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NATAL - DOS CORRUPTOS

Vinte e três de dezembro.

O homem de belas feições, idade mediana, barba bem feita, cabelo penteado com bom gosto, elegância, camisa esporte, de grife, calça de sarja, marca requintada e um tênis do melhor bom gosto, desses das propagandas que patrocinam os grandes eventos esportivos, dá um beijo sem carinho na mulher, um até depois para as crianças brincando na sala.

Sai na varanda, o sol forte, calor de dezembro. Põe os óculos escuros, igualmente de marca suntuosa e se encaminha para seu carro de luxo, elegante, preto pomposo, estacionado na garagem, cujo piso cerâmico brilhante, foi importado da china e nas paredes lindas samambaias decoram o ambiente, descendo suas ramas parede abaixo.

Abre o porta-malas do carro, enorme, e confere as dez certas de Natal, compostas de gêneros de primeira necessidade, acomodadas em baldes plásticos, envoltos em plástico transparente, com um bonito laço de fita que amarra as pontas, formando um laço que expressa até certo luxo.

Entra no carro, sorri largo no rosto, satisfação na consciência. Vai fazer a sua boa ação deste natal. Arranca o carro. Saí na rua calma, do bairro elegante da cidade onde mora e olha de relance a sua casa. Delicia-se com a visão. Muro alto, para evitar invasões, portão eletrônico com câmera, para não ser surpreendido por ninguém. Jardim belíssimo, bem cuidado e ao redor da casa com mais de 500 m2, um lindo bosque, sempre bem cuidado pelos seus jardineiros, onde nessa época os passarinhos fazem seus ninhos e cantam zelando pelas suas crias.

Segue para um bairro da periferia, enquanto fica relembrando o ano. Deus foi muito bom com ele. Os negócios foram muito bem, conseguiu ganhar um bom dinheiro. Comprou o barco dos sonhos, uma casa na praia que cobiçava, com ancoradouro para seu barco. Montou mais uma empresa para intermediar negócios e conseguiu guardar mais um bom dinheiro para se precaver de algum percalço. Foi um ano bom, pensava. Os negócios realmente foram muito bons. Então, nada mais justo que agradecer a Deus, distribuindo algumas cestas de Natal para algumas pessoas pobres, necessitadas. Sim, valia à pena. E era isso que estava por fazer.

E com seus pensamentos rememorando tudo que conseguiu no ano, o que não era pouco, chegou ao bairro afastado. Não gostava de ir ali. Gente mal vestida por todo lado. Bares sujos nas esquinas, gente vadia pelas ruas. Cheiro das sacolas de lixo defronte as casas, não recolhidas pela Prefeitura. Temendo por estragos em seu carro, pelos tantos buracos na rua, chegou à Igreja do bairro. Estacionou no pátio sujo, grama por cortar, bem diferente do seu jardim, ao lado de carros populares, feios – mau gosto dessa gente. Atrás da Igreja a Casa Paroquial e para lá se dirigiu.

No salão da Casa Paroquial muita gente, montando cestas, carregando outras, enfim, um burburinho de alegria e descontração, pintado de satisfação e prazer pelo trabalho voluntário. Entrou, achou o Padre em meio a toda gente, cumprimentou efusivamente e disse que estava ali para fazer sua costumeira doação. Que tinha cinco cestas no carro, pedindo que alguém a fosse buscar com ele, pois, estava com problemas de torcicolo e não poderia carregá-las. Claro que era teatro. Não iria ficar fazendo força em vão, já que tinham tantos homens ali, acostumados aos trabalhos pesados. Já tinha gastado dinheiro, estava perdendo a manhã, que poderia ser mais bem gasta no clube, bebendo seu whisky, no meio de gente bem mais culta, bem mais do seu meio. Que os pobres fizessem o serviço pesado. Existiam para isso.

Descarregadas as cestas, cumprimentou de longe a todos, desejando feliz natal, próspero ano novo e mencionando que no ano novo, estaria ali novamente, para fazer a sua parte nessa empreitada para melhorar o Natal das pessoas menos abençoadas e a quem sempre rezava pedindo a Deus melhor sorte.

Voltou para o carro e ao manobrar para pegar a rua, olhou a escola ao lado da igreja. Uma escola municipal. Parou o carro defronte. Pátio vazio. Sem vida. Coisa das férias. Muro cheio de buracos e ainda por pintar. As paredes da escola também já apresentavam as marcas do descuido, calçadas esburacadas, um pedaço do forro do beirado apodrecido, caindo, certamente provocado por goteiras.

Não importava, pensou. Importava é que ali serviam merendas. E as merendas lhe renderam um bom dinheiro naquele ano. Havia fechado contrato com a prefeitura, assumindo o abastecimento das escolas, com diversos produtos. Suas amizades haviam permitido driblar as licitações. Claro que lhe custou uns trocados com o moço da Secretaria da Educação. Também o secretário tinha ficado com um bom pedaço do contrato. Achava que até o prefeito, através da sua esposa, tinha feito uma boquinha. Mas tudo bem.

Os preços que tinha fechado compensavam tudo. E ainda por cima tinham as notas fiscais que eram emitidas e as mercadorias não eram entregues e que eram carimbadas normalmente e pagas, claro. E ainda tinha conseguido uma revisão no contrato e o valor inicial, já superfaturado em mais de 200%, havia sido corrigido em mais 32%. É........ Um bom negócio as merendas, pensou. Sem arrependimento. Concluiu que se não fosse ele, seria outro a ganhar dinheiro com a merenda. E ele sabia que era mais dinâmico, mais convincente e todos ganhavam com ele.

Lembrava dessa escola em particular. Tinha uma diretora cabeça dura. Quase pôs tudo a perder com um lote de mercadoria faturada “no joelho”. Faltou biscoito, reclamou com o almoxarifado e lá constava que tinha sido entregue 1.200 kgs a menos de uma semana. Foi um trabalho para contornar a situação. Custou um final de semana para a dita professora com seu marido em uma pousada de luxo. Mas tudo bem. Importante é que a renovação do contrato estava garantida para o ano que vem. Tinha custado caro o carro que havia comprado para a esposa do secretário da educação, mas o lucro ia compensar.

Arrancou o carro e foi para o outro lado da cidade. Ainda tinha as outras cestas para serem entregues e assim completar sua retribuição a tudo que Deus havia ajudado durante o ano.

O destino era a associação de moradores de outro bairro, cuja sede funcionava num barracão nos fundos do posto de saúde. Chegou defronte ao posto. Uma fila enorme, que tomava a rua, mesmo em pleno dia 23. A fila tomava à calçada, gente escaldando no sol forte das 11 horas. Mas tinha certeza que muita gente que estava ali, na realidade não precisava. Mania de doença dessa pobreza. Gostam de fila. Gostam de ficar doentes.

Desceu do carro, com seus óculos escuros, andar firme de gente determinada, sorriso simpático e mentiroso nos lábios. Passando ao lado da fila, ouviu uma senhora reclamando da demora no atendimento e as explicações da atendente, que dizia não ter culpas; que o médico estava atrasado, mas que chegaria. Que tivesse paciência. Que ela estava ali na fila porque queria e que não ganhava para ser xingada por culpas que não tinha.

Chegou às instalações da Associação. Diversas senhoras trabalhando, separando roupas e brinquedos usados que haviam recebido de uma ONG para distribuição no bairro. Entrou e cumprimentou a todos com um Bom Dia forte, alto, firme, positivo, imponente, assim como sua aparência bem trajada. Perguntou pelo Quincas, que era o presidente da associação. E se encaminhou para a salinha nos fundos do salão, onde estava o dito Quincas. Entrou, o Quincas estava na escrivaninha, sentado defronte ao computador. Cumprimentou-o com certa intimidade e disse que estava ali trazendo as costumeiras cestas de Natal. Pediu que mandasse alguém pegar as cestas no carro. Entregou a chave e sentou-se numa cadeira rasgada, velha, que estava defronte a escrivaninha.

Quente. Suor lhe escorrendo na testa. Lugar fedorento. Queria acabar logo aquela romaria e ir para casa, usufruir do conforto que bem mereceria. Suar mesmo era merecido quando se estava ganhando dinheiro, não gastando com quem não merecia; que nada fazia para ter uma vida melhor. Mas fazia parte. Tinha que ter coisas assim em seu histórico de bom homem, para contar aos pares.

Não se segurou e deu volta na escrivaninha para ver o que o Quincas fazia no computador. Observou com um riso de canto de boca que ele estava montando um projeto para a associação, dirigido à Prefeitura, reivindicando uma verba para sua execução. Muito bom, pensou.

O presidente voltou. Devolveu a chave, agradeceu e perguntou de tinha gostado do projeto que estava montando. Ele explicou que não havia lido tudo. Que havia entendido por cima e lembrou se havia dado certo aquele outro, no qual ela teria interferido junto ao secretário de obras, seu amigo e sócio numa construtora. Era o projeto para construção da Sede Própria. Confirmou que sim. Que o projeto tinha sido aprovado, que a verba sairia em Fevereiro.

Explicou rapidamente que sua parte, por conta da sua interferência seria reservada e que ficasse tranqüilo, pois, as obras seriam confiadas a sua construtora. Que o secretário já tinha imposto isto como condição para liberação da verba. Muito habilmente, expos que teriam que fazer uma concorrência, para que não carecia preocupação, pois, fariam tudo do jeito de sempre. Risco zero.

E então volta ao projeto que está sendo elaborado, quando o presidente da associação explica que é um projeto para criar uma oficina de artesanato. Que está sendo feito por recomendação do seu irmão, que é vereador. Já está tudo ajeitado. Ele vai se candidatar novamente e precavido já pensa no dinheiro para a campanha. E nesse projeto é teta. Tem verba do ministério da cultura para esses fins.

Novamente gesticulou com aprovação, lembrando ao presidente que não se esquecesse de alertar o irmão, que estava contando com ele, no início do ano, para aprovar o projeto do uniforme escolar, pois, estava com tudo esquematizado com uma indústria de outro estado para ganhar a concorrência e que daria uma bolada.

Estava saindo, quando se lembrou de alguma coisa. Estava esquecendo sua encomenda. Perguntou então ao Quincas se tinha reservado umas roupas boas daquelas que as senhoras separavam no galpão, para que desse aos seus empregados domésticos. Quincas se desculpou pelo fato de estar esquecendo e chamou uma senhora no galpão, perguntou pela caixa que havia reservado destinada à Paróquia do Bairro. Pediu então que ela buscasse no reservado, que o visitando iria passar por lá e já faria a gentileza de entregar ao Padre.

Veio a caixa. O Quincas se propôs a levá-la até o carro. Iam caminhado e conversando naturalmente. Passando pelo Posto de Saúde percebeu que a fila já tinha diminuído. Ótimo, pensou!! Caixa no porta-malas, despediram-se, entrou no carro, ligou o ar condicionado, pois o calor está horrível. Já quase meio dia.

E enquanto esperava o ar interno resfriar, prestava atenção no Posto de Saúde. Melhor que o médico tivesse chegado, assim eram mais remédios que ele aviava. Quanto mais remédio consumido melhor. O contrato que a Distribuidora de Medicamentos, da qual era proprietário, claro que se utilizando do nome de uma tia que morava distante, no interior, tinha que ser cumprido. E era muito remédio.

Só camisinha eram milhões. Lembrou do que lhe custou ter que interferir para desviar um grande lote, que estava encalhado no depósito. Conseguiu fazer com que fosse desovado no lixão da prefeitura, para não comprometer o seu “afilhado” que cuidava do setor. Esse era um bom negocio. Melhor que da merenda.

Havia criado diversas empresas fantasmas, que também participavam das concorrências e assim atender o dispositivo legal de um mínimo de concorrentes. Tinha sido uma bela idéia. Olhava o prédio modesto do Posto de Saúde. Pintura por fazer. Mas isso não era da sua conta. Da sua conta eram os remédios. Na sua conta paravam os lucros. Mas olhava disperso o prédio e lembrava-se do presidente da Câmara de Vereadores, que estava cada dia mais guloso. Cada dia pedia mais. Nem o alerta ao Prefeito sobre as pedidas do vereador mandão haviam acalmada sua fome.

Já pensava em ter que recorrer aos seus amigos da outra banda para dar um jeito no safado, aproveitador. Mas tudo bem. Isso ele veria no ano que chegava. Importante agora é que sua missão estava concluída, que havia distribuído as cestas de Natal. Que havia ajudado os pobres, que sua parte nesse Natal estava feita e ninguém podia lhe acusar de que não era um homem de bem, solidário e cumpridor das suas obrigações cristãs.

Deus haveria de ajudá-los a manter seus negócios. Enquanto voltava para casa, ficou lembrando que ainda teria um compromisso a noite, então com sua esposa, na visita e doação de presentes na Casa dos Menores.

Como era difícil manter as aparências. Mas valia a pena. Enquanto dirigia seu carro confortável, visualizava sua casa pomposa, lembrava da viagem para Miami que faria na semana seguinte e concluía que era compensador o sacrifício.


EACOELHO
(o poeta do vale)

 
   
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