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ABISMO DO TEMPO ABISMO DO TEMPO
Roberto Schima
Estava frio no alto da montanha.
O vento afugentava suas madeixas como fantasmas chacoalhando as folhagens no entardecer de outono. Entretanto, não havia fantasmas e nem outono naquele lugar, exceto pelo temor e ansiedade a assombrar seu espírito cuja atenção prendia-se lá no alto, para além das três luas, entre as primeiras estrelas a surgirem em oposição ao poente.
- Juan... - murmurou.
A saudade doía no peito, em compasso às batidas de seu coração.
Era um mundo novo, um novo céu e uma nova esperança de vida. Porém, uma emergência chamara-o às pressas, algures nas fronteiras desse sistema solar.
Ele prometera:
- Vou o mais rápido que puder, Celine. Não se preocupe, retornarei logo.
- Sentir-me-ei tão só aqui! É tudo tão estranho.
- Voltarei num piscar de olhos.
E no alto da montanha, naquele planeta, a jovem esperou pelo retorno de seu amado. Daquele mesmo lugar, ela observara a nave dele partir numa esteira de luz, segurando o choro até o último instante, sem se dar conta de que, antes disso, havia muito que as lágrimas rolavam. Não tardara para o veículo transformar-se em mais uma estrela, até confundir-se no céu em meio àquelas constelações estranhas, ainda sem nome - se é que os poucos colonos que haviam ficado iriam dar-se a esse trabalho tão cedo.
E ela esperou.
Esperou.
E esperou.
E o tempo passou.
Um piscar de olhos nunca lhe pareceu tão longo.
E a noite continuou estrelada, porém, silenciosa; um abismo escuro a afundar no desconhecido.
Fantasmas e outonos agitavam-se dentro de si, sussurrando sopros de mau agouro.
- Juan!
E noite após noite ela chorou.
Do alto da montanha, atormentada pela solidão, retornou para sua barraca. Não encontrou conforto sob os lençóis, na cama tão imensa e vazia quanto um platô polar.
E os dias tornaram-se semanas e meses naquele mundo desconhecido.
Seu corpo parou de tremer.
Chegou a noite em que, não obstante a insônia, as pálpebras caíram, vencidas.
E, um dia, finalmente, deu-se conta de que as lágrimas, enfim, tinham secado.
Pensou em muitas hipóteses, todas elas ruins, até concluir que pensar em não pensar tornava sua existência mais suportável.
Juntou-se aos demais colonos na construção e desenvolvimento da aldeia. Contudo, jamais se casou, nem chegou a ter alguém a quem pudesse chamar de amiga.
De vez em quando, sem se dar conta, descobria-se a observar o céu. Então, imediatamente, voltava os olhos para o chão, para os problemas do dia-a-dia, seus afazeres e o pensar sem pensar.
As memórias, às vezes, podiam ser como escritas na areia de uma praia. Dependendo da maré, apagar-se-iam para sempre. Aconteceu isso com Celine. Gradualmente, a idade, o tempo, a moléstia, foram roubando-lhe, grama a grama, punhados cada vez maior de suas recordações.
E chegou o dia em que se esqueceu da nave.
E chegou o dia em que se esqueceu da saudade.
E chegou o dia em que se esqueceu de seu próprio nome.
E, enfim, chegou o dia em que se esqueceu de esquecer.
O destino podia ser piedoso quando queria.
- Quem era ela?
- Meus pais diziam que era maluca. Sempre tive medo dela quando criança.
- Coitada...
- Coitada? Coitada de mim, isso sim! Tive pesadelos por causa dessa bruxa.
Ninguém soube que nome colocar na lápide da velha, todavia, por obra do acaso, da providência divina ou por uma estranha coincidência, enterraram-na no sopé daquela montanha onde, um dia, olhos tristonhos e esperançosos chamaram e tentaram tocar as estrelas.
E o tempo passou.
E a poeira cresceu.
E nada do céu desceu.
E a pequena comunidade naquele mundo que não era o seu definhou. Uns diriam que fora a fome; outros, a doença; outros, as desavenças. Diriam, se tivesse sobrado alguém para contar a história.
Então, enfim, numa noite fria como tantas outras noites frias, uma esteira de chamas riscou o tecido negro do espaço.
E a nave - aquela nave! - pousou.
E o homem, ainda jovem, apressado, saltou.
Juan procurou, procurou e procurou.
Chegou a tropeçar nos restos do que fora uma lápide sem nome.
Carcomida.
Corroída.
Esquecida.
Viu as ruínas e o que elas diziam.
Ele fora rápido, o mais rápido que pôde na sua ânsia de um breve regresso.
Ele fora rápido...
... rápido demais.
Para ele, a partida tinha sido praticamente ontem, uma semana a bem dizer.
Para ele.
Todavia... O abismo do tempo abrira-se diante de si.
Impactante.
Indiferente.
Implacável.
Irreversível.
E a compreensão atingiu-o com um soco no estômago.
E foi a vez dele chorar para as estrelas.
Sem encontrar consolo.
Sem esperar um retorno.
Sem descobrir respostas na noite sem fim.
Sem rever um rosto amado a esperá-lo na terra.
Não.
Sem espera.
E sem esperança.
E Juan, jovem de corpo, porém, agora, velho de espírito, arrastou seus pés pela poeira daquele mundo tão longínquo do seu. Um planeta que, a princípio encerrara inúmeras promessas. Era bom. Bom demais. Tantas promessas não cumpridas, como suas próprias palavras agora arrastadas pelo vento, desgastadas no tempo e esquecidas ao relento.
- Celine...
E ele descobriu como o vazio do espaço, as incríveis distâncias entre os astros, poderiam existir dentro de si.
E era enorme.
Era frio.
E escuro.
E nenhum ganho futuro que aquele mundo pudesse reservar para ele e sua tripulação iriam preencher o abismo da perda.
A noite avançou naquele mundo, trazendo seus fantasmas e seus outonos de um passado longínquo.
E o jovem deixou-se ficar na poeira, entre os rochedos e uma rala vegetação, a pouco metros de uma sepultura esquecida.
Sem glória.
Sem história.
Sem memória.
NOTA DO AUTOR:
Esta história foi uma das vencedoras do concurso de contos "Os Viajantes do Tempo", promovido pela revista digital "Conexão Literatura" (http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/), sendo publicada em sua edição nº 37 (Julho/2018). Download gratuito em:
http://www.fabricadeebooks.com.br/conexao_literatura37.pdf
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