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A MAÇÃ DE INVERNO

A MAÇÃ DE INVERNO


Roberto Schima


Por mais que o Sol brilhe, em verdade, o céu é frio e escuro.



Era de manhã, o último dia de um Outono particularmente melancólico, permeado por muitas chuvas, vento e até granizo.
O Sol despontara fazia pouco tempo de trás do horizonte. Era como se tivesse guardado o melhor de si para esse momento a fim de anunciar o início de uma nova estação. Fez brilhar os velhos telhados e as paredes encardidas. Trouxe a promessa de esperança para as ruas estreitas, tortuosas e sem pavimentação.
No interior do quarto pequeno e imundo, o ar frio penetrava pelas frestas da janela. Mas fazia frio lá dentro, não importasse se fosse Primavera ou Verão. Entre aquelas quatro paredes, era sempre uma mistura de Outono e Inverno. Todavia, a friagem vinda de lá de fora trazia um sentimento de vida, alegria e renovação que, no interior do pequeno sobrado, não existia.
Como fazia quase todos os dias, o menino ergueu seu corpo esquálido da cama, sentiu o gelado do piso nos pés, tateou com a ponta dos dedos pelos chinelos e, após encontrá-los, caminhou silenciosamente até a janela e abriu as venezianas. Fez uma careta de medo quando elas rangeram nas dobradiças devido a falta de lubrificação. Pôs-se a ouvir. Não escutando nenhum barulho dentro de casa, suspirou aliviado e abriu mais um pouquinho, o bastante para que pudesse colocar a cabeça para fora e debruçar-se.
Sentiu o frescor inundar seu peito e substituir o ar gasto e abafado.
O Sol, ainda frio, iluminou-lhe o pequeno rosto de nove anos.
O vento esparramou algumas mechas de seus cabelos.
Uma fileira de casinhas - todas iguais, sisudas e gastas - saudaram-no do outro lado da rua estreita.
Então, olhando o quintal do vizinho à esquerda, sua fisionomia tornou-se radiante.
Lá estava ela, sempre bela e maravilhosa:
A macieira.



Cristiano era o seu nome - escolha do pai para homenagear a mãe, D. Cristiana - e ele não saberia dizer por que gostava tanto de mirar aquela árvore todo santo dia. Decerto não conseguiria colocar em palavras, pois, além de atrapalhado, desinibição não era o seu forte. Na escola, era um suplício ser chamado pela professora para responder qualquer coisa. Ir até o tablado, então, em frente à lousa, equivalia a uma sentença de morte. Mal conseguia entender as aulas, quanto mais resolver os exercícios em casa. Os outros alunos evitavam-no, jogavam-lhe bolas de papel, riam dele por errar nas contas e por suas redações incompreensíveis. Faziam gestos insinuando que ele teria um parafuso a menos, quiçá dois ou três.
- Ei, filho da mãe sem mãe! - zombavam numa impensada crueldade típica da idade.
Um belo dia, D. Cristiana fugira com o vizinho da direita, largando tudo para trás. Maricotas de plantão disseram que ela não suportara mais as bebedeiras do marido. Outras argumentaram ter sido por causa das surras, sendo os gritos ouvidos até do outro lado da calçada. Uma delas discordara, afirmando que fora por causa das outras mulheres com as quais o marido flertava; havia um malicioso brilho de conhecimento de causa em seu olhar. Uma poucas simplesmente falaram que D. Cristiana não passava de uma sem-vergonha que não aguentara as responsabilidades da vida doméstica, tanto que largara o filho. Que mãe faria isso?
Para Cristiano, em vez de respostas, ficara somente uma pergunta: Por quê? De resto, era tudo nebuloso demais para sua mente de criança poder enxergar. E ele nem tinha certeza se gostaria de ver.
Chorara ruidosamente na primeira noite sem ela.
Fora a primeira e última vez.
- Cale a boca, moleque!
Sob a cinta do pai, este fizera-lhe ver que não havia tristeza nisso, somente frustração, rancor e raiva.
O menino não sentia nenhuma dessas coisas, apenas o vazio da amargura, como se tivessem arrancado seu coração do peito. Assim, aprendera a chorar baixinho, para dentro do travesseiro, quando o ronco do pai ecoando na escuridão da pequena casa avisava-lhe que era seguro.
Seu nome deixara de ser ouvido lá dentro, pois fazia o pai lembrar-se da esposa. Como se já não bastasse o garoto em si, cujos traços eram os traços da mãe escritos.
"Moleque" tornara-se o seu segundo nome.



Os pensamentos de Cristiano eram simples, lineares, mas também confusos feito uma pipa enroscada no fio de eletricidade. Agitavam-se ao vento, presos e, simultaneamente, sem rumo.
Seus únicos momentos de satisfação eram aqueles de manhã, quando podia abrir a janela e admirar a beleza daquela árvore.
A macieira.
Entretanto, não era necessário ser nenhum grande sábio, poeta ou filósofo para compreender a admiração do menino por ela.
Ficava no quintal do vizinho a esquerda, cuja casa era muito parecida com a sua, porém, ao contrário do cinza antigo e desbotado, as cores das paredes eram vivas e brilhantes. A árvore era frondosa, bem adubada, inúmeros frutos pendiam de seus galhos. As maçãs, muito vermelhas, redondas e tenras eram lindas e cintilavam sob o Sol da manhã. As folhas, sem serem grandes e nem propriamente pequenas, traziam a umidade do orvalho da madrugada. Tão diferente de sua própria árvore, em frente de casa: sem folhas a orvalhar, raquítica, tronco enrugado, seca, triste. Cristiano sequer se lembrava do dia em que a vira florir ou de que espécie seria.
E da janela de seu quarto defronte à rua, o garoto observava o quintal do vizinho.
A última manhã de Outono.
- Bonita - disse, baixinho.
A macieira respondeu através de sua fragrância, um aroma adocicado de primavera a persistir através das estações, que chegou às narinas do menino.
E ele sorveu vagarosamente, enebriado.
Lá, naquele quintal e naquela casa, era sempre Primavera.
Os galhos mais finos balançavam e balançavam, entregando-se ao sabor da brisa.
Ah, como eram belos aqueles momentos, a quietude, os feixes de luz a atravessar os ramos ao amanhecer. A simplicidade de um mundo que, para Cristiano, tornava-se aconchegante e compreensível.
Em contraste, na sua casa reinava o peso do Inverno e jamais amanhecia.
Os frutos tenros pendurados fragilmente pareciam estar prestes a cair e, de fato, no gramado abaixo, alguns haviam se desprendido, fazendo pensar em uma história que a professora contara sobre um estrangeiro chamado Newton e uma outra maçã, muito longe dali.
Sua própria árvore, pelo contrário, nunca vira fruto algum que pudesse despencar.
E Cristiano ficou absorto naquela contemplação. Ele costumava ficar o máximo de tempo que conseguia.
Oh, como era belo!...
... E fugaz.
Nessa manhã, em particular, foi fugaz demais e nada silenciosa.



A porta do quarto abriu ruidosamente:
- O que está fazendo aí, moleque? Vadiando, é claro!
O garotinho, de tão embevecido com a macieira, não percebera os passos pesados e incertos na escadaria do sobrado. Tampouco sentira o cheiro forte de cachaça, suor e sujeira.
Mais bêbado do que nunca, seu pai surrou-lhe quase ao ponto de fazê-lo desmaiar.
Ao perceber que o menino não se levantava, o pai - em meio ao oceano ébrio no qual, à deriva, julgava navegar - resolveu ir até a farmácia para comprar iodo, gaze e esparadrapo.
- Não sai daí! - gritou. - Só dá trabalho!
Cristiano sequer ouviu, afundado na dor.
A custo o homem cambaleou escada abaixo.
A porta da sala fechou-se com estrondo.
A casa aquietou-se.
No caminho, teve de passar em frente ao sobrado do ex-vizinho que roubara-lhe a mulher. Amargurado com a lembrança, esqueceu-se completamente do filho e da farmácia, indo refugiar-se no fundo do bar da esquina, cujas portas já se abriram para oferecer o primeiro trago do dia.
Quando conseguiu finalmente pensar, uma recordação assaltou Cristiano.
Um dia cedinho, ao abrir a janela, ficara surpreso em ver a mãe do outro lado da rua. Ela estava atrás de um carro e acenara-lhe. O coração da criança enchera-se de cor e felicidade. Pretendia retribuir o aceno num agitado erguer de mãos, quando, dentro do carro, vira o rosto impaciente e alarmado do ex-vizinho. Então, acabrunhado, olhara uma última vez para o rosto de D. Cristiana e fechara a janela até perceber que o carro havia ido embora. Fora, de fato, a última vez que a vira.
A custo, o menino ergueu seu corpo marcado. Trôpego, retornou a janela e admirou a macieira por muito e muito tempo.
As maçãs balançavam: doces, vermelhas, suculentas.
Escutou barulhos vindo daquela casa e escondeu-se por trás da veneziana. Através das frestas, viu o garoto do lado sair com o pai a caminho da escola. Sorriam de um assunto qualquer. As roupas do menino eram limpas; seu aspecto, vistoso. Lembrou a Cristiano uma das maçãs. Pai e filho entraram no carro e sumiram ladeira abaixo, sob a luz da manhã.
O derradeiro amanhecer de Outono.
Cristiano não foi estudar nesse dia.
Sua atenção prendeu-se novamente à árvore.
A macieira.
E percebeu.
E decidiu-se.



O pai demorou a retornar naquele dia. Sem remédio. Sem comida. Dormiu pesado para esquecer.
O restante do dia passou numa lentidão de sonho.
A tarde findou.
A noite chegou.
Era o término da madrugada quando Cristiano levantou-se da cama.
Dessa vez, o menino não chorara para o travesseiro.
Ele foi sorrateiro até o quintal, junto à árvore encarquilhada. Acariciou a aspereza de seu tronco e a fragilidade quebradiça de seus galhos. Tão recurvada. Tão triste. Tão sem propósito. Sentiu pena por ela. Inspirou profundamente, trazendo a friagem da noite e o aroma da macieira para dentro de si.
O silêncio seria completo não fosse o vento na copa da árvore do vizinho fazer seus ramos farfalharem.
Apanhou a escada e encostou-a ao tronco da velha árvore, a sua árvore. Subiu. No último degrau, percebeu a claridade do sol ensaiando brotar no horizonte.
O amanhecer do primeiro dia de Inverno.
Novamente, o vento agitou a macieira do vizinho e, mais uma vez, Cristiano encheu seus pulmões do frescor do orvalho. Os braços curtos e finos arrepiaram-se.
- Obrigado - agradeceu.
Era isso o que ele desejava.
Era isso que ele queria.
Queria o alento da brisa.
Queria sentir o calor da aurora.
Queria ser a doçura tenra das maçãs.
As maçãs sob o sol da manhã.
As maçãs que o garotinho diariamente contemplava.
Cristiano decidiu ser uma delas.
Assim, após observar as derradeiras estrelas no céu, fitou brevemente a janela de seu quarto. Em seguida, lançou um longo olhar para o quintal do vizinho.
A silueta da macieira destacava-se na tênue claridade.
Suspirou.
Amarrou a corda no galho mais alto que suas mãozinhas alcançaram.
Por fim, deu um pontapé na escada para ela cair.
Pendurado na árvore, Cristiano tornou-se seu fruto; suas lágrimas, o orvalho; o grito de seu pai ao abrir a janela, o riso que o garotinho jamais ouvira.
- Cadê você, moleq... CRISTIANOOO!!!
A primeira maçã de Inverno.
Vermelho.
Molhado.
Tenro.
Livre.
Foi uma manhã ensolarada como havia tempos não se via: muito azul, poucas nuvens e uma brisa úmida no ar. Bandos de pássaros sobrevoaram as ruas. Ventos fortes espaventaram a poeira dos telhados. Roupas secaram depressa nos varais.
Havia a promessa de esperança para as ruas estreitas, tortuosas e sem pavimentação.
O Sol caminhou tranquilo e seguro pelo céu, afinal, reservara o melhor de si para esse dia. Fez brilhar os velhos ladrilhos e as paredes encardidas. Secou o suor e a lama. Trouxe o sorriso para inúmeros semblantes que, por ele, deixaram-se iluminar.
Até para aqueles que sorriram... sem sorrir.



Encontro mais respostas na penumbra do que à luz do dia.
O que as sombras dizem, a claridade não consegue mostrar.
Uma pincelada em preto-e-branco é direta, rude e pungente,
naquilo que um belo arco-íris pretende tão somente enfeitar.
As silhuetas reveladas pela bruma,
um céu azul não consegue revelar.
E é por isso que na única lágrima que principia,
há mais luz do que mil sorrisos pretendem ocultar.



NOTA DO AUTOR:
Conto originalmente publicado na revista digital "Conexão Literatura" nº 52, pág. 49. Download gratuito em http://www.fabricadeebooks.com.br/conexao_literatura52.pdf

Minibiografia:
Sou neto de japoneses. Nasci na cidade de São Paulo em 01/02/1961, o que agora me parece muito distante. Passei a infância imerso nos anos 60, período de várias transformações. Tive a felicidade de sentir o clima de entusiasmo em relação a "Conquista do Espaço" que hoje não existe mais - não obstante a Guerra Fria. Fui o vencedor do "Prêmio Jerônymo Monteiro", promovido pela "Isaac Asimov Magazine" (Ed. Record), com a história "Como a Neve de Maio", publicada em seu nº 12. Escrevi a história "Abismo do Tempo", uma das contempladas do concurso "Os Viajantes do Tempo", promovido pela revista digital "Conexão Literatura", de Ademir Pascale, e publicada em sua edição nº 37, de Julho de 2018. Desde então, tornei-me um colaborador regular da revista. Escrevi os livros "Limbographia" (contos), "O Olhar de Hirosaki" (romance), "Os Fantasmas de Vênus" (noveleta), "Sob as Folhas do Ocaso" (contos) etc.
Obs: Mais informações: Google, Yahoo ou nos links abaixo.
http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/p/edicoes.html
https://www.amazon.com.br/s?k=%22roberto+schima%22&i=digital-text&__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&ref=nb_sb_noss_2
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Contato: rschima@bol.com.br ou rschima@ig.com.br

 
   
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