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O ÚLTIMO CREPÚSCULO

O ÙLTIMO CREPUSCULO

Roberto Schima


Era noite de verão, quinto mês do primeiro ano do perío-do Tschiho. Muitas estrelas tremulavam no céu sem nuvens, aparen-temente afetadas pela brisa que, oriunda das montanhas, soprava a poeira das antigas ruas de K'hai Feng, a capital.
Sobre uma elevação rochosa, dominando a cidade, locali-zavam-se as imponentes torres do castelo do imperador. Seus te-lhados recurvados encontravam-se mergulhados nas sombras, exceto em alguns pontos onde as tochas brilhavam, iluminando parte das muralhas. Guardas caminhavam devagar pelos terraços; alguns boce-javam, escorando-se em suas lanças.
Num dos terraços, particularmente isolado das demais dependências, estava Yang Wei-Te, sábio de meia idade e funcioná-rio imperial. Sentia a tranqüilidade reinante invadir seu ser sob a forma de perfume. Vindo das milhares de flores dos jardins, inundava a noite em enebriantes ondulações. Inspirava e expirava devagar, saboreando. Um pouco mais abaixo havia uma fonte. Yang Wei-Te não a via, oculta que estava em meio à escuridão, mas a conhecia e podia ouvir o murmúrio da água cochichar em seus ouvi-dos o segredo da chuva. Pensou no mármore branco de que a fonte era feita e nas imagens de dragões que a ornamentavam. Suspirou.
Alguns grilos cricrilavam nos arbustos. Chamas tremelu-ziam em lanternas de papel. Sombras dançavam ao sabor da brisa vinda do leste. Os deuses estavam alegres.
"Quanta paz, quanta harmonia, quanta solidão...", refle-tiu, sentindo-se filósofo. Entretanto, não havia paz em seu ros-to, nem harmonia em seu espírito. Ele estava só sem se encontrar sozinho. Ajeitou-se sobre a almofada e estreitou mais os olhos amendoados, erguendo a cabeça para o céu. Um turbilhão de estre-las sorriu. Vez ou outra fazia anotações sobre a mesinha laquea-da, e suas faces adquiriam uma tonalidade avermelhada por causa das lanternas.
- Mais - ordenou Yang Wei-Te, perturbando a paz das flores e dos grilos.
Atrás dele, um vulto se moveu num roçar de seda e, sem falar coisa alguma, depositou nova folha entre as tintas e pin-céis. Ele, então, grunhiu um agradecimento e a silhueta tornou a se fundir com as trevas.
Por volta da meia-noite, a constelação do Porco princi-piou a surgir no horizonte oriental. Algum tempo depois, apareceu uma estreita faixa da lua nova e a constelação do Galo.
O olhar atento de Yang Wei-Te perscrutou as estrelas daquela parte do céu, conhecida pelo nome de Tigre Branco, e ele pincelou alguns ideogramas na frágil folha de papel de arroz. A mão tremeu. Sentia medo e não era para menos. Sua vida dependia disso e, não fosse pela presença dos auxiliares, teria chorado de desespero.
Um dos grilos recomeçou a cricrilar. Foi imitado por outro e mais outro.
O sábio orou aos deuses em pensamento, ignorando o per-fume dos jardins, o sopro do vento em seu rabicho, a fonte fazen-do chuva, os insetos sob a folhagem. O mundo inteiro, toda a China, não existia para ele. Havia apenas a imensidão misteriosa do céu e os pontinhos de fogo que nasciam. Suspirou mais uma vez.
Foi o momento mais triste da vida de Yang Wei-Te.



Em outro tempo e lugar, há milhares de anos perdidos, uma voz transformada em melodia cantarolou. Era como o som da cigarra choramingando momentos antes do crepúsculo, sem saber se seria ouvida. Todavia, quem cantava naquela tarde de sol jamais vira uma cigarra, e, se visse, emitiria uma interjeição de assom-bro e reconhecimento.
- Tralalalá... Lalarali... Tralarali...
Seu nome era Ginécia e ela alisou uma, duas, três vezes as suas delicadas antenas azuis. O tempo seco e abafado trazia infinitas partículas de poeira que aderiam como pragas nas co-lheitas. Encolheu os ombros, aliviada.
"Pronto, finalmente eu posso ouvir e cheirar direito. Droga de pó, ainda acabo pegando uma alergia", pensou, movimen-tando o par de antenas num bailado sinuoso.
Estava uma tarde quente, muito quente. A cozinha asseme-lhava-se a um forno ligado ou a uma câmara de vapor. Ela sabia descrever com exatidão o que estava sentindo o bolo de néctar que estava assando para o chá das quatro.
- Tralalalá... Lalarali... Tralarali... - Sua voz era o sussurro do vento nas dunas de areia. Cantarolou baixinho, acom-panhando a música do rádio-laser, mexendo aqui e acolá com suas ágeis mãos. Talheres de ouro avermelhado e prata alaranjada. Taças de diamante, pratos de magma endurecida. - Tralalalá... Lalarali... Tralarali...
Do lado de fora, na varanda espelhada, seu marido, An-trópio, tirava um cochilo numa velha rede de fibras prateadas. Seu rosto trazia reflexos avermelhados do gigantesco sol vermelho que parecia a tudo envolver. A poeira escaldante acumulava-se insolente nas reentrâncias de seu corpo escamoso. Ele parecia não ligar.
Ginécia esticou o pescoço e olhou pela janela. Viu o marido espreguiçar-se, sua boca abrir-se num enorme bocejo e ele voltar a dormir como um menino satisfeito, após um dia cheio de travessuras.
"Nós, donas de casa, também deveríamos ter nossa aposen-tadoria. Também deveríamos ter a nossa rede estendida na varanda para podermos dormir nas tardes quentes de verão."
Alisou os quadris doloridos com as azuis mãos inferio-res, enquanto as mãos superiores apanhavam garfos de ouro para testar a firmeza do bolo. Seu avental gorduroso ondulava desani-madamente. Abriu a caixa de vidro. Uma névoa quente envolveu seu rosto, incomodando-a. Ao menos o aroma estava delicioso. Cutucou com o garfo, ares distantes, longe dali. Tornou a fechar.
Transeuntes atravessavam as ruas de prata, usando seus macacões de prata e sombrinhas de prata. De vez em quando, carros de prata passavam velozes, levando pessoas apressadas a lugares de prata. Talvez fossem mais cientistas rumando para os Laborató-rios Prioritários de Resfriamento Anti-Solar. Ou, então, talvez fossem simples cidadãos migrando de um lado a outro, procurando por climas mais amenos. Mais algumas semanas e a cidade acabaria se transformando numa cidade-fantasma. Seja como for, levantavam nuvens de poeira para desagrado de todos.
Uma brisa fugidia trouxe um cisco nos olhos múltiplos de Ginécia. Praguejou baixinho. Custou para tirá-lo, mas conseguiu à custa de muitas lágrimas.
Subitamente, sentiu um arrepio no alto da cabeça. Suas antenas sensíveis captaram a conversa de dois moradores. Enrola-ram-se uma na outra, melhorando a recepção.
- ... e esse governo também não ajuda em nada! - dizia um deles.
- Que é isso - replicou o outro. - Desde que o sol come-çou a inchar, o governo tentou, a todo custo, minimizar o sofri-mento da população. Não seja injusto. Você não viu os refletores peliculares de prata que foram colocados em órbita? E os telhados prateados distribuídos à comunidade? Vestimentas especiais, car-ros de prata, refrigeradores ambientais e tantas outras coisas cobradas em suaves prestações. Tem até mesmo satélites e estações espaciais a meio caminho entre o planeta e o sol, monitorando constantemente o espectro, as emissões de rádio, o vento solar, a fusão atômica e mais um monte de fenômenos que não compreendo.
- Certo, certo, certo. Porém, você não pode negar que o governo tem sido muito parcial.
- Parcial? Como?
- Oras! Ouvi falar que tem gente fretando aeronaves do Estado para se mudarem até latitudes mais elevadas, próximas dos pólos, onde a temperatura é mais tolerável. Dizem que tem muito filho de governador e vereadores envolvidos...
Ginécia tentou desviar sua atenção da conversa, contudo, não resistiu em ficar ouvindo só mais um pouquinho. A conversa estava interessante. Ela sabia que era feio bisbilhotar, mas quem é que os mandou tagarelarem perto de sua casa? Além do mais, ela era mulher. Alguém a culparia por isso? As antenas continuaram enroladas.
O tom de voz era grave:
- Meu caro jovem, não sei quem lhe passou tais informações. Devo alertá-lo quanto a falsidade das mesmas e a uma maior precaução quanto a sua disseminação.
"O governo é terminantemente contra as idas às proximi-dades dos pólos. Nenhuma aeronave governamental está sendo utili-zada para esse fim. Aliás, o uso delas tem se concentrado basi-camente na prestação de auxílio médico e de material nos territó-rios de difícil acesso. O governo tem advertido aos aventureiros quanto aos perigos de inundações e avalanches, pois os pólos estão derretendo rapidamente."
- Hum... Tudo bem, pode ser que eu esteja enganado. Talvez eu esteja sendo precipitado... Que tal irmos até a cantina molhar um pouco a garganta e falarmos com mais calma a respeito?
- Vamos sim. Esse calor ainda acaba comigo.
As vozes se tornaram imperceptíveis e Ginécia retomou o seu trabalho. Suas antenas azuis se desenrolaram sem pressa em movimentos serpentiformes.
Pelo rádio-laser, ela já tinha ouvido vários informes sobre o bizarro fenômeno que estava se processando com o sol. Políticos e cientistas estavam, constantemente, tentando tranqüilizar a população sobre a temporariedade do evento. Segundo os astrofísicos, o sol entrara num estágio de flutuação no qual o núcleo superdenso sofrera uma súbita compressão, aumentando sua temperatura. Esse acréscimo de calor no inferno de hidrogênio e hélio estaria forçando as camadas superiores a se expandirem. Consequentemente, o sol estava aumentando de volume, fazendo a temperatura do planeta subir sensivelmente. Porém, asseguraram os cientistas, em breve o núcleo esfriaria e o sol retornaria ao estado normal.
Ginécia nunca se interessara por Astronomia. Na melhor das hipóteses, preocupava-se com as estações do ano, datas de aniversário e a beleza das três luas à noite. Antrópio também considerava os problemas do dia-a-dia mais urgentes do que qual-quer verão inesperado, conforme dizia. E, depois que ele se apo-sentou, seus problemas mais urgentes se resumiram em decidir se dormiria na varanda ou se iria jogar xadrez holocinético com velhos companheiros no bar da esquina.
Fazia tempo que Antrópio não dirigia uma palavra de carinho à esposa. Às vezes, Ginécia se pegava pensando a respei-to. Uma leve sombra de melancolia ameaçava envolvê-la e, rapida-mente, chacoalhava a cabeça, repreendendo-se. Ela ainda o amava. Após todos esses longos anos de casados, ela o amava. Sabia de todos os defeitos e manias dele, bem como de suas qualidades. Compreendia-o com uma paciência ilimitada e sentia, bem lá no fundo, que Antrópio também a amava e que não poderia viver sem ela. Era, não obstante, um amor feito de silêncio, sedimentado por antigas lembranças, acomodado pelos repetidos verões e por rugas carregadas de poeira.
O forno sônico começou a piscar, interrompendo seus devaneios. Cuidadosamente, ela tirou o bolo dourado. Um forte odor de néctar espalhou-se pela casa como teias de aranha num sótão esquecido. Com uma das mãos, passou a cortar o bolo em fatias. Com outra, pegou um bule de chá. Com outra, separou co-pos, guardanapos, colheres e garfos. A última mão permaneceu apoiada nos quadris. Seus quatro sapatos prateados produziam um som reverberante no assoalho de prata. Um som que se espalhava pelas paredes termo-isolantes, silenciando-se no teto.
Um carro de prata cruzou a rua em rápidos reflexos. Formaram-se redemoinhos. a nuvem de poeira assentou-se lentamen-te, flutuando na atmosfera tórrida e parada. Miragens de poças d'água nas estradas surgiram e desapareceram.
- Pronto. Está lindo... - murmurou Ginécia, olhando a mesa posta. O bolo no centro da mesa hexagonal continuava a fume-gar. A toalha rendada estava impecavelmente limpa e cheirosa. A mesa parecia muito grande para duas cadeiras apenas. - É uma pena não termos filhos. - tomaram essa decisão antes mesmo do casamen-to; decisão que ela lamentou posteriormente, quando era tarde demais.
Lá fora, sombras se alongavam sob o sol gigante do verão inesperado. Antrópio roncava sonoramente como o motor de um cão-de-guarda eletrônico.
Ginécia consultou o relógio, perguntando-lhe as horas.
- Quinze horas, dezessete minutos, quarenta e três se-gundos - informou o aparelhinho cintilante, colado na parede ao lado da lavadora-robô.
Estava na hora de chamar Antrópio. Tomariam chá em si-lêncio, comeriam em silêncio. Ele diria: "O bolo está uma delí-cia". Ela responderia: "Obrigada". Ele resmungaria sobre o calor. Ela concordaria. Ele voltaria para a varanda. E ela desarrumaria a mesa, esperando a hora de preparar a janta.
Suspirou.
Estava se dirigindo à porta de tela que dava acesso à varanda, quando sua antena direita captou um som estridente. Era um ruído pavoroso e dava a impressão que pretendia perfurar o cérebro de um canto a outro. O pequeno rádio-laser estava gri-tando, anunciando notícias urgentes. Ginécia, meio interessada, parou para ouvir na esperança de ter algo novo para contar a Antrópio. Metade de seus braços estava apoiada no batente da porta e a outra metade segurava a fina tela de prata. Seus olhos múltiplos azulados focalizaram o interior da cozinha, detendo-se no rádio-laser.



Yang Wei-Te acompanhava o lento avançar das constelações na abóbada celeste e, em cada estrela, via o brilho dos olhos do imperador Sung. Tentou se concentrar.
O imperador andava muito aborrecido ultimamente e tinha suas razões. Uma parcela respeitável das plantações de chá havia sido perdida. Os bárbaros estavam reorganizando suas tropas nas fronteiras do Império a fim de lançar um novo ataque. Havia boa-tos sobre a vinda de um devastador terremoto, sendo que o ante-rior levara uma de suas concubinas favoritas.
Na última audiência que concedera ao seu calculador de calendários, fora bastante claro:
- Yang Wei-Te, alerte-me sobre sinais de mau agouro no céu. Fique atento. Se um terremoto está para vir, se uma morte está para chegar, eu quero saber com antecedência. Lembre-se de Hsi e Ho!
A última observação fizera gelar o sangue do astrônomo. Ele conhecia bem a história infeliz de Hsi e Ho, os dois astrôno-mos imperiais que há mais de três mil anos foram decapitados por não terem previsto e avisado antecipadamente sobre a vinda do dragão.
Naquela época, o dia tinha corrido calmo, quando, repen-tinamente, um dragão tentara devorar o Sol. Na primeira mordida, ele levara uma parte do disco. Depois, fora a metade e, por fim, o Sol inteiro sumira na goela do dragão, ficando somente um fan-tasmagórico halo de luz branca rodeando um disco negro em seu lugar. O céu se apagara e a escuridão envolvera homens e mulheres que gritaram de horror. O medo trouxera consigo a coragem e, seguindo a idéia de alguém, passaram a xingar e a fazer barulho com tambores e instrumentos sagrados. Berraram, berraram e berra-ram. Demorara, mas, finalmente, o dragão, assustado, regurjitara o Sol e fugira para o limbo. O povo conseguira salvar o Sol, entretanto, nada salvara os astrônomos da ira do então imperador.
Inconscientemente, Yang Wei-Te levou uma das mãos ao seu próprio pescoço. Um dos auxiliares, aquele que lhe passara a última folha de papel, percebeu o movimento e engoliu em seco.
Pouco a pouco, a aurora principiou a surgir no horizon-te, apagando as estrelas.
Tanto Yang Wei-Te quanto seus dois auxiliares aguçaram a vista naquela direção para ver se descobriam algum cometa, sabido mensageiro de maus presságios. Rezaram nervosos para que tal não acontecesse.
Uma tênue neblina cobria o horizonte como uma mortalha.



O rádio-laser gritou para Ginécia:
- Atenção! Urgente! Atenção, todos! A estação interpla-netária de estudos solares, MAGMA IX, acaba de anunciar: nosso sol explodiu. O núcleo em fusão entrou em colapso. Desabou sobre si mesmo e, com o brilho de cem bilhões de sóis, estourou, espar-ramando matéria e gases em todas as direções num inferno inimagi-nável.
"Devido a enorme distância que nos separa dele, levare-mos ainda vinte minutos para sentir os efeitos da catástrofe cósmica."
Havia uma morbidez paranóica naquela voz, a medida em que o locutor prosseguia, descrevendo os efeitos.
- A temperatura atingirá milhares de graus, derretendo todo o planeta. O oceano se converterá num caldeirão fervente. A onda de choque arrastará a atmosfera para o espaço. Haverá o desequilíbrio na gravidade que nos une à estrela, bombardeio radioativo e prováveis choques contra o material solar. Um frio súbito se fará presente então, transformando o planeta num imenso bloco gelado a vagar morto pelo vazio do espaço rumo à escuridão infinita.
"É o fim de tudo.
"O governo central pede desculpas ao povo por ocultar, durante tanto tempo, esse destino inevitável.
"Restam dezoito minutos... que valham por uma vida!"
A voz transtornada voltou a repetir o noticiário frene-ticamente desde o início, contando o tempo.
Partículas de poeira flutuavam no ar em meio ao feixe de luz diagonal que penetrava pela janela da cozinha. O bolo ainda fumegava. Ginécia, sob o umbral, fitava fascinada o pequeno rá-dio-laser. Do lado de fora, o sol brilhava intenso, vermelho, preguiçoso e ameaçador. Alguns gritos vieram de longe e foram enfraquecendo. As antenas azuis captaram uma algaravia incompre-ensível que gradualmente sumiu. Alguns carros cruzaram a rua a toda velocidade, contudo, logo as vias públicas ficaram desertas na cidade já carente de habitantes, dos mies que não retor-naram. Além do rádio-laser, tudo o mais ficou em silêncio.
Ginécia, como que desperta de um sono profundo, correu pela varanda.
- Acorda, Antrópio, acorda!
O homem sobressaltou-se. Antenas enrijeceram.
- Como? Quem? O quê?
- Acorda, querido.
- Por quê? O que foi, mulher?
- Vamos ver o pôr-do-sol. - As mãos de Ginécia, todas as quatro, seguravam fortes os braços do marido. - Vamos!
A rede de fibras prateadas rangeu. A poeira que cobria o peito e o dorso de Antrópio começou a cair como absurdos flocos de neve na tarde quente de verão. Era o verão inesperado, o verão do apogeu da vida diante do outono da existência.
- Ficou maluca! Acordar-me desse jeito só para ver o pôr-do-sol! E ainda nem é hora! Olha lá - apontou -, o sol ainda tá alto no céu. O calor está de matar, e...
Ginécia encontrava-se agora à beira das lágrimas. Fez o possível para conservar o autocontrole. Suas mãos continuaram firmes.
- Por favor, querido, faça isso por mim - disse pausada-mente, encarando-o. - Vamos ver o pôr-do-sol, por favor.
O velho aposentado hesitou, analisando a esposa, descon-fiado. Girou a cabeça para a rua abrasadora, indolente, vazia. Aquilo não era um momento propício para se ficar tostando ao sol. Era ridículo! Imaginou um refrigerante bem geladinho.
- Estou com sede.
Ginécia nada respondeu, continuando a fitá-lo com inten-sidade, pedindo em silêncio.
Por fim, Antrópio cedeu.
- Tá bem, tá bem. - Soltou um bocejo. - Mas depois você me deixa dormir até mais tarde, promete?
- Prometo - disse Ginécia, baixinho.
Foram andando até o topo de uma colina próxima, onde havia um pequeno toldo refletor e, sob ele, algumas mesas e ban-quetas para piqueniques.
As ruas, estradas e avenidas estavam silenciosas. Rede-moinhos de poeira dançavam em torno de latas vazias, brinquedos quebrados, sapatos abandonados. As poucas pessoas que restavam na cidade estavam em suas casas, nos quartos, salas e alpendres. Todas silenciosas agora. Cada qual tinha ao seu lado algum ente querido: um pai, um irmão, uma mãe, uma irmã, avós, primos, fi-lhos, netos, sobrinhos, um marido, uma esposa, uma namorada, um amigo. O mundo estava em silêncio. Somente Antrópio resmungava, enquanto subiam, mas, depois, ele também se calou, fatigado.
Sentaram nas banquetas. Ao longe, avistaram as dunas onde, anos atrás, havia um bonito bosque. O ar tremulava rente ao chão, distorcendo a paisagem. Edifícios inteiros tinham sido deixados para trás e davam a sensação de derreter como sorvetes de casquinha. A represa, agora, mal passava de uma lagoa de água quente. Seria realmente verdade que seu mundo outrora fora fres-co, vivo, próspero e movimentado? Não teria sido um sonho? Ou o sonho seria o atual momento?
Ginécia se abraçou ao marido, sob a proteção do refle-tor, e disse em tom de confidência:
- Antrópio, eu te amo.
Surpreso, depois de tantos anos, ele engasgou, ficou sem jeito, sem saber o que dizer. Sentidos adormecidos despertaram.
- Ginécia...
- Obrigada pela vida que tem me dado. - E se abraçou mais forte a ele, ocultando o rosto.
Uma rajada de vento agitou o toldo.
As palavras vieram arrastadas, trazidas com dificuldade do âmago de Antrópio, do velho Antrópio, do jovem Antrópio.
- Eu também te amo, Ginécia.
- Querido.
- Querida.
Na grandiosidade de um momento, as antenas de um se entrelaçaram com as antenas do outro e eles se beijaram. Toda a história de duas vidas compartilhadas renasceu. Ecos e mais ecos e mais ecos. Centenas de Ginécias e centenas de Antrópios lotaram o exíguo espaço no topo da colina. Não era mais verão, e nem outono. Era primavera.
E assim, tão próximos em corpo e espírito, ficaram a observar o horizonte, o céu vermelho, as construções de prata em infinitos reflexos tardios.
Se Antrópio notou alguma coisa na quietude dominante, não deixou transparecer.
O bolo de néctar parou de fumegar.
O ar parou completamente.
Chegou o pôr-do-sol.



Yang Wei-Te sobressaltou-se, derrubando papéis, pincéis e vasilhames de tinta na mesinha laqueada. Suas anotações se transformaram num borrão pegajoso e escuro. As lanternas de papel tremeram, atraindo a atenção de um dos guardas na muralha mais próxima.
- O que foi, senhor? - indagou um dos auxiliares, alar-mado.
- Olha lá! Olha lá! - apontou o sábio. - Lá, perto da estrela Thien-kuan!
Os auxiliares seguiram o dedo do mestre e, sobre a ne-blina formada pouco acima do horizonte, eles também viram aquilo. Aparentemente, suas preces não foram atendidas. Vislumbraram machados brilhantes, cabeças rolando em cestos de palha. Ou pode-ria ser que não. Pior seria se não tivessem visto. O objeto lumi-noso foi subindo com as estrelas, fugindo da aurora que emergia. Ao invés de diminuir, seu brilho branco-avermelhado cresceu e cresceu.
- Desastre! - gritou um dos auxiliares.
- Terremoto! Furacão! - completou o outro.
Para surpresa de ambos, Yang Wei-Te deu uma gargalhada.
- Nada disso. Nada disso. Nada disso. - Pulou e rodopiou pelo terraço.
O guarda chamou um companheiro e ambos observaram o funcionário imperial dançar como uma criança. Menearam a cabeça, crentes de que o homem havia enlouquecido.
Os gritos de Yang Wei-Te espalharam-se pelos jardins do castelo, perderam-se na fonte de mármore, expulsaram os grilos de uma vez por todas.
Era um sinal de bom presságio.
Após alguns instantes de solene silêncio, Yang Wei-Te solicitou a seus auxiliares que prosseguissem com as observações, enquanto ele, muito orgulhoso, foi narrar sua descoberta ao impe-rador Sung.
- Observei o nascimento de uma estrela, honorável impe-rador - contou horas depois.
A estrela recém-nascida foi admirada em toda a China. Ela brilhou dias seguidos, mesmo com o Sol a pino.
As plantações de chá se recuperaram.
Os bárbaros foram repelidos.
Não houve terremoto.
Foi o momento mais feliz da vida de Yang Wei-Te.


NOTA DO AUTOR:
Para maiores informações, inserir meu nome no Google ou acessar:
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http://marcianoscomonocinema.blogspot.com/search/label/Roberto%20Schima

 
   
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