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Meditações a partir da horta doméstica da minha casa No carnaval deste ano, resolvi retomar o cultivo da horta minha doméstica, que há alguns anos vinha mantendo no quintal da minha casa, no município de Campinas/SP. Com o agravamento da estiagem em 2014, eu suspendi o seu cultivo por conta da escassez de água. Chegou a faltar água no condomínio de casas onde moro e, como uso água da rede pública para regar as plantas, achei conveniente suspender por algum tempo as minhas atividades de horticultor à espera de melhoras na situação hídrica da cidade.
As chuvas vieram com maior intensidade no mês de fevereiro. A situação da Região de Campinas melhorou um pouco em relação à disponibilidade de água, só um pouco. Com as chuvas mais firmes, pensei: não terei de regar tanto e o consumo de água da rede não vai subir muito. O ideal seria que a minha casa já dispusesse de um sistema de captação de água da chuva. A minha família está seriamente propensa a montar esse sistema. Talvez o próprio condomínio monte um sistema. Isto está sendo cogitado pelo coletivo de moradores. Não vou tratar do assunto água, volto à horta.
Então, no sábado de carnaval, eu preparei os canteiros e plantei as mudas. Enquanto revirava a terra, observava a quantidade de vida existente naquele pequeno espaço. O meu quintal é pequeno, mas tem espaço para uma boa horta e para algumas árvores frutíferas. Vi na terra revirada uma infinidade de insetos e de anelídeos. Alguns fungos também eram bem visíveis. Imaginei a existência de uma infinidade de micro-organismos visíveis apenas pelo microscópio; é muita vida num pedacinho de chão. Hoje, no meio rural, terras com essa abundância de vida estão ficando cada vez mais raras, pois o uso cotidiano de máquinas pesadas, de agrotóxicos e de fertilizantes químicos têm empobrecido os solos rurais do ponto de vista da biodiversidade.
Olhando para aquela terra cheia de vida, acabei concluindo que deixá-la em repouso por alguns meses foi de bom alvitre. Veio-me à mente que os antigos agricultores tinham o hábito de deixar parte da terra em repouso por algum tempo. Na idade média europeia, aí pelos séculos XI e XII, os agricultores começaram a dividir as terras em três lotes, cultivando em dois e deixando um em repouso. Tratava-se de um repouso para a lavoura, pois deixavam o gado usá-lo enquanto isso. Costumavam semear trevo para que fosse usado como forragem e o trevo, como hoje é sabido, retira o nitrogênio do ar e o fixa na terra, fertilizando-a. As fezes do gado e o trevo preparavam a terra para o plantio do ano seguinte, quando se fazia o rodízio dos lotes. A introdução dessa forma de manejo do solo rural produziu excedentes agrícolas que contribuíram para o renascimento do comércio em larga escala no continente europeu. As práticas comerciais de grande monta quase desapareceram após a queda do Império Romano. A rotação de culturas, essa prática antiga e sábia, tem sido pouco praticada no Estado de São Paulo por conta do avanço da monocultura, é uma pena...
Não planto trevo e nem tenho gado para adubar a minha horta, mas uso compostos orgânicos para fertilizá-la, dispensando assim os adubos químicos. Trata-se de um manejo correto do ponto de vista da ecologia. Tenho conseguido boas colheitas de hortaliças saudáveis e não é só isto. Para fazer esta agricultura doméstica, tenho que manter quintal permeável, sem calçamento, contribuindo, assim, com a recarga do lençol freático nos dias chuvosos. Sempre é bom lembrar que um dos males da cidade é a impermeabilização excessiva do solo, que se dá pelo asfalto e pelo cimentado dos quintais; a chuva vira escoamento superficial e vai embora para os rios, provocando enchentes recorrentes, todos os anos, durante o período chuvoso.
Em Campinas, para minha facilidade, eu já compro as mudas de hortaliças prontas. Elas são vendidas aos sábados de manhã numa banca montada em frente ao Aeroporto dos Amarais. As mudas prontas adiantam a colheita em mais ou menos um mês, pelos meus cálculos. Nas cidades onde não é possível encontrar fornecedores de mudas, pode-se recorrer aos tradicionais saquinhos de sementes. Muitos são os compradores de mudas, gente de todas as idades e de origens sociais bem diferentes, mas com uma coisa em comum, todos fazem hortas domésticas. Inclusive, existem muitos que as fazem nos apartamentos, usando floreiras. O movimento é tanto que ao lado da banca de mudas instalou-se uma banca de pastéis fritos na hora. Dessa forma, comprar mudas de hortaliças na minha cidade tornou-se um evento social bem agradável e bem vantajoso do ponto de vista financeiro, pois além de serem baratas, à medida que se aumenta a quantidade adquirida, o preço unitário delas cai.
Produzir a sua própria hortaliça, além de sair em conta, significa ganhos importantes em termos da qualidade do produto final, particularmente no sentido da sua sanidade, pois ela fica livre de agrotóxicos, desde que não os use, é óbvio. Como a horta é pequena e está sendo cultivada num solo sadio e rico em nutrientes, com boa variedade de plantas, todas misturadas, como acontece na natureza, os venenos são plenamente dispensáveis, como deveriam ser também no caso das hortaliças compradas nos supermercados e nos varejões. As hortaliças produzidas por mim, eu afirmo, são plenamente seguras e garanto, ainda, são mais saborosas. Além disso, são muito mais frescas, pois as colho no momento do consumo.
Antigamente, quando o Brasil era mais rural, principalmente nas cidades interioranas, fazer horta era uma atividade corriqueira. Os terrenos costumavam ser grandes e, muitas vezes, as moradias urbanas tinham pomares, hortas e até galinheiros. Boa parte da alimentação resolvia-se no ambiente doméstico. Com o crescimento das cidades, os terrenos diminuíram em tamanho, apequenando os quintais, e com aumento dos arranha-céus os quintais desapareceram. Sobrou pouco espaço para a agricultura doméstica e esse espaço restante acabou sendo cimentado por conta da ideia de que terra é sinônimo de sujeira. Na verdade, em poucas décadas, a maioria da população brasileira perdeu completamente o contato com a natureza, principalmente nas grandes metrópoles, como é o caso da Região metropolitana de Campinas, onde habito há cerca de cinco décadas, desde que saí da zona rural na minha infância.
Conseguir um espaço no meio do cimento, ainda que pequeno, para iniciar uma horta pode ser o início de um recontato com o mundo natural. Essa religação é mais que necessária nos dias de hoje, pois, com certeza, a perda de contato tem contribuído de forma decisiva para a degradação ambiental. A natureza tornou-se estranha para a maioria das pessoas, que desconhece o seu funcionamento; é preciso reaprende-la.
As escolas poderiam exercer um papel importante na reconexão homem-natureza. Isso poderia e deveria ser feito de forma prática. Por exemplo, hortas escolares com objetivos pedagógicos, ligadas às disciplinas científicas, contribuiriam para colocar as crianças num contato pró-ativo com o meio ambiente.
O solo poderia ser examinado nas aulas de biologia, onde seriam estudados os insetos e os micro-organismos, estes últimos através dos microscópios. No preparo do composto orgânico haveria a aprendizagem sobre os nutrientes do solo e também sobre o micro-organismos. Os alunos aprenderiam que os nutrientes são moléculas e que estas são formadas por átomos. Seria uma forma agradável de introduzir a Tabela Periódica dos Elementos Químicos, aquela coisa chata de se decorar. Após o cultivo, cada passo do crescimento das plantas poderia ser estudado, o que seria uma boa introdução à botânica. Muitas outras coisas poderiam ser estudadas a partir da horta; a água e o seu papel na criação e na manutenção da vida é uma delas, por exemplo.
Essa forma de aprendizado tem muito a ver com a ideia de alfabetização ecológica preconizada pelo físico e ecólogo Fritjof Capra. As crianças começariam a entender que a natureza é uma grande teia da vida, onde tudo se interliga, e que a horta é uma repetição em miniatura do macrocosmo, como todos os ecossistemas, por menores que sejam. Essa alfabetização ecológica é urgente e necessária, pois nunca antes os seres humanos estiveram tão desligados do mundo natural como agora. Começar com as crianças é um bom começo, talvez seja o melhor começo, pois elas, caso vivam no meio urbano, com certeza, são as mais desconectadas. Seus pais e avós talvez tivessem algum contato com a natureza em tempos idos, mas elas têm poucas possibilidades de contatos frequentes com ela hoje em dia.
As prefeituras municipais também poderiam ter uma participação pró-ativa em relação às hortas domésticas. Elas poderiam incentivar a população, desenvolvendo cursos de horticultura, de produção de compostos orgânicos, entre outros. Elas também poderiam fornecer sementes ou mudas prontas para aqueles que desejassem iniciar suas hortas. As mudas poderiam ser produzidas pelas prefeituras, através dos seus departamentos de parques e jardins, para serem doadas ou até mesmo vendidas pelo preço de custo, que é bem barato. Muitos adultos, que no passado tiveram algum contato com a terra, com a natureza, poderiam retomá-lo e, para aqueles que nunca tiveram, que hoje são a maioria, esse seria um bom começo. Trata-se de um projeto de caráter intersetorial e, do ponto de vista pedagógico interdisciplinar, que envolveria as secretarias de educação, saúde, meio ambiente e agricultura. Contudo, para se religar à natureza, há que se ter vontade política, tamanho é o afastamento que as pessoas têm dela nos dias de hoje.
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