Botei o feijão no fogo.
Demora pra cozinhar! Deixa estar... Uma hora ele fica pronto.
Pra que a pressa? Em fogo brando fica melhor. É o que dizem.
Enquanto o fogo fazia o obséquio de fazer a sua parte. Cozinhar o dito feijão. E já que chovia. Uma chuva lerda, dessas que caem no interior, resolvi dar um destino ao tempo de sobra. Poderia olhar a chuva caindo através da vidraça. Mas decidi que não. A vidraça anda necessitada de um bom esfregão, e estou de laços rompidos com os panos de chão, e rodos e vassouras. Por enquanto. Depois não vai ter jeito mesmo. Terei de fazer as pazes com esses objetos e botar o lenço na cabeça e o avental. Mais isso é depois.
Tomei uma seria resolução. Vou é ouvir música que ganho mais.
Sentei-me diante da vitrola. Relíquia. Das Antigas! Como se qualquer relíquia pudesse
ser nova.
Não sei se por saudosismo. Ou porque quando criança, em todas as manhãs, eu acordava com o cheiro do café sendo coado. No coador de pano. Daqueles que viviam suspensos sobre um tripé. Na base do tripé o bule esmaltado. O de casa era verde. Verdade que um tanto lascado.
Junto com o aroma do café fresquinho, vinha o som da viola. Escapava pelas ondas curtas do rádio. De válvulas. Um luxo! Diga-se de passagem.
O som atravessava a parede de madeira do quarto onde eu repousava, e vinha bater nos meus ouvidos. Delicado que só vendo! Até parecia afago de namorado.
Despertava, invariavelmente, com a voz de Tonico e Tinoco. Pedro Bento e Zé da Estrada, Zé Fortuna e Pitangueira e Zé do Fole. Naquela época eles ainda formavam um trio.
Essas vozes, eram as que me acordavam. E essas eram as músicas que meus pais, caboclos, ouviam. Antes mesmo de o sol espreguiçar e dar o ar da divina graça.
Preguiçosa. Não pulava da cama. Mas era obrigada a deixar o confortável ninho do colchão de palha.
Era a hora de dar bom dia ao dia. Bem como a de iniciar a lida diária.
Tirar água do poço. Dar milho para as galinhas. Regar as hortaliças. Esfregar a roupa na tábua de lavar. Com sabão de cinza! E era aquela trabalheira. Esfrega, enxágua, ensaboa, bota pra quarar sob o sol. Esfrega de novo. Enxágua. Enxágua mais uma vez. Passa na água de anil. (só as brancas). Torce e pendura no varal. De arame farpado.
E assim a vida seguia...
Resolvi ouvir Paineira Velha do Tonico e Tinoco.
Por quê? Talvez porque o saudosismo tenha batido! Ora essa!
Talvez seja porque os travesseiros na casa da minha avó eram recheados de paina.
Me vi lá no sítio da vó Carolina. Água da Bananeira. Foi assim batizado. Se pelo meu avô, ou se o nome já era esse mesmo, quando ele o comprou, não sei.
O fato é que me vi sentada sobre a sombra da paineira, ao lado da prima Fátima. Naquela tranqüila tarde de primavera. Confabulando. Entre outras coisas, o que mais duas mocinhas casadoiras de treze anos poderiam estar falando? Sobre namorados!
Sem essa nem mais aquela, resolvemos gravar no tronco da paineira a inicial do nome de nossos futuros maridos. Não tínhamos nem idéia de quem viria a ser os felizardos.
Canivete na mão. Com licença dona paineira? Gravei a inicial.
Qual foi a letra que gravei no tronco da pobre da árvore?
A primeira letra do alfabeto. Não por falta de opção. O alfabeto é longo. Nem por preguiça de procurar outra inicial. Foi "A" porque foi "A".
A de Amor? A de Adalberto? A de André? A de Arnaldo? A de Antonio? A de Aroldo? Ih! Aroldo não é com H? É. Mas nem todos. Brasileiro inventa. A de Adolfo?
Não sei! Deixei por conta do destino. E da Paineira. Nunca mais pensei no assunto.
Se deu certo? De alguma forma deu sim.
A vida me trouxe um Aroldo, que me deu Arthur, Ana Carolina e Amadeo.
Minha prima Fátima? Pasmem. Também se casou com um rapaz cuja inicial do nome, ela gravou no tronco da paineira.
Agora, mudando de ganso pra pato, estou pegando outro disco para ouvir e isto me fez matutar:
- Se cresci ouvindo Tonico e Tinoco, quem me ensinou a gostar de piano, flauta, violino, óperas e balé?
Mistérios da vida? Ou é herança vinda do sangue do avô Ettore Ângelo?
Vou resolver isto depois. Licença. O feijão ta queimando...