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Retalhos

...agora eu sinto que pouco tempo me resta, aliás muito pouco: apenas alguns parágrafos talvez. E assim, para matá-lo mais rápido até, resolvi escrever. Imagens me vêem à mente, oscilam, piscam, são luzes num infinito mar de lembranças. Reúno cada uma, desordenadamente, e como uma colcha de retalhos sobreponho cores diversas, texturas diferentes...

O telefone toca. Insiste. Não tenho vontade de atender, faz muito tempo que não estou para ninguém. Ainda mais agora que tento desenrolar este pequeno fio, tento a escrita como a única forma de continuar sendo, apesar de. Espero que meu intento seja alcançado. Procuro forças. Há muito o que ser dito. Há muito o que ser dito. O tempo urge, as idéias voam...

Novamente é noite e, entre o caos diário e os retalhos que quero costurar, as palavras surgem como a linha que arremata e une. Não posso mais adiar, apesar de meus olhos embaçados me impedirem de produzir... minhas lembranças escorrem pelo meu rosto e caem em forma de gotas na superfície do papel. E eu que sempre me segurei, que sempre contive as lágrimas, agora me sinto tola...tanto tempo se passou, tantas coisas. Tem horas que me sinto idiotamente insegura para falar, sei lá se a alguém interessam estas linhas. Mas escrevo mesmo assim, para me livrar: creio ser este o meu purgatório.

Nasci. Como todo mundo nasce um dia, sei que era outono e mesmo assim o tempo abafava. Meus gritos ecoaram pela casa, chorei mais que os outros, dizem. Talvez uma premonição. O resto dos meus dias foi de gritos, creio que para mostrar-me forte. Ao menos um aspecto de minha vida deveria impor-se como sinônimo de vigor: a voz. Gritei, gritava. Hoje não grito mais. Os retalhos me fizeram calar.

De infância pouco lembro: são tecidos desbotados que não consigo unir, uns mais puídos outros mais encardidos... Arremato-os com a linha da distância. E eles se perdem e se fazem parte. Sei-os de repente parte de mim. Me vejo cresce-que-não-cresce, pedaço de gente a se embolar pelo mundo. E os retalhos caem: escola, boneca, roda, pique, areia, castelos, surras, travessuras, aventuras... a colcha se forma, ganha tamanho e quantidade...Me canso do jogo, meus dedos doem, num minuto passa um filme inteiro à minha frente. Pendo a cabeça para o lado, me deixo ficar assim: o filme é bom, apesar do roteiro fraco e das personagens sem graça. Peço pipoca, essa sessão vai ser longa.

Retalhos. Conseguirá o leitor pegar esta colcha nas mãos? Fico me perguntando e tentando perceber a expressão sua ao ler minha carta. Minha história começa no meio já quase na hora de acabar. Me sinto fraca, me sinto eu – sem as cascas que os homens nos fazem vestir, sem as máscaras que a vida me impôs –, eu. Apenas um tecido.

Sei que um dia, no ônibus, ele me viu. Bem mais que isso, ele me olhou. Por um bom tempo a gente ficou se olhando, sem palavras, sem expressões, sem idéia de um porquê. Só olhando. Sempre. Meses. O ônibus parou. Ele desceu e parou diante da minha janela. Meus olhos chamuscavam, meu rosto ardia e eu não entendi aquele olhar... O ônibus partiu, meu olhar ficou lá atrás ( só agora me dou conta de que muito mais havia ficado naquele ponto). Depois disso ele desapareceu ( ou será que fui eu?). Para mim todos os ônibus têm sabor de olhar, todas as viagens, quer curtas ou longas, têm sabor de encontro. Vivi anos assim e só obtive desencontros. O ônibus se foi. E este retalho é capaz de me fazer voltar no tempo sempre, embora com um gosto estranho, com um cheiro de angústia, um gosto de ansiedade me sobe à boca. Engulo o choro, sempre fiz assim.

Algumas vezes doeu. Tentei me fazer muralha, mas a hera conseguiu me atingir e me impregnou de sementes, o mal começava a germinar em mim. E quanto mais forte, mais dor, mais mal... Fui rude, insana, tosca, o diabo. Doeu mais. Fui afável, prestativa, fina, santa. Doeu, e o pior, doía fundo. Sem chances de um pesticida livrar-me das sementes do mal. Até que me acostumei: já que nada poderia me livrar, passei eu mesma a regar diariamente a planta que, mui comodamente, se instalara em mim. Pronto: como canteiro de horta minha vida se tornou repleta de plantas, em sua maioria maléficas. E elas sempre habitaram meu peito... A história se faz, a colcha cresce. Detalhes, a palavra destino foi a única capaz de firmar-se.

Outros dias vieram, outros olhares e eu, que já não me achava gente, me vi capaz de atrair. Nos pátios da escola somente seu nome ecoava, minhas pernas trêmulas, minha voz como um fio e um frio agudo a estremecer meu corpo inteira: sua imagem me mudava as reações. Eu ficava sem chão, sem teto. O espaço infinito se tornava um nada. Dei bandeiras: me calei, xinguei, simulei um ódio mortal para esconder minhas demonstrações de fraqueza – ou de amor? – até hoje me bate um arrependimento pesado que me faz doer o corpo pois é muito pesado esse fardo de sentir que não tentei, que deixei que escapasse ao meu alcance. O nome desse peso é perda – percebo agora o quanto de carga eu carreguei o tempo todo: uma vida de perdas, de desencontros... conseguirá alguém ser feliz, mesmo que em umas poucas linhas? A felicidade, talvez eu a experimente e saiba o seu sabor ao menos antes de cobrir este papel. Mas ele se foi, ou melhor, eu o deixei ir. Tudo foi ficando tão frio que se o vejo hoje é como se nunca o tivesse visto. É duro constatar tudo isso, mais duro é saber que este retalho não pode ser colocado assim, em poucas linhas, nesta colcha. É preciso tempo, isto pesa e talvez seja melhor não costurá-lo agora. Deixo-o solto, que vague no mar de minhas lembranças até que em um porto, nem digo seguro, ele possa ancorar... Só sei que não tenho mais forças.

Certa vez um sonhador encheu-me a cabeça de nuvens, aguçou-me o desejo de ser mais eu. Tinha umas palavras suas, parecia dono de uma verdade que talvez hoje eu entenda melhor. Viajado. Bonito. Galante. Um sonho. Sabe o que é uma teia feita somente de palavras? Eu era a presa aprisionada pela aranha para o seu próximo jantar. E pior: caí naquelas palavras. Mergulhei. Pode-se dizer que fui até feliz, um pouquinho, quase um tiquinho de nada de felicidade. Recordo aqueles braços, me enrolei naqueles cabelos... e pela primeira vez, em muito tempo, me senti viva. Mas, logo caíram as palavras e o que se fizera sonho, agora era somente realidade: meu príncipe partira. Logo depois de tantas carícias. Sozinha descobri que as mesmas palavras já tinham feito outras prisioneiras: seu vocabulário era uma armadilha. Tentei não morrer, quis até matar inclusive a outra que se disse presa na arapuca. Expulsei-a do meu convívio. E chorei. Alguns dias se passaram, sobrevivi. Quando tudo parecia cicatrizar-se, a notícia vem como tufão que me carrega nos ares e me deixa vagando: o carro no asfalto, a ultrapassagem na curva, os corpos no chão... Nem gritei, nem lágrima pude verter, velei o corpo inerte, orei a Deus e vivi um luto interior. A dor de não poder demonstrar a dor é muito mais forte. E eu precisava não mostrar, aliás pouca gente, melhor, ninguém entenderia: nossas palavras foram só nossas. Mesmo que pudesse, pouca gente quereria entender. Precisava respirar, aliás, costurei esse retalho com a mesma serenidade com que o vi pôr numa cova. Ao retornar para casa pensei, como na canção nas esquinas por que passei.

Se meu leitor puder visualizar minha colcha é possível que esteja vendo um enorme tecido negro costurado. Acredite leitor, se fosse para coser tecidos leves e alegres, pouca coisa teria para contar. E talvez até você se cansasse das minhas felicidades pueris... Não que eu seja um retrato da dor, uma personificação da angústia. Mas a felicidade, o riso gratuito, essas coisas me dão enjôo. Não me fazem produzir. Talvez eu até sorria depois da colcha pronta e ache que tudo não passou de uma grande piada da vida, talvez.

Era um dos colegas do colegial... e nem era tão lindo. Sempre gentil e delicado com todos. A mim dedicou especial atenção – pelo menos na minha cabeça-de-garota-do-interior-que-vai-para-a-cidade, eu era especial, me sentia assim – mas, ledo engano: sua atenção era igual para todos. Desisti. Mudei até de turno, precisava trabalhar, precisava de mais coisas para ocupar minha cabeça. Longe, fora do mesmo habitat, fiquei tão absorta em mim mesma que nem me dei conta daquele sorriso que entrara na sala. No primeiro contato nada senti, nem no segundo, a paixão demorou um pouco para aparecer e vou explicar o porquê. É que naquela época eu estava numa de paixão: apaixonava de manhã, à tarde, à noite. Meu coração parecia estar no cio – bastava um olhar, um sorriso, um gesto – e eu já ficava com a imagem do sujeito no pensamento, andava nas nuvens. Essa fase durou um tempo, creio que para compensar o vazio de minha vida eu enchia o coração de paixões arrebatadoras que nunca passaram de ilusão de uma cabeça adolescente. Eu era uma perfeita idiota. Nosso amor nem começou e eu já sofria; acho que eu gostava de me apaixonar para poder sofrer ( e olhe que não me sinto masoquista), e chorar e me sentir só. O ano letivo terminou, acabou o curso. Ele se casou, minha paixão e solidão desapareceram no primeiro sol de verão.

Sei que era fim de ano e enquanto muitas casas se coloriam de natal, a minha tentava se manter erguida sem a presença de papai. Ele se fora repentinamente – aquele maldito tombo do cavalo que ele mesmo dissera ser manso – primeiro as dores, depois o corpo inerte na cama. Nada havia a fazer. Ele se fora e nem ao menos pude dizer-lhe coisas: sei que tínhamos muito que falar um ao outro, apesar de seu jeito turrão e severo de ser. Eu o amava. Agora sei a medida da existência e percebo a secura da ausência. Ele se foi. E aquele fim de ano, que sempre fora tão sem novidades, era ainda mais seco. Choveu no natal, choveu no meu peito. Vazios terríveis me enchiam a alma, e eu suplicava a Deus forças – que nem sei para que serviriam. Eu tinha apenas quatorze anos, meu pai se fora. Era natal e o meu presente era só uma ausência.

A rotina daquele lugarejo acabava comigo: tudo era medíocre demais para mim que desejava mais que tudo, o mundo inteiro. E fazia planos, e construía sonhos, e elaborava projetos... Às vezes penso porque a vida nos deixa sonhar. Ela é muito traiçoeira, vem nos aguçando o desejo, nos dando ares de poder. E a gente se envolve nisso. Puro engano: meus sonhos, como meus heróis morreram de overdose. É, overdose de fé. Eu acreditei demais. E mesmo quando as barreiras se mostravam diante de mim, eu acreditava e me fortalecia. E cada queda era fatal. Aos poucos fui percebendo que meus sonhos morriam. Tornei-me prática, realista, fria até. Os sonhos são para os tolos. Pessoas inteligentes não perdem tempo com essas bobagens, diria meu pai. Fui extremamente tola. E acreditei que a força da vida e do destino nos jogam a seu bel-prazer. E contra essa força incontrolável, sonhar é fraquejar. Não que tenha me tornado amarga, mas não me tornei o que quis: joguei-me na corrente e deixei que as águas me levassem...

Hoje penso no quanto as coisas poderiam ter sido diferentes. Enquanto parava para ver a vida se fazer flor, sol, orvalho a vida me empurrava e me deixava para trás. Se eu tivesse acreditado que o destino é o que queremos e brigamos, é bem certo que não estarias lendo esta carta agora. Mas eu fui fraca: quis os sonhos. Minhas mãos doem um pouco a cada dia, não me movimento com a mesma agilidade de há tempos. Sei que chorar o leite derramado é o pior chavão a ser usado neste momento. Mas eu choro. Choro a revolta de uma vida inteira que podia ter sido e que não foi. Meu Deus! Dói mais constatar isso que tomar dez injeções diárias. Sei que não adianta me lamentar, porém meu lamento cumpre um propósito: decifra-me ou devoro-te.

Numa tarde, era calor e queríamos tomar banho de rio. Toda a molecada da vizinhança acudiu, foi um reboliço danado. Mas sempre na maior cautela, era surra garantida tomar banho de rio com os meninos. E isso me deixava extasiada: o prazer do pecado, o fruto proibido daquele fim de mundo, que de paraíso pouco, ou quase nada, tinha. Fomos em revoada, sem fazer alarde. Na beira do rio que descia calmo em suas águas amareladas a felicidade parecia residir. E como ríamos, e pulávamos, e mergulhávamos naquela alegria em forma líquida de barrancos tão convidativos. Era uma liberdade de estar e de ser que só quem experimentou sabe. O sol nas nossas cabeças secava o cabelo, o vento gelava a pele e bebia as gotas... O retorno sempre mais escondido que o costumeiro, eram passadas diretas para o banheiro. A água corrente nos livrava das marcas do delito, mas os arroubos de felicidade, ficavam no íntimo. Lá dentro de nós se formava um poço, um armazenamento de provisões de felicidade para os dias de angústia. Pena que a gente cresce e esse poço seca. E então nos tornamos isso: gente crescida.

É certo que tive amigos, que até consegui criar laços – uns que viraram nós, é verdade, outros que facilmente se desfizeram, mas o saldo, pelo menos nesta parte é, até posso dizer, positivo. Não que hoje estejam todos aqui: quem pode garantir que estarão? Estar só é um condição do ser no mundo, independente das escolhas que ele tenha feito ao longo da sua vida. Talvez isso possa justificar certas escolhas: o medo. A solidão final, cotidiana, impulsiona a muitos para um encontro, todos precisam se sentir juntos. Confesso: até eu já me senti assim. Talvez isso justifique meus relacionamentos, inclusive meu casamento. Foi uma cerimônia simples: isso é uma ironia. Com uma palavras dessas, c e r i m ô n i a, alguma coisa pode ser simples? Foi um acaso. Após alguns meses de namoro, preparativos e um corre-corre danado, casei-me ( não, não estava grávida, estava apaixonada – que piada). Fez um dia bonito, sentia-me a mulher mais feliz do mundo, com todos aqueles aparatos. Ele me levou para uma lua-de-mel nas montanhas, algo simples, mas bastante romântico. Eu o amava – pelo menos era o que eu queria acreditar –, ele me amava, isso eu sabia. Para ser bem piegas: era o céu na terra. Mas os dias que se seguiram não foram nada bons, e a culpa não era dele: era minha. Aquilo que eu acreditara ser amor, foi-se com o tempo – aliás curto tempo. Seis meses depois, eu voltava para casa diante da incompreensão de muitos. Ele sofreu: nem sei se vale a pena dizer que sinto muito. É provável que não devolva nada a ninguém, mas me conforta e me alenta. Dói pensar que a vida nos faz navegar, quase sempre, à esmo. São mares turbulentos, são mares calmos, mas o leme não está em minhas mãos. Há muito acredito que pouca coisa posso fazer para modificar isso. Então naveguei, só isso me restava fazer. E, por isso, cansei de naufragar e nadar e morrer na praia. Posso ser muito cruel comigo mesma, mas eu não podia enganá-lo mais. Algumas vezes, tentou a reconciliação, mas não dava mais: eu estava fadada a ser isso: uma alma sozinha. Desistiu de mim. Vez em quando eu rezava para que ele encontrasse alguém capaz de fazer o que eu não pude. Depois, ele desapareceu, não deu mais notícias. Só ficou eu: minha culpa, minha tão grande culpa. Esse retalho é pra você, onde estiver. Com linhas de arrependimento costuro: perdão.

Desculpe-me o leitor se a história cansa, ou se é chato o que digo. Se pensa assim, aconselho-te a não continuar com esta tentativa de memórias. Inclusive recomendo que leia Machado, Graciliano, Clarice, sei lá. Alguém com mais estilo, mais literato, mais profissional. Não estou buscando glórias literárias, quero apenas – aliás, querer não é o verbo exato, preciso – colocar estas coisas num papel. A única coisa que sei é que esta, talvez, seja a única forma de estar em paz comigo mesma. Assim, escrevendo o que vivi, mato o tempo que me mata. E, quem sabe, quando ele chegar, eu possa estar pelo menos mais curada ou com cicatrizes menos abertas. É isso. Não queira uma grande história, não espere um grand finale, é bem provável que isto acabe antes. Se, por ventura, desejas continuar, faça-o em silêncio e aceite minha vida, que se forma com retalhos do que fui e do que sou.

Da janela entre as cortinas vejo uma pontinha de céu cinza. Podia ser azul, anil. Não faria diferença: o que conto independe do momento. Tudo já está guardado e nada pode mudar isso. Ouço vozes de crianças que fazem algazarra no quintal vizinho. Sinto-me entre o prazer e a dor. Ao mesmo tempo que a vida se renova e se faz criança, me vejo despedindo-se, largando o mundo, ou melhor, sendo expulso dele: não é chegado o meu tempo! Por que preciso partir? Há muito o que viver... sei que vivi mal, que desejei por muitas vezes acabar com tudo isso. Mas agora que sinto que chegou a hora, que não posso adiar, não quero. Meu Deus, eu quero ser de novo, quero ficar, não me faça ir nessa viagem..............................................

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..............................................................................................................................sinto-me fraca............. é chegada a hora... Deus tenha piedade de mim... meus olhos pesam, meu corpo parece estar adormecendo aos poucos, lentamente... Infelizmente não o verei, você virá e será muito tarde... é bem possível que chegue a ler isso. Talvez não o aceite, mas espero que ao menos, o respeite.

...Faz tempo que acordei, e mesmo assim pouco quis escrever. Abri este caderno e reli estas linhas. Há algo mais a dizer? O que mais quer este papel de mim? Eu pulo os momentos como quem quer acabar logo: tive filhos (que importa? A alguém interessaria saber que o gene da desesperança anda solto por aí?... Hoje quando me olham, sinto a dificuldade das palavras que não dizem. Apesar de amá-los, pouco sei deles, pouco sabem de mim. Leio em seus olhos indagações e sorrio, talvez suavize a resposta e nos dê a tão sonhada tranqüilidade. Como sobrevivi? Sei dizer que a lida interior foi mais difícil que a batalha diária para o pão nosso de cada dia. Detalhes, pouco importa o que conquistei de material: sei que mim pouco foi dado conquistar, poucos me conquistaram. Isso, quem sabe, não justifique a ausência de passos neste quarto isolado do mundo. Não sinto ódio, nem remorso, nem rancor: acho que nem sinto. Por várias vezes conjuguei o verbo sentir maquinalmente, mas vivê-lo, não posso dizer.

A chuva trouxe um cheiro seco de terra molhada, eu me deixei ficar por algum tempo acompanhando o escorrer de uns pingos na vidraça. O dia, apesar de chuvoso, não tem ar de angústia. Nem eu penso nisso. Para mim pouco importa que faça sol ou chuva: não sou mais terra fértil e a vida independe de mim... e me conhecendo como sei, ninguém vai querer frutos de uma terra tão árida. Olho para o teto, sinto vertigens de ser eu. Eu quero que vida se consuma em mim e que possa dissipar as minhas nuvens e tão somente ser vapor, condensar em mim...chover-me.

A escuridão não me amedronta mais: na vida, aprendi a andar no abismo de mim, entre trevas – aliás, alguns poucos retalhos fazem de minha vida uma expectativa de luz no fim do túnel, para usar um lugar-comum. E mesmo não sendo máquina, sei o quanto fui direcionada a uns mesmos trilhos: a vida é uma rota a seguir, pouco se pode mudar, chega-se sempre a mesmos lugares. Sempre. Sabe que os últimos remédios me fizeram mais forte? O que é uma lástima. Difícil é este ato de viver se prolongando. A vida poderia ser como minha festa de aniversário de 39 anos: juntei tudo de força e transformei num apagão de vela... podia ser assim: de repente, fuuuuuuuuu, e a gente se esvai. Mas alguém persiste que eu continue como se tivesse uma missão.

Ontem fiquei fora do ar, como TV sem sintonia nem antena, pouco captava do que acontecia ao meu redor. Apenas vultos e sons disformes chegavam a mim. Me vi menina, garota, mulher num relance. Não creio ter mais o que contar e quem vai se interessar por filosofias de uma quarentona mais morta que viva? Creio estar tomando seu tempo, se és jovem tiro as suas esperanças ou pelo menos sirvo de modelo de como não-ser. Se és maduro, pouco posso te acrescentar, já que tens suas próprias experiências e, certamente mais valiosas que a minha. Mas se conseguistes chegar até aqui, ânimo: um pouquinho mais de tempo e te livras desse peso de ler o que te chateia. E já que falei em filosofia: carpe diem, inutilia truncat, fugere urbem, aurea mediocritas... se pouco representam para você, isso pode fazer mais efeito: “o essencial é invisível aos olhos, só se vê bem com o coração”. Isso deve ser o que de melhor tem essas linhas, e nem é meu. Mas também vivi tantas idéias dos outros, segui caminhos traçados por terceiros, fui muito mais o outro que eu mesmo, que pouco importa dizer de mim ou de alguém. Aliás, a gente pode dizer da gente depois de viver? Viver é repetição, filme de sessão da tarde que nunca deixa de passar. E se mudarem as personagens, o enredo é o mesmo. Na locadora de Deus, guardados em prateleiras, somos filmes com única indicação.

É tarde, já deveria ter descansado teus olhos e te deixado livre. Não mais continuarei, mesmo porque estou prestes a iniciar nova etapa e não quero mais falar da que acabei. Sinto que, aos poucos, tudo se acalma. Deve ser a serenidade de saber que estou saindo. Saindo de mim, sendo livre para ser. Que espaços vou encontrar? É céu? Purgatório? Inferno? Talvez mereça os três e, como uma colônia de férias, fique um pouco em cada um até que me decida. Peço que a janela seja aberta: é meu desejo contemplar aquilo que nunca abracei – “eu deixo a vida como quem deixa o tédio” – não fui poeta, só sonhei e pouco amei na vida. Sei lá, Deus deve estar querendo mais um retalho para tecer o céu, mesmo sabendo que quando nasci um anjo torto já tinha me traçado o caminho, pois não foi Ele mesmo quem ordenou?... e é o meu anjo que agora vejo entrar pela janela e me tomar pelas mãos. Pela primeira vez sinto que vou ser gouche outra vez. Já fui na vida, agora na morte...

 
   
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