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PRESENTE DE NATAL

PRESENTE DE NATAL

Roberto Schima

Ele se materializou na escuridão do céu, em meio a uma esfera de luz azul que logo esvaeceu. Ouviu seus animais bufarem de alívio; estavam retornando para casa e sabiam disso. Não precisou dar qualquer instrução para as renas. Sentindo o odor penetrante da neve, elas espantaram a fadiga do corpo e puseram-se em marcha na vastidão boreal da longa noite polar. Seus cascos pesados desafiaram as nuvens, reveladas somente por um arco de lua e brilho ocasional de uma aurora.
O trenó voava em silêncio, deslizando por rajadas frias de vento, tão geladas quanto os espíritos da neve a vagarem pelas planícies do Ártico mais abaixo.
- Finalmente, conseguimos terminar - desabafou o velho numa voz grave e gentil, porém cansada. - Pensei que não fôssemos conseguir...
Uma das últimas renas que puxavam o trenó virou-se para trás, num olhar interrogativo. Avistou seu amo sob o pálido luar, encolhido dentro do casacão vermelho, e os olhos grandes ficaram cheios de lágrimas. Nunca vira Papai Noel tão abatido assim.
- Tudo bem, patrão? - perguntou, preocupada.
- Hã? Oh, Clarice, sim, eu estou bem... agora estou.
- Podemos pousar perto daquela geleira - acenou com o focinho -, se o senhor quiser descansar um pouco.
O velho de barbas brancas comprimiu os olhos, erguendo um pouco o gorro de sobre a testa. Avistou o gigantesco manto de gelo e neve desfilar sob si a medida em que o trenó descrevia uma curva no ar. Era um tabuleiro espesso e tão antigo quanto o tempo dos mastodontes e rinocerontes lanudos; apesar da tênue luminosidade, podia-se perceber sua cor azulada, as fissuras e estranhas esculturas modeladas pelo vento. Parecia aconchegante. Tão vazio, sereno e irreal como num conto de fadas. Fendas profundas cortavam sua superfície. Rajadas repentinas roubavam parte da neve depositada, erguendo-a num delicado véu glacial. Papai Noel suspirou antes de responder, e o vapor de sua respiração perdeu-se rapidamente no ar.
- Não, Clarice, vamos seguir em frente, para o norte. Vamos para casa.
- Como quiser, senhor.
Os animais aceleraram, fazendo o vento assobiar em todas as orelhas. Sinos tilintaram. Encontravam-se tão cansados quanto o velho, embora possuíssem uma disposição física maior que a dele. Fora uma viagem bastante demorada, percorrendo estrelas e planetas nesse subúrbio da Via Láctea. Pouco tempo tiveram para se alimentar, conversar ou simplesmente relaxar. A humanidade estava crescendo em demasia havia vários séculos, e o trabalho nos anos futuros configurava-se cada vez mais difícil. Evitavam falar entre si a respeito, mas era um pensamento que não lhes abandonava a mente.
A neve caía torrencial de um céu muito escuro, assemelhava-se às entranhas de uma chaminé.

"Ho! Ho! Ho! Adivinha de quem é?"

Assim dizia o bilhete deixado por Papai Noel junto com os milhões de presentes, sob as árvores de Natal de todas as crianças. Um cartãozinho simples e, não obstante, tão carregado de luz - o brilho sem fim de um olhar infantil, a expectativa concretizada, o desejo realizado.
O velho no trenó sorriu. As faces flácidas se distenderam, revelando suas tonalidades róseas, acentuadas pela ventania cortante. Sorriu sem desejar verdadeiramente sorrir. Era um sorriso amargo de quem havia muito esperava pelo sono. A missão fora cumprida, todavia, Papai Noel estava triste.
Levou uma das mãos até o bolso de seu casaco. Franziu a testa, sem encontrar aquilo que queria. Então, lembrou-se. Perde-ra seu cachimbo numa das primeiras entregas fora da Terra. Fora apanhado numa das ocasionais tempestades de areia em Marte. Deve-ria ter previsto uma coisa dessa. Era um planetinha pequeno, mas quando cismava, fazia uma agitação de dimensões continentais. O vendaval conseguia castigar praticamente toda a superfície e, freqüentemente, levava semanas até passar. E justo no final de ano isso foi acontecer. Além do incômodo daquela miríade de grãos cutucando seu corpo e das pobres renas, por muito pouco não dei-xara cair o saco de presentes numa das muitas crateras a enfeita-rem a superfície do Planeta Vermelho. Lutara bastante, rodopiando, voando em zigue-zague, subindo e descendo feito um domador de cavalos selvagens, entretanto, vencera. Em contrapartida, o ca-chimbo de estimação sumira, devendo estar enterrado em alguma duna esquecida ou num dos muitos leitos de rios secos. Gostava de fumar e queria poder fazer isso agora.
- Estamos chegando, senhor - disse a rena ao lado de Clarice.
- Sim, Anita, estou vendo as luzes. Ho! Ho! Ho! Final-mente em casa, meninas!
- Viva! - gritaram todas as renas.
Era impossível não se alegrar com o brilho das lâmpadas na fria solidão do norte a indicar o caminho como um farol. Uma visão pequenina que foi aumentando momento a momento. Era um ninho de calor. Era a segurança de um teto de madeira. Era o odor macio do feno. Era o lar.
O trenó descreveu um novo arco, ajudado por um sopro de vento glacial e aterrissou suavemente ao lado da casinha de madeira, sendo então iluminado por aquelas luzes convidativas.
Sinos se calaram.
Era uma construção bastante simples, como a morada de um lenhador: de troncos grossos e resistentes. Muita neve tinha se acumulado sobre o telhado e nos beirais das janelas. Aqui e acolá, estalactites de gelo brilhavam feito lanças de vidro. Uma tira de fumaça saía pela chaminé, apesar de não haver ninguém no interior naquele momento. Nunca faltava lenha na lareira de Papai Noel.
Ele desceu pesadamente e suas botas se afundaram na grossa camada de neve macia. Caminhou com dificuldade, respirando pela boca. Desatrelou as renas uma a uma, fazendo-lhes um afago e espantando a neve dos dorsos peludos com carinho. Agradecia-as também pela correria daquela noite, a correria do Natal, quando celebraram mais um aniversário de Jesus Cristo, levando um sorriso aos rostinhos infantis de todo o mundo - de todos os mundos, melhor dizendo.
- Obrigado, Sônia... Obrigado, Cristina... Obrigado, Juliana... Obrigado, Marion... - foi dizendo, voz estafada, quase num murmúrio. E as renas, por sua vez, aos pouquinhos foram desaparecendo para o interior do estábulo adjacente à casinha. - Obrigado, Anita... E obrigado, Clarice.
Mas Clarice não se mexeu do lugar.
- Patrão...
- Sim?... O que é, Clarice?
- Uma longa noite, não foi? - falou timidamente. Movimentou as patas dianteiras, pisoteando a neve de leve. O fraco luar prateado somado à luz da casinha refletia-se na sua pelagem vistosa. Era de um castanho rajado, amarelado no ventre, e muito macio ao toque. Repetiu: - Longa noite.
Papai Noel anuiu, observando-a.
- Muito longa. Como estão suas patas, criança?
- Firmes como um iceberg - mentiu, procurando disfarçar a respiração ofegante, porém traída pelos vapores condensados. Queria dizer mais, contudo, silenciou, hesitando.
O velho segurou amavelmente o queixo dela, fitou aqueles olhos grandes e pretos de rena. Cintilavam.
- O que quer me dizer, Clarice? Por que chora?
- Não estou chorando, senhor.
- Se você tem uma deficiência, é a de não saber distorcer a verdade, minha amiga.
Clarice sorriu sem jeito, emocionada pelas palavras dele. Podia sentir os olhares e ouvidos atentos das outras renas dentro do estábulo, espiando de cada frestinha, denunciadas pelo silêncio incomum. Então, respirou fundo e encheu-se de coragem.
- Ano após ano os humanos se multiplicam, patrão. Isso vem acontecendo desde o princípio: clãs, tribos, cidades, nações e tudo o mais. Todavia, nos últimos séculos...
- É, eu sei - concordou Papai Noel com um aceno de cabeça, neve caindo do gorro. - Ainda quando estavam confinados a este planeta as coisas eram relativamente fáceis, apesar da distância entre os países, da imensidão dos oceanos, dos aviões em nosso caminho... Mas, então, passaram a colonizar o espaço. Primeiro a Lua sem oxigênio - e chaminés muito menos. Depois as cidades-espaciais, Vênus, Marte... Suamos um tantinho, porém logramos êxito. Até que...
- Resolveram colonizar outros sistemas solares - completou Clarice, quando sentiu a pausa do velho estender-se em demasia.
- Sim. O espaço entre as estrelas é vasto.
- Vasto demais, senhor. E eles continuam a...
Papai Noel interrompeu-a, erguendo a outra mão.
- Sei onde você quer chegar, Clarice. Também estou preocupado.
O animal fungou.
- Não conseguiremos.
- Precisamos conseguir. Nós temos a nossa missão a cumprir: levar a alegria na Noite do Senhor. Contribuir para a harmonia entre os homens e, principalmente, entre as crianças. Fazê-los acreditar na esperança de um amanhã melhor. O fardo de Cristo não foi mais leve que o nosso. Haveremos de conseguir, Clarice, você verá - murmurou sem muita convicção. - Agora, descanse. Está muito frio aqui fora.
A rena voltou seus olhos para a escuridão do céu.
Chumaços de neve continuavam a cair, assim como as raja-das de vento. Vinham de lugares gelados e sombrios, errando pelas planícies vazias do Pólo Norte. Um mundo sem Sol e sem vozes durante o duradouro inverno. Somente o uivar das correntes de ar gemendo sem cessar nas distâncias. Sim, era uma região fria, enorme e escura.
"Mas nem de longe se compara com o espaço", pensou a rena.
Finalmente, Clarice procurou afugentar a tristeza.
- Está bem, senhor - disse, caminhando devagar para o estábulo. Já na entrada, voltou-se e viu o velho acenar para ela. Retribuiu, meneando a cabeça. Relembrou as palavras dele e meditou: "Levamos a fé na esperança para a humanidade, mas quem é que irá nos trazer um amanhã melhor?" E entrou, sem coragem de pronunciar a pergunta em voz alta.
Nem necessitou ter feito isso.
Papai Noel pensava a mesma coisa naquele exato instante. Observou as cercanias envoltas pelas trevas. Era um cenário sombrio e assustador para os menos avisados. Quanto a ele, porém, estava mais do que acostumado, após tantos milênios ali. E sentia-se bem naquele lugar. Um recanto solitário no topo do mundo, sem outra residência por milhares de quilômetros. Um ponto tranqüilo onde podia descansar e preparar-se até o Natal seguin-te. Saboreou o aroma penetrante do gelo branco e puro do Pólo Norte. Fitou o céu, a Lua meio escondida, as estrelas. Apenas o vento em seus ouvidos respondeu à pergunta muda. Finalmente, chacoalhou a neve pulverulenta do corpo e entrou.
O calor aconchegante recebeu-o com um abraço. Na lareira, chamas amarelas e vermelhas lambiam gulosas a base da chaminé, e brincavam de fabricar sombras dançantes pela sala. A lenha crepitava e era um som gostoso de se ouvir, após sentir o lamuriar da ventania nas planícies nevadas. Um tapete felpudo e branco cobria uma boa área do assoalho de madeira. Uma poltrona gasta e resistente esperava por ele perto da lareira, com seus rangidos familiares prontos a serem emitidos. Uma mesa, alguns quadros nas paredes, pequenos objetos de valor sentimental, dois abajures acesos, tudo isso representava a fortuna de Papai Noel, tudo o que precisava e se sentia bem. Mas não estava muito bem agora.
Jogou seu gorro vermelho e branco na direção do cabide, no canto da sala mais próximo à porta de entrada. Provocou uma breve chuvinha branca pelo caminho, e foi cair com precisão no alvo, pendurando-se. Papai Noel nem ligou. Tirou o casaco e as botas. Espreguiçou-se, e juntas velhas estalaram. Calçou um par de chinelos de pano e foi vestir seu pijama.
Uma hora depois, relaxado e aquecendo as mãos junto às chamas, lembrou-se.
- Que coisa, como pude me esquecer? - resmungou contrariado. - Estou ficando senil...
Meio a contragosto, tornou a vestir seu casaco e saiu para a noite glacial. O ar frio de inverno recebeu-o com gosto. Andou pesadamente pela neve e entrou no estábulo. As renas jantavam e observaram-no com semblantes surpresos. Chegaram a temer uma nova saída, uma entrega inesperada, entretanto, quanto a isso o velho as tranqüilizou.
- Está tudo bem, meninas. Eu só vim apanhar a minha arvorezinha de Natal. Esqueci-me dela aqui no fundo do estábulo.
As renas suspiraram.
O pinheirinho solitário descansava no vaso. Sua paz foi perturbada abruptamente e ele protestou como pôde, balançando os ramos tenros para aquela criatura grisalha. Em vão. Derrotada e comprimida de encontro ao volumoso abdome, deixou-se levar.
- Todo mundo tem uma árvore de Natal, mas o Papai Noel em pessoa esqueceu-se da sua - explicou o velho, ofegando.
- Não quer uma ajuda?
- Não, Anita, obrigado. Eu consigo.
- Tome cuidado, senhor.
- Pode deixar, Marion.
- Eu sou a Clarice - reclamou.
- Oh, desculpe-me, Clarice.
E antes que saísse do estábulo, as renas recitaram em coro:
- Feliz Natal, Papai Noel!!!
Sem pressa, ele passou os olhos de uma rena a outra, dedicando um olhar especial a cada uma. Assim que terminou, retribuiu com sinceridade:
- Feliz Natal para vocês também, crianças.
Os animais sorriram, alguns com bocados de feno entre os dentes.
Papai Noel caminhou de volta para a sua casinha, pensando no calor da lareira, no frio que penetrava pelas calças de seu pijama e nas bochechas desprotegidas.
Foi quando aconteceu.
Chegou mais gélido do que o cair da neve.
Tão envolvente quanto a escuridão polar.
Tão repentino... e tão estranho.
Ocorreu diante da porta, quando ele se encontrava com a mão já na maçaneta, que ele sentiu. Intrigado, voltou o rosto para trás, para a paisagem sombria.
- O que...
Não havia coisa alguma de anormal, nada além dos flocos brancos a tombarem do negrume do céu, dos rastros recém-deixados sobre a neve, de pequenos morros mais adiante a refletirem a claridade suave da Lua e das lâmpadas na casa de troncos. De resto, a duradoura escuridão polar, de uma vastidão tão misterio-sa e antiga quanto o nascimento do tempo.
Contudo, a sensação singular persistia.
O corpo inteiro do velho se arrepiou. Procurou se concentrar, pensar. Não, não havia dúvida.
Era como se estivesse sendo vigiado.
Isso se constituía num absurdo, evidentemente. Era o único habitante nos confins daquele reino gelado, ele e as renas. E mesmo que os homens sobrevoassem a região com seus jatos ou naves espaciais ou satélites, nada conseguiriam detectar, nem a luz e nem o calor. E nenhum animal conseguiria suportar os rigores do inverno sem entrar em hibernação, exceto as próprias renas de Papai Noel que, como tais, eram criaturas bastante peculiares.
Papai Noel meneou a cabeça, consternado, e entrou novamente, julgando estar sendo alvo de sua própria velhice.
Ajeitou com cuidado o pinheirinho junto à janela e principiou a enfeitá-lo com chumaços de algodão e delicados ornamentos de vidro: bolas coloridas, bonecos de papai noel, estrelas e luas, botinhas, castanhas. Sentiu-se mais melancólico a medida em que a arvorezinha ia ficando mais e mais parecida com suas parentes nas infinitas salas espalhadas pela Terra, na Lua e em outros planetas. "Cristo renasceu novamente no coração dos homens", pensou. "Breve, crianças acordarão a fim de apanhar seus presentes sob a árvore. Risos invadirão as quatro paredes como fachos ofuscantes de luz. Famílias partilharão a ceia, reunidas. Renovarão a esperança de um futuro melhor a nível espiritual e que fizesse justiça aos avanços materiais. Os mais velhos relembrarão natais passados, na época em que eles mesmos, crian-ças então, tentavam dormir inquietas à espera dos seus presentes. Pensarão nos parentes e amigos que se foram e nos natais que ainda estão por vir. É isso o que farão. Todavia..."
Papai Noel fez um breve intervalo e descansou o corpo sobre uma almofada. Deu uma olhada a sua volta, procurando desviar seus pensamentos daquela linha de raciocínio. Censurou os lábios, comprimindo-os um contra o outro e retomou sua ocupação. Prendeu uma imitação de doce de caramelo num dos poucos raminhos que faltavam ser enfeitados. Do outro lado da janela, a neve continuava a cair do céu às escuras, e roçava o vidro delicada-mente. Tudo tão tranqüilo e taciturno, tão propício a deixar os pensamentos perambularem pela noite, por tantas noites... Contra a própria vontade, os olhos deram mais um passeio pelo interior da sala, subitamente imenso. Um soluço quebrou a quietude da casa, depois outro e outro, perturbando o crepitar insistente da lenha na lareira e os gemidos do vento lá fora.
"Todavia", prosseguiu sua mente teimosa, "não há risos e rostos alegres na minha casa. Por séculos e séculos tem sido assim, e sempre apreciei. Gosto do sossego. Os homens falam de anõezinhos me ajudando, mas não é verdade. Sempre trabalhei sozinho, eu, as renas e umas magicazinhas de salão. Adoro a solidão fria do Ártico em comunhão com meus pensamentos e minha nobre missão. Mas hoje, esta noite... não sei. Provavelmente, trata-se de um efeito do cansaço, sim, tem que ser isso. Porém... se pudesse, se tivesse um jeito, gostaria pelo menos uma vez de ser eu a criatura ansiosa a esperar por um visitante noturno, a compartilhar rostos e risos, a abrir o pacote de presentes na Noite do Senhor, desfazer o laço e estraçalhar o embrulho bonito. Sim, é isso o que eu gostaria ao menos uma vez. Mas não existe um Papai Noel para o Papai Noel, e, sob minha arvorezinha há somente um espaço vazio."
Pendurou o último enfeite -um tipo de duende narigudo-, e admirou sua obra.
Os galhos tremiam por causa do último ornamento colocado pelo velho. O algodão parecia neve de verdade. As bolas de vidro eram estrelas pendentes de um céu imaginário. E a estrela no topo da árvore anunciava a vinda do menino Jesus, assim como fizera havia milhares de anos na longínqua Belém.
Repentinamente, ele sentiu de novo.
Aquele pressentimento.
Fisgadas de gelo.
Um manto de trevas.
Alguém vigiando.
Chegou mais forte do que da vez anterior.
Papai Noel sentiu o calafrio tomar conta de seu corpo. Teve medo. Ergueu-se da almofada e aproximou-se da janela. Julgou distinguir um vulto sobre a neve. Apesar do seu temor, correu em direção à porta e a escancarou.
Rajadas de neve penetraram na sala, assustando as chamas e, com estas, as sombras que, tranqüilamente, dançavam.
O rubor tomou conta das faces pálidas do velho.
- Quem está aí? - gritou.
A voz se perdeu na escuridão da noite.
O vento uivou em resposta.
A Lua tinha desaparecido entre as nuvens invisíveis.
Nada.
Papai Noel forçou a visão. Tinha sido perto dos morros de neve, onde a luz mal alcançava e somente contribuía para reforçar o aspecto místico do cenário.
O vento não parava de gemer.
- Quem está aí? - repetiu.
Era loucura, não poderia haver mais alguém nas redonde-zas. Devia ter sido alucinação, uma miragem, alguma brincadeira dos raios de luz ao se refratarem na janela. Poderia ser uma foca insone? Ou um esquimó aventureiro? Era impossível!!!
De soslaio, percebeu um movimento no seu lado esquerdo, na direção do estábulo.
Algumas renas também espionavam, assustadas.
- Vocês viram? - indagou o velho.
- Vimos - disse uma delas, voz trêmula.
Papai Noel franziu a testa.
- O que foi que viram?
- Não temos certeza, senhor.
- Catarina e Juliana estão com muito medo - contou outra rena, intrometendo-se na conversa. - Falam de um "espírito da neve".
Outros animais trocaram olhares, e confirmaram com a cabeça.
- Isso é uma lenda, Sônia - respondeu o velho de barbas brancas, reconhecendo-a. - Apenas uma lenda.
- Hã, desculpe-me, senhor, mas muitos humanos também nos consideram somente um mito.
Papai Noel não soube responder desta vez.
A neve rodopiava ao redor da casa. A claridade morria adiante paulatinamente. Morros de neve, somente isso e mais nada.
Por fim, o bom velhinho desistiu.
- Voltem para dentro, meninas. Está muito frio. Deve ter sido... foi a neve. Tentem dormir. Estamos todos fatigados.
As renas sumiram uma de cada vez no estábulo e a última fechou o portão, não sem antes Papai Noel ouvir a voz excitada de Juliana cochichar: "Espíritos da neve sim!"
Ele perscrutou a paisagem por mais um instante até se decidir a entrar. O nervosismo tomava conta de si. Não queria nada mais além de poder fumar seu cachimbo na poltrona, diante da lareira, pés descalços brincando com os dedos no tapete, e espe-rar serenamente pela chegada do sono. Entretanto, não tinha mais o cachimbo de estimação, tampouco sentia vontade de dormir.
E foi assim, nesse estado de inquietação, que ele descobriu.
- Mas o quê... - gemeu. - O que é isso?
Ficou assustado, paralisado. Então, revistou toda a casa à procura do intruso. Foi até o seu quarto, depois na cozinha, abriu armários, olhou debaixo da cama, chegou até a remexer nas gavetas, dando-se conta um instante depois do absurdo disso. Tudo parecia se encontrar exatamente no lugar como deixara antes de empreender sua longa viagem de entregas: nenhuma janela aberta, nada de pegadas, ninguém escondido.
E no entanto...
Lá estava aquele embrulho sob o pinheirinho.
Era um pacotinho em papel laminado azul, selado por uma fita cor-de-rosa que terminava num bonito laço. Tinha, inclusive, um cartão. Trazia a ilustração de um céu imensamente estrelado sobre uma aldeia pobre, mas lá, as pessoas sorriam em seus trajes de tecido grosseiro. Uma estrela, muito mais brilhante do que as outras, fazia descer um facho de luz alva sobre a manjedoura. Uma cena que Papai Noel vira um milhão de vezes pelos presépios espalhados mundo afora. Abriu o cartão e, arregalando os olhos, leu a mensagem:

"Ho! Ho! Ho! Adivinha de quem é?"

Engoliu em seco.
A mensagem era idêntica a dos cartões deixados por ele. Quase podia ouvir sua própria voz a dizer: "Ho! Ho! Ho! Adivinha de quem é?" E, com os dedos trêmulos, desfez vagarosamente o laço.
- Não é possível! - gritou ao ver o conteúdo.
O cachimbo, seu velho cachimbo, refletiu a luz dos abajures. Não podia ser ele, mas era. A mesma lasquinha na borda, as marcas dos seus dentes na piteira, o mesmo aroma de fumo de hortelã. Ao ser virado, deixou cair um bocadinho de grãos de areia. Areia vermelha. Areia de Marte.
- Como...
E a luz branca, tão pura como a neve, atingiu seu rosto vinda do outro lado da janela. Não feria os olhos, nem magoava o espírito, pelo contrário, trouxe-lhe um inesperado sentimento de paz e afeto.
Sua mente ainda procurou raciocinar, cogitar se seria o luar rompendo as nuvens escuras, ou, quem sabe, uma aeronave bisbilhoteira. Não. Todas as dúvidas esvaneceram a partir do momento em que voltou seu rosto para a janela.
- Minha nossa... - murmurou, boquiaberto.
A figura estava completamente envolta pelo fulgor.
Dele provinha aquela alva claridade.
Um pano sujo e rasgado cobria Seu corpo.
Uma coroa de espinhos brotava de Sua cabeça.
Olhos escuros, encovados e tranqüilos.
Cabelos e barbas em desalinho.
Mãos e pés nus no inverno glacial.
E a Voz.
Surgiu de toda parte e de parte nenhuma. Não tinha direção. Bem poderia estar vindo dos objetos ou de dentro de si, supôs o velho. Era uma voz feita de todas as vozes, para ser ouvida e entendida. E já fazia tanto tempo...

"Feliz Natal, meu filho, Feliz Natal. Estou aqui para lhe agradecer toda sua dedicação, toda a alegria que tem semeado no decorrer de cada geração. Estou ciente das dificuldades; esse é outro motivo pelo qual estou aqui..."

Os lábios da figura espectral não se mexiam. Ele apenas sorria. Contudo, a Voz emergia de todas as coisas.

"Daqui por diante, meu filho, você cuidará somente das crianças da Terra, quando dezembro chegar. Cada colônia, em cada mundo deste ou de outro sistema estelar, terá seu próprio Papai Noel, da mesma forma que tem sido em outros planetas, cujas inte-ligências diferem da do Homem e os contornos do físico assumem múltiplas formas. Há muito que os alienígenas possuem suas versões de Papai Noel. E, em cada lugar, O Criador esteve e está presente, assim como um de Seus filhos sob diferentes maneiras, pois tudo, todas as criaturas, são filhos de Deus, são Sua imagem e semelhança. E, a partir de agora, além desse auxílio, todos vocês, Papai Noel da Terra, das colônias e dos mais diferentes mundos, irão se reunir após mais uma missão, se assim o deseja-rem, a fim de contar suas histórias, rirem, relembrarem aventu-ras, partilharem da alegria pela vida e pela esperança que vos impulsiona para a frente."

Todas as renas tinham saído. Estavam caladas, serenas.
Teria Ele terminado? Não.

"E aqui, nesta imensidão às escuras, terá início a primeira reunião, se for o seu desejo. Gostaria disso?"

Papai Noel não conseguiu falar. Limitou-se a acenar um "sim" hesitante com a cabeça, deste lado do vidro.

"Assim seja. Que a alegria esteja convosco, meu bondoso filho. E que todos os espíritos da neve as protejam, gentis re-nas. Adeus."

A imagem foi desaparecendo na neve, num apagar de vela, como se a escuridão a estivesse engolindo, ou a nevasca aumentado sua fúria.
- Espere! - conseguiu pedir Papai Noel, escancarando a janela da sala. - Por favor, espere!
Entretanto, já era tarde demais.
Inspirou o odor de gelo antigo. Seus cabelos longos foram jogados para trás com brusquidão. Flocos de neve giraram ao seu redor, indiferentes.
Papai Noel piscou.
Imediatamente, bolas azuis de fogo surgiram no céu; um pipocar de luzes, fogos de artifício celeste, auroras boreais em conflito. De cada uma, emergiu um ser montado num trenó - ou uma coisa equivalente a isso -, e foram todos aterrissando nas proximidades, sem se importarem com o tempo ou a distância entre as estrelas, ignorando idiomas e formas; todos unidos dentro de um mesmo sonho, retalhos de uma idêntica esperança.
- Nossa! - cochichou Clarice para Marion -, aquele ali tem escamas!
- E os condutores lembram cavalos-marinhos - completou Marion.
- Aquele lá tem asas nas costas... Três pares de braços... Outro... Um inseto?... Duas cabeças!!!
Muitas versões. Muitas formas. Mesmo ideal.
O Papai Noel da Terra foi receber a todos. Ria e ria feito criança, feito milhões de crianças.
Fogos de artifício azuis explodiam sobre o Pólo Norte.
Todos se reuniram diante da fachada feita de troncos e bocados de neve. Expressões felizes. Uma infinidade de cumprimen-tos. Expectativa. Burburinho. Silêncio.
O bom velhinho poderia ter feito um discurso emocionado, ou dar "vivas" num bater de palmas, ou correr entre a multidão, entretanto, diante de todos aqueles companheiros dos mais diferentes recantos da galáxia, o seu primeiro e memorável gesto foi...
... o de acender seu cachimbo.


NOTA DO AUTOR::
Para maiores informações, inserir meu nome no Google ou acessar:
https://www.clubedeautores.com.br/book/152240LIMBOGRAPHIA
http://marcianoscomonocinema.blogspot.com/search/label/Roberto%20Schima

 
   
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