas. Havia milhares, como infinitos pontinhos fosforescentes de plânc-ton no vasto oceano cósmico.
Senti-me abatido. O Mensageiro das Estrelas transfor-mou-se num sonho vago e distante. E o sonho da noite passada assumia o aspecto de uma triste profecia realizada.
Havia toda a eternidade naqueles segundos silenciosos, naquele céu, naquelas fracas e distantes luzes.
Abaixando os olhos, reparei pela primeira vez num rapaz nas proximidades. Estava ao lado de um telescópio equilibrado por um tripé. Seu ar aparentava tanto desolamento quanto o meu. Cami-nhei em sua direção.
Ele me viu chegar, mas continuou concentrado em seu telescópio. Vestia um espesso casaco e, tudo indicava, iria pas-sar a noite em vigília. Trouxera uma cadeira de alumínio e lona, daquelas usadas na praia, e, ao seu lado, uma garrafa tér-mica refletia os metálicos brilhos das lâmpadas próximas.
- O céu está vazio... - murmurei.
- Sim. E isso é terrível. - respondeu ele numa voz aba-fada, tirando os olhos de seu aparelho. - Esperei anos e anos por essa oportunidade. Juntei cautelosamente minhas economias para adquirir este telescópio, olhei para o céu, aguardei pela vinda do cometa. Há meses venho tentando enxergá-lo entre as nuvens. Nada. Essa maldita poluição e as luzes das casas e das ruas apa-garam minhas esperanças.
- Já tentou ir a um local mais afastado da cidade?
- Sim, mas não adiantou. Outros colegas meus tentaram e também não obtiveram sucesso. Teve até um, mais rico, que embar-cou num avião para subir até acima das nuvens, longe das luzes e da poeira. Apesar de ver um céu mais límpido, não avistou o come-ta.
Ficamos uns minutos em silêncio, enquanto ele me oferecia uma xícara de chocolate quente.
Depois de sorver o último gole, ele passou a me explicar como essa vinda do cometa se tornou o grande fracasso astronômico da década.
- Tudo estava sendo preparado - continuou. No mundo inteiro, todos esperavam que o cometa surgisse majestoso para que pudessem vê-lo. Mas qual nada. Sua órbita estendeu-se longe de-mais da Terra e mesmo os mais potentes telescópios do planeta só conseguiram obter fotografias medíocres.
- Eu penso que o Carrossel de Fogo se assustou com tamanha euforia - repliquei.
- Como assim?
- Acho que ele se intimidou de ver tantos olhos a procu-rá-lo, tantas máquinas empenhadas em caçá-lo. Creio que ele se sentiu acossado e... decepcionado.
O rapaz me fitou sério.
- Decepcionado? Como assim?
- Bem... - respirei fundo, olhando para a escuridão. - Houve um tempo em que as pessoas acreditavam nos sonhos. Amavam ou odiavam, riam ou choravam, mas de qualquer maneira, acredita-vam. O cometa fazia parte disso. Sua chegada vinha envolta em temores e esperanças, trazendo à tona novos sonhos. Suas asas flamejavam na noite como uma imensa ave de rapina, flutuando ao vento. Ele vinha de geração a geração, saído das trevas do esque-cimento, para colher as pessoas da Terra e levá-las ao reino dos céus. Mas tudo acabou. Chegou a Era da Compreensão, a Era da Certeza, com suas máquinas, a Ciência e a Tecnologia. O mundo deixou de ser um lugar misterioso e fascinante para se tornar reduzido a um conjunto de fórmulas numa fria e escura lousa de escola. Os sonhos morreram e, com eles, foi-se a razão de viver do cometa. Assim, triste e desiludido, suas chamas perderam o brilho, seu voar deixou de ser majestoso. E, agora, não vê a ora de retornar à escuridão para, talvez, jamais aparecer.
O rapaz que até então ouvira atentamente, esboçou um sorriso irônico.
- É uma bonita estória... para crianças ingênuas. O cometa não é um Carrossel de fogo, mas tão somente um bloco de gelo a vagar, obedecendo as leis da gravidade. Apenas isso. Seu fascínio reside em não sabermos exatamente a sua origem, sua exata composição e distribuição no Universo. E a minha frustração é não poder vê-lo, sabendo que não mais terei uma oportunidade como essa.
Depois voltou a se concentrar no telescópio, ajustando botões, olhando pela ocular e pela luneta de busca. Aparentemente encerrara a conversa e se esquecera por completo de minha presen-ça.
Fiquei a observá-lo. Senti pena dele. Ele, assim como eu, amava as estrelas, porém a seu modo. Em seu mundo não havia lugar para duendes, sacis, fadas ou fantasmas. Para ele, Ícaro nada mais foi do que um devaneio psicológico de uma mente sonha-dora. Para ele, a Lua era apenas um corpo morto, cravejado de crateras, a orbitar o planeta Terra. O cantar das ondas na praia era apenas um som monótono ocasionado pelo deslocamento de ar. Seu mundo era seco e duro como uma rocha.
Olhei mais uma vez para o céu.
"Por que vocês me enganaram? Por que me negaram o privi-légio de vê-lo mais uma vez?", perguntei em pensamento as poucas estrelas visíveis. "Será que cresci demais? Vocês me disseram certa vez que mesmo as pessoas grandes poderiam navegar a seu lado. Que existia uma chama diminuta a brilhar dentro da gente e que poderia, um dia, crescer e a tudo iluminar."
As estrelas continuavam a cintilar. Não havia nenhum ruído perto além de minha própria respiração e do rapaz que con-tinuava a mexer no telescópio.
Olhei ao longe para as incontáveis luzes das casas e das ruas. Deu-me a impressão que as estrelas que faltavam no céu haviam caído na Terra, cobrindo os morros ondulantes de purpuri-na.
Olhei para o lugar, rua abaixo, onde um dia existiu minha casa. Quantos anos se passaram...
Então, subitamente, das profundezas de meu ser, vindo à tona como trovões longínquos se convertendo em tempestade, ouvi aquele familiar coro de vozes, crescendo e crescendo até se tor-nar audível: Nós não nos esquecemos de você. E olhei para o céu.
Lá estava ele: o Carrossel de Fogo, o Mensageiro das Estrelas, o Ícaro Celeste. Era apenas um brilho como se mais uma estrelinha fosse, mas eu sabia que não era. Meu coração só faltou explodir.
O Carrossel de Fogo brilhou só por alguns momentos, e, então, apagou-se para sempre no vazio. Compreendi a magia daquele momento e acenei um adeus. Senti os olhos úmidos, mas desta vez as lágrimas não rolaram. Só pude dizer baixinho:
- Obrigado...
O rapaz, notando minha agitação, indagou:
- O que houve? Por acaso não está passando bem?
- Oh, não é nada - respondi. - É que acabo de ver o "meu" cometa.
- O quê?! Como? Onde? Diga-me!
Apontei para a posição exata no céu e ele rapidamente ajeitou seu instrumento
- Onde está? - indagou instantes depois. - Não estou vendo nada!
- Ele está lá - apontei novamente. - Está retornando ao país da noite eterna para esperar o momento em que a humanidade volte a ser criança outra vez.
Tirando os olhos do telescópio, ele me fitou e disse:
- Deve ter sido um satélite artificial ou um meteoro penetrando na atmosfera. Jamais voltarei a ver o cometa novamen-te.
- Quem sabe?
- Como assim?
- Quem sabe se você um dia aprender a ver não com os olhos ou com o cérebro, mas com o coração.
Ele ia dizer alguma coisa, porém se conteve. Deve ter achado inútil continuar aquela conversa com um velho, cuja sani-dade oscilava entre os dois extremos. Não me importei. Sentia-me feliz.
Despedi-me do jovem amante das estrelas.
A noite estava fria. Com as mãos nos bolsos do casaco, sentia o calor reconfortante que emanava do tecido. Ao longe, cães uivavam seu lamento.
Fui descendo a colina em direção do velho hotel. Meus passos ressoavam no asfalto escuro. Uma fina neblina começava a descer, tornando o horizonte translúcido e transformando os vul-tos ao redor num cenário londrino.
Uma longa viagem me aguardava na manhã seguinte.
Voltei a olhar para trás mais uma vez. Não sentia tris-teza e nem lamentava deixar aquele lugar. Não estava deixando o passado para trás, mas levando-o comigo, no brilho de meus olhos e na fornalha de meu coração.
NOTA DO AUTOR:
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