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ESQUINA PARA O PARAÍSOESQUINA PARA O PARAÍSO
Hoje percorro trilhas — sou viajante, “off-road”, busco caminhos diferentes, desconhecidos. Mas nem sempre fui assim. Já trilhei ruas cheias de gente, cidades megalômanas que haviam se tornado organismos com vida própria, com veias onde sangue impuro circulava incessantemente e artérias pulsando.
Era apenas um dos muitos na paranóia, sem saber exatamente quem ou o que eu era, na verdade. Não me dava conta do ritmo em que as coisas iam até o dia em que vi o primeiro amanhacer em minha vida. Uma tarefa difícil naquela época — quanto tempo faz? Talvez 15 anos — perceber o que acontecia sobre nós.
Minha cidade, que durante todo o século anterior não passara de uma província interiorana em um país subdesenvolvido, se transformara em um labirinto de concreto, titânio e vidros blindados. Era urna tendência que ficou marcada nos fins do século XXI e tornara-se urna realidade no século seguinte — prédios altos, apinhados de gente e com todas as mais modernas medidas de segurança. A vida era dirigida ao trabalho, para evitar os distúrbios que quase destruíram o mundo há pouco mais de um século.
As crianças nasciam, cresciam, tornavam-se jovens trabalhando para as infinitas frentes de obras governamentais, casavam, tinham filhos, adoeciam pela radiação emanada das usinas termonucleares e morriam sem verem o Sol nascer ou saírem de suas cidades natais. Quando muito, a luz do Sol penetrava na hora em que este estava a pino, por poucos momentos. Para muitos, esse era um motivo de curiosidade e tristeza.
Como criança, porém, não fui dos mais curiosos — e, ainda na adolescência, me investi no sistema, como minerador no subsolo da cidade, escavando a partir dos velhos túneis do metrô. Minha vida era uma rotina mas tinha suas curiosidades.
Por exemplo, as várias coincidências que me ligavam a Samantha, que nascera quase no mesmo momento que eu, no mesmo centro de procriação. Não que isso fosse incomum em um mundo onde se esbarravam mais de 45 bilhões de pessoas. Mas Sammy sempre esteve ligada a mim, de alguma forma , trabalhando inclusive no mesmo lugar.
Seu pai, desenhista de máquinas como o meu, morreu em escapamento de gás na fábrica em que trabalhava, horas depois de meu pai ter sido esmagado por um transporte de gás que se desgovernou na rua 3.107, Ala Sul. As tragédias fizeram com que nossas mães, abaladas, decidissem pelo suicídio institucional — pedindo para morrer nos carrocéis centrifugadores do Governo e nos deixando como mão-de-obra para a mineradora. Com isso, garantiriam nosso sustento e uma atividade produtiva.
Só então Sammy e eu nos conhecemos e constatamos todas essas coincidências. E nossas vidas não se desligaram até que ela sumisse durante uma escavação, entrando em um túnel abandonado.
— Atenção! Grupo de escavadores perdido nos dutos. Os seguintes voluntários farão parte do grupo de busca: A/7.348, A/9.200, D/5.661, K/8.3 30 e V/6.614.
Nunca entendi como voluntários podiam ser escolhidos, mas entrei no grupo — o último da lista. Foi bom, porque não ficaria tranqüilo sem saber o destino de Sammy. Naquela época, amigos eram raridade, e eu tinha uma.
Os dutos desconhecidos foram abandonados por mais de 50 anos, desde que um líquido corrosivo passou a percorrê-los, inexplicavelmente, destruindo os trilhos do metrô. Este era o grande perigo para Sammy e os outros escavadores perdidos, e para nós.
Não sei quanto andamos, ou quanto tempo se passou até encontrarmos a primeira bifurcação. Ainda não encontráramos o tal líquido. Caol, o minerador de patente que nos comandava (e já nem precisava de um número) decidiu nos dividir.
— Vamos adotar o procedimento padrão. Temos que encontrar os mineradores perdidos de qualquer jeito. A cada bifurcação vamos nos dividir. Ao encontrarem qualquer sinal da equipe perdida, usem seus sinalizadores. Vou pela esquerda com A/9.200 e V/6.6l4.
Lina, ou A/9.200, era uma jovem baixinha e rechonchuda, sempre simpática mas extremamente medrosa. Aquela aventura devia ser um verdadeiro suplício para ela. Depois de mais alguns momentos naqueles dutos, ela não resistiu e sussurrou.
— Müller, não consigo entender. Nós somos escavadores comuns que nunca estivemos nestes dutos ...
— Ninguém esteve, Lina... Se dermos sorte, não nos perderemos, nem seremos corroídos por aquele líquido de que falam.
— Você animador!
— O que vocês estão conversando?
Havíamos quebrado o protocolo. Missões como aquela não podiam ter conversas paralelas.
— Senhor — respondi — estamos sob tensão e não pudemos controlar a fala.
— Compreendo, V/6.614. Aliás, qual o seu nome?
— Müller, senhor.
— Sim, Müller, acho que podemos conversar — afinal quem vai nos ouvir além de nós mesmos.
— Ah! Que alivio, senhor! — Lina já não controlava seu medo.
— Você não tem muito o tipo de escavadora, não é, moça?
— Foi a única coisa que pude fazer para sobreviver.
— Tempos difíceis, estes...
Só paramos para descansar no próximo entroncamento. Não tínhamos cronômetros. Lá em cima, na cidade, podia ser dia ou noite, que não saberíamos. E havia, naquele momento, um problema ainda maior: quatro caminhos para três pessoas.
Depois de pensar, calado, por um bom tempo, Caol encontrou urna alternativa.
— Vocês irão em frente. Escolham suas trilhas. Eu vou voltar e trazer mais um voluntário para o grupo. Qualquer problema, voltem e sigam meu rastro iônico até a base.
Não havia o que discutir. Lina tremia e eu tinha a certeza de que, na primeira oportunidade, ela seguiria o rastro de Caol até a base com alguma desculpa. Era compreensível. Eu mesmo só me mantinha calmo porque precisava encontrar Samrny, e ela estava eu um daqueles dutos.
— Vou por este aqui! — sentenciei — Encontro você na esquina para o paraíso!
Era uma gíria. Significava que, em algum lugar, nós voltaríamos a nos ver. Não sei qual rumo Lina tomou porque entrei no duto antes mesmo que ela ou Caol tomassem seus caminhos. Pelo tanto que andamos, já devíamos estar perto dos limites da cidade, a não ser que estivéssemos andando em círculos ...
Enquanto andava, o cansaço destruía minhas resistências, sem ver qualquer sinal de líquido corrosivo, ou de Sammy. Comecei a acreditar que aquela história de líquido fora uma forma de manter as pessoas longe daquele lugar, por algum motivo. O ar já não estava quase irrespirável como antes, permitindo que eu tirasse a máscara por um longo tempo.
Mais alguns e passos e senti cheiros que não conhecia. Uma brisa estranha cruzava o duto, tocando meu corpo sem cerimônias. Mas não havia luz — portanto não achei que estivesse chegando ao exterior.
Mas estava. Logo à frente uma tênue luz invadia o duto, onde uma porta de ferro, escancarada, indicava o fim do túnel. A luz das estrelas, as mesmas que conseguia vislumbrar durante as noites em que a cortina de fumaça que encobria a cidade parecia diminuir. Eram tantas e de tão diferentes tamanhos que fiquei confuso. Parei encostado ao portal, que quase esbarrava em um barranco de uns cinco metros de altura. Queria ver mais e escalei a parede de pedra sem grandes dificuldades. No alto encontrei uma extensão plana, sem qualquer prédio, que nunca imaginei existir no mundo. Às minhas costas, a megalópole parecia pequena.
Deitei-me no chão e vi um cobertor de estrelas me tocar e um semicírculo luminoso chamado lua, quase chegando ao limite da cidade. Não pude contá-las. Esquecera o cansaço e só sentia o confortável abraço da terra e do céu.
— Müller! Você também veio...
Ergui os olhos e vi aquele rosto tão conhecido ao meu lado. Estava ainda mais bonito, envolto em estrelas, e seus cabelos tinham um alo de luz natural.
— Vim atrás de você ... Mais uma das nossas coincidências. Obrigado pelo presente, Sammy! Nunca pensei que o céu fosse assim...
— É tão bonito fora da cidade. Não pude voltar depois de chegar aqui.
— Não encontrei nenhum líquido corrosivo nos dutos.
— Nem eu!
— Talvez tenha sido uma história inventada para impedir que saíssemos da cidade. Quem iria querer viver naquele pesadelo com tudo isto para si?
— Encontramos o paraíso, Müller!
Eu tinha que concordar.
— Deite aqui comigo e as estrelas, Sammy.
Ela deitou e me abraçou. De repente percebemos um mundo além de nossa limitada rotina, que sempre esteve ali, a nossa espera. E nos encontramos de outra forma, desarmados dos nossos problemas e preocupações, e precisando compartilhar aquele sentimento de êxtase.
— Posso sentir seu perfume aqui, essa brisa leve e pura ... não sei se há algo mais do que isso na vida.
— Há sim, Müller. Algo que nunca fizemos.
— Nunca...
Sam deitou-se sobre meu corpo e senti o calor que me invadia. As carícias, que nunca ousamos ou pensamos em fazer, eram naturais naquele momento, naquele cenário. Seu corpo foi o primeiro e único com o qual me compartilhei — e o mesmo acontecia com ela. As coincidências só poderiam nos levar a isto e não havia o que temer. Éramos um parte do outro.
Quando uma onda de prazer extremo percorreu meu corpo, sacudiu meu espírito e invadiu Samantha, senti que ela desfalecia, feliz, sobre mim — a pele satisfeita com o toque de outra pele, tão familiar.
Abri os olhos e vi o sol preenchendo o horizonte, sua luz tornando o céu aos poucos.
— Sam, olhe! Como o amanhecer lindo!
Ela não disse nada ... Apenas chorou, silenciosamente, abraçada com força e ainda sentindo minha pulsação dentro de si.
Descobri que o mundo tem trilhas infinitas, onde nunca nos perdemos pois há sempre outro caminho a seguir ...
— Müller, você não para de escrever nesses cadernos Com tantos caminhos e viagens pela frente...
— Já viajamos tanto juntos, Sam, dentro e fora de nós mesmos, só estou fazendo os mapas dessas viagens.
— Você não toma jeito, sonhador! Mesmo sendo quase sua gêmea, de vez em quando me perco em suas trilhas...
— Mas eu sempre te encontro, na esquina para o paraíso.
(Parte do livro "Viajante noturno", de William Mendonça, disponível para download gratuito em www.williammendonca.com. Direitos reservados.)
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