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Identidade Há alguns dias eu estava no ônibus, indo ao apartamento dos meus irmãos, e nos meus fones tocavam as músicas que eu havia compilado em uma playlist que nomeei “Pleasant Travels”. De forma geral são músicas tranquilas, de ritmos que nos carregam em suas melodias, convidando sempre a cantar e também a refletir. A próxima música no aleatório foi Fast Car, de Tracy Chapman, eu sempre gostei dessa música, com sua sonoridade gostosa e a voz marcante de Tracy, era uma que eu raramente pulava, e naquele dia não foi diferente.
Entretanto uma diferença nessa situação em particular foi que eu fechei meus olhos, focando minha atenção nos acordes suaves, e por consequência na letra da música, ouvindo o eu lírico declamar sobre as situações complicadas de sua vida, sobre sonhos e decepções, sobre identidade. E tudo isso me levou a uma profunda e introspectiva reflexão.
Creio que para mim, nessa letra, a frase mais marcante foi “And I had a feeling that I could be someone”. É algo a se ponderar, principalmente quando levamos em conta as demais situações descritas na canção. O Eu lírico tinha sonhos, planos, expectativas... que não se realizaram, e ficou apenas com a sensação de que poderia ter sido alguém na vida.
Ser alguém na vida...?
Certamente, assim como eu, você, car@ leitor@, também deve já ter ouvido de alguém mais velho essa frase. Anterior a esse momento eu nunca tinha parado para pensar na intensidade e no sentimento que transmite essa simples construção. É uma frase que geralmente vem acompanhado de uma sugestão (que frequentemente soa como uma ameaça): “Você precisa tomar jeito ou não vai ser alguém na vida!” ... “Você deve fazer tal curso se quiser ser alguém na vida.”.
Eu nasci em 1994, sou uma Milenial, dos primeiros anos dessa “geração”, uma garota que por consequência cresceu em uma família da geração X. Era uma constante batalha, um atrito que não era abrasivo, mas sem dúvida foi desgastante. Meus pais, tios e outros familiares mais velhos seguiram a vida como o padrão geração X espera, trabalhando duro em qualquer cargo, focando em crescer e juntar dinheiro, comprar uma casa, constituir família e deixar para aproveitar a vida depois da aposentadoria. Era esse o programa, e assim foi feito. Mas nós, Milenials, queremos algo diferente, queremos poder desfrutar o meio do caminho, encontrar algo em que gostemos de trabalhar, fazer a diferença para o mundo de um jeito que não nos exaure, nós queremos aproveitar o agora. Não que não pensemos no futuro, veja bem, temos nossas metas a médio e longo prazo, montamos planos, sonhamos com expectativas. Entretanto, durante minha tardia infância e adolescência, fui constantemente recriminada quando pensava em decisões que colocavam minha satisfação como algo mais importante (ou tão importante quanto) o que os meus pais definiam como parâmetros para “ser alguém na vida”.
Os destinatários desse texto são aquelas pessoas que sonham (ou sonhavam) em ser artistas plásticos, biólogos marinhos, historiadores, ou como eu, roteirista de jogos de RPG... esse país em que nascemos não é nada gentil conosco que temos essas paixões fora do padrão, então não é nem um pouco incomum, que precisemos abrir mão de nossos sonhos para seguirmos algo um pouco mais com a cara do mercado... algo que nos dê chances mais palpáveis de ser alguém na vida. Com isso não quero dizer que se você não está disposto a abrir mão de seus sonhos, você estará fadado ao fracasso profissional. Muito pelo contrário. Eu considero você uma pessoa poderosa e corajosa, alguém para qual desejo de coração toda a sorte do mundo na busca pelos seus sonhos e ideais. O que quis dizer acima, é que essas escolhas de estudo e carreira não têm um mercado muito aberto e não remunera muito bem no Brasil, ao menos esse foi o resultado que obtive quando fiz minhas pesquisas no momento de escolher qual curso e qual faculdade deveria cursar.
Digressões e divagações (ora pertinentes, ora não) a parte, o ponto principal da reflexão que gerou a ideia desse texto é a questão da identidade. Retomando o exposto acima, na canção de Tracy ela diz que havia sentido a possibilidade de ser alguém, algo que está amarrado com a lógica de concluir com êxito o plano que tinha para sua vida, perseguir e alcançar suas ambições, mas o que dá a entender é que ela ficou apenas com a sensação... não conseguiu, no fim das contas, ser alguém na vida.
Não sei qual foi o momento em que deixamos que nossa identidade fosse definida através dos nossos méritos e conquistas especificamente profissionais e talvez acadêmicas, mas isso é consideravelmente cruel. Se sonhamos com algo que não é o padrão imposto pela sociedade, de sucesso profissional, não somos ninguém? Não somos dignos de nota? Não somos importantes o suficiente para poder dizer que somos SIM alguém na vida?
Diante dessa métrica... Quem sou eu? Uma garota que nasceu nos subúrbios de São Paulo, estudou intercaladamente em escolas públicas e particulares, mediante a possibilidade de meus pais arcarem com as despesas, constantemente inferior aos meus irmãos mais velhos, quando analisando conquistas na vida, que fora obrigada com violência física e emocional a trancafiar sua sexualidade quando notou que estava fora do padrão “normal”, que atualmente está desempregada, solteira e ainda pleiteando um diploma universitário, sem nada nem ninguém para chamar de seu. A conclusão final é que passados 24 anos de experiências boas e ruins, de erros e acertos, quando analisados em termos de ser alguém na vida... eu não sou ninguém.
E ainda mais preocupante que não ser alguém agora, é não saber se serei alguém no futuro. Eu tenho minhas metas e ambições: quero encontrar um emprego no qual eu goste de trabalhar, quero que minha escrita seja reconhecida e aclamada, quero poder imigrar para o Canadá, quero encontrar alguém que me ame verdadeiramente, que ame minha essência, quero viajar para vários lugares e também quero uma casa linda e espaçosa na qual possa criar meus futuros filhos (duas Huskys, akitas ou shibas, de crianças humanas passo é longe). Mas... eu não tenho a menor certeza se isso um dia vai se concretizar. E eu tenho medo que não se concretize. Eu tenho medo de não conseguir ser alguém na vida.
É tão ruim viver com medo. Constantemente em luta para sobreviver a cada dia sem deixar transparecer nosso pânico nos vários momentos que nossos desafios parecem muito aquém de nossas capacidades. Segurando nossas lágrimas para não parecermos fracos aos olhos de terceiros, deixando para chorar apenas quando não temos mais nenhuma testemunha além de nosso reflexo no espelho. Se nos estendem a mão, não queremos aceitar, por medo de parecer que somos incapazes de superar nossos problemas, por medo de nos decepcionar ainda mais com nós mesmos. Se não nos estendem a mão, nos sentimos ainda mais isolados, fracos e incapazes, caminhando sobre a linha tênue da nossa sanidade, olhando frente a frente os monstros de nossa psique: depressão, ansiedade, TOC, e seus comparsas.
É confuso, é sobrepujante.
Então, car@s leitor@s, lhes convido aqui a dizer chega para tudo isso. Dizer não para todas as pressões e tensões. Se não de forma aberta devido possíveis reprimendas de diversas naturezas, ao menos internamente. Você não precisar mudar sua essência ou dilacerar seus sonhos para ser alguém na vida. Você já é alguém na vida! Alguém incrível que venceu inúmeras batalhas para chegar onde chegou, que sofreu as intempéries da vida, mas se levantou em seguida, pront@ para continuar sua luta. Se precisar chorar, chore. Não é fraqueza, é sobrevivência. Se precisar de um ombro amigo, você tem o meu, me mande um e-mail, te convido para um chá. Ainda tem muitas batalhas pela frente, e eu torço de coração para que você vença todas, sem nunca abrir mão da sua identidade, da pessoa incrível que você é.
Sempre sua
Ellendra Valentine
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