DE OLHO NA VIDA DOS OUTROS
Anotações tardias de
um biógrafo confesso
Percebi, recentemente, que sempre me interessei pela vida alheia – não pela fofoca ou pelo noticiário “paparazzi” dos famosos, mas pela experiência humana individual. A força descomunal da sociedade faz com que a existência de cada pessoa passe como um flash, sem registro, sem permanência. Desconfio que esta questão, mais filosófica do que artística, me levou ao jornalismo e, paralelamente, à poesia (minha experiência humana individual) e à astrologia (compor um mapa astral nada mais é do que escrever uma biografia).
Quem acompanha os pequenos perfis biográficos que publico, sem muita regularidade, no meu site, certamente não sabe que este tipo de texto era o que eu mais lia nos jornais. Os perfis do Caderno B e da Revista de Domingo do Jornal do Brasil, em sua época áurea, não só matavam parte da minha curiosidade sobre determinado artista/pessoa, como incutiam em mim um desejo de fazer algo semelhante. Daí ao jornalismo foi um pulo.
Muito do que escrevi na linha dos perfis biográficos se perdeu. Nos primeiros anos de carreira eu, realmente, não dava a mínima para colecionar o que eu próprio escrevia – era uma auto-afirmação da efemeridade do ofício de jornalista. Curiosamente, guardo ainda dois cadernos com pequenos textos sobre artistas de rock que produzi ainda antes de entrar para a faculdade – o exercício de alguém que pretendia passar a vida escrevendo. No entanto, somente a partir de ano 2000 comecei a colecionar minhas próprias biografias, em séries temáticas.
A coletânea “Histórias de poetas” surgiu para se tornar uma coluna no jornal A Voz de Marambaia, de Itaboraí. Dirigido pelo poeta Osvaldo Luiz Ferreira, o jornal mantinha uma página para a publicação de poesia e foi lá que “plantei” os primeiros seis poetas – Fernando Pessoa, Emily Dickinson, Tomás Antônio Gonzaga, Lord Byron, Rimbaud e Cruz e Souza. Com o encerramento das atividades do jornal, segui escrevendo a série, que hoje já tem 50 nomes.
“Gente de teatro” teve história diferente – surgiu mais ou menos na mesma época, quando eu atuava como oficineiro teatral na Companhia Parafernália, de Itaboraí. Notei que as oficinas de teatro, geralmente, privilegiam os jogos dramáticos e a prática de cena. Eu queria incluir o ensino da teoria, de uma forma leve, que não assustasse os adolescentes para quem lecionava. Decidi abordar o teatro e sua história através de alguns dos principais nomes – diretores, teóricos, dramaturgos e atores. Não foi uma tarefa tão simples quanto eu esperava, mas os textos foram nascimento aos poucos, ao longo de uma década. Outras séries estão sendo compostas – inclusive uma com os “Gênios do rock”, revistando os velhos cadernos de um quarto de século atrás. É mais um prazer que um trabalho.
Há alguns anos, um livro publicado pela Companhia das Letras reunindo obituários do New York Times, “O livro das vidas”, ampliou minha perspectiva sobre o trabalho do biógrafo. Tratando de pessoas quase desconhecidas, mas que fizeram algo extraordinário em sua existência, os obituaristas com NYT não só faziam jornalismo, como faziam arte. Longe da curiosidade mórbida que reveste nossas páginas de jornal, abordando a morte muitas vezes de forma escatológica, no NYT celebra-se a vida no momento da morte.
Matinas Suzuki Jr., que escreve um ótimo posfácio para “O livro das vidas”, contando a evolução dos obituários na imprensa americana, ressalta exatamente que “um obituário é quase sempre uma ode à vida – ainda que reitere a brevidade de tudo, ao tomar o ponto final da existência como ponto de partida do jornalismo”. Vale lembrar que na imprensa de língua inglesa, esses textos foram escritos por gerações de jornalistas de primeiro time, como Alden Whitman, o pai do obituário moderno, Gay Talese, o mestre da chamada “creative non ficcion” e Robert McG. Thomas Jr., que renovou os obituários do NYT a partir de 1995.
O perfil biográfico e o obituário se aproximam, como de resto a vida e a morte são faces de um mesmo ciclo. Compor um quadro em palavras que, mesmo parcialmente, materialize a experiência humana de uma vida é um dos meus maiores prazeres literários. Quando consigo suscitar a curiosidade de alguém sobre algum biografado, eu me realizo. Afinal, toda pessoa deveria ter o direito de ser biografada, nem que fosse por si mesma.
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