Pedra-semente
Se me atrevo a contar, aqui, essa minha história, é porque careço de aquietação do juízo.
O quengo ferve, a essa medida dos anos, que são muitos e tão de muito pesar nessa cacunda minha: a carcaça velha já não tá de aguentá a castigância da labuta com a vida.
Vida madrasta, pode crê!
Vida encruada e encavacada, no pelejado do muito persistir! No insistir de viver, em contradito à lei que governa o viver-Sertão: poucos morrem de velho – esse era o preceito!
Nos tempos de maior calejado, morria tudo, quase, no chumbo das balas. Moléstia era muita, mas uns pouco tinha primazia de morrer de doença; muito poucos de velhice. Está eu aqui, no afirmar que não minto: sobrou eu só, dos muitos parceiros de luta.
Só eu! E tô aqui no apreceio do vai e vem da vida e da morte, nesse Sertaozão sem quase findo, que por muitos anos foi regado com o sangue dos muitos sertanejos que, se são jagunço ou cangaceiros, era qualquer filho de Deus, mesmo que sendo um pobre inocente.
Já vejo as aves de mau agouro, de manto escuro, varejando no meu redor. Já tô de vê os ponteiro do tempo se achegando pro meu acabado.
Os tempos são outros e só Deus sabe como resisti a tanto.
Vida madrasta!
Vida calejada, a vida-labuta que nóis viveu!
A vida de agora não é tanto assim muito boa – resmoneio por demais –, mas em nada comparado com à rapinagem do ferrenho de uns tempos de muito desapego da vida, mas de grande apegado à honra do pelejado maldito que tinha por nome cangaço.
Não sei se hão de querer ouvir, mas tô de querer contar, e vou contar, por desafogo!
Vou contar e vou só contar – com a enfeitice que me é direito, com todo o redondo do pesponteio da contação, o que já foi contado mil’e uma vez, em roda de beira de fogo e outros cantos mais –, pois desta feita é no escutado de um escrevedor.
Não sou das letras..., aquelas do ensinado nas escolas, mas a ensinação da vida me deu diploma e pesponto de dotô das vivência muita; senhor das lambanças desse existir, sem existir; autor desse fazer, sem de todo fazer..., rufião dessa puridade que só anjo há de ter..., desse destempero que só Deus pode deslindar, se porventura há de querer descanjicar.
O tempo me ensinou a viver, seu moço! Dei nó em pingo d’água! Engabelei a danada da morte e tô aqui no ponteio dos feitos que, de vera, era só enganação: nóis fazia mermo era matança e chamava de honra de cangacêro.
Os escrevidos, nessas falas bonitas, de letrado, é na tenção de ser melhor entendido, pois domino a fala dos que pouco sabem – e deveras, são muito sabedores –, dos que são de nada instruído.
Não sou de vez o escrevente, pois o escrevente tem o saber das letras. Coisa que muito me faltou, mas falta mais não há de fazer, pois as iscrevências de Deus são de todo entendida até mesmo pelos que de nada sabe soletrar, mas que são bons no escrever e ler a própria sorte que por ser maldita, é de todo compreendida – mesmo que se por inteiro, seja analfabetizado.
E seu dotô! ..., não fáis escrevedô só de palavra minha, pois quem havéra de intendê? ..., mas pode usar uns poucos dos meus ditos que é pra dar’enfeitação.
Passando ao historiado, de fato e de direito, e se ajeitando no contado do que foi meu viver e o viver dos muitos que comigo ficaram de saracotear pelos Sertões, matando e engambelando a morte.
Um penar desmedido, por essas brenhas de Sertão, que era de crueza de mais tamanho, que clemência pelos pobres nele nascido.
O Sertão era por demais birrento e os viventes todos, num renitente existir cheio de percalços, se afligiam com a seca e padeciam nas mãos dos que se achava dono de tudo e de todos: os coronéis de papel comprado e os políticos safados – de falcatrua e falsidade..., e o sertanejo peitando a vida, na tenção de ter vida decente, mas não era mais que bicho manso de pasto e curral.
O sujeito caía em desgraça, a saída, pra não perder o vivendo, era se enfronhar no cangaço.
Seja lá quem fosse! Jurado de morte, pela injustiça dos existentes de mais posse, o jeito era caçar maneira de viver da espingarda e se embiocar no cangaço. Daí por diante, passava a ter nome de guerra e passava a ser o cangaceiro.
Os tempos era de bala e de faca e de facão e o mais forte tinha mais poder e os mais fracos eram servos dos que de mais poder se achavam ter, por força só da chibata e das balas de carabina. Era u’a desgracêra dasaprumosa!
Voltando aos contraditos!
Estava no meio d’um desespero desmedido de tamanho. Eu e mais sete, arrodeados de cabras do sargento finório que tinha nome de bicho – creio eu que por agravo aos tadinhos dos bichos, porque chamar o peste de sargento Bezerra, afronta tudo, e mais ainda, as vacas.
Era tiro muito, era grito muito – de mando e de dor..., e era um desalentado desapego à decência e à coragem, pois que está de pronto a morrer de bala, ou de faca, ou de coisa outra, no meio de luta de tal faceta, vira frouxo e se avexa pra não morrer – ao menos dessa desatinosa morrência.
Nessas horas não tem quem se ajeite homem, nem quem aprume tenência de vida. É o que Deus quer e o que as balas deixam. Chumbo de calangos de volante – marimbondos que ferra mais na macheza que na carne –, faz o cabra se cagar nas calças, quando se vê frente à morte.
E não venham de dizer que tem valente que não trema nas pernas, quando está de ver a morte chegando, na forma do chumbo ligeiro e sujado de ódio.
Quando a morte é de susto..., de jeito que não se sente morrido – até quando se vê frente aos querubim dos inferno –, é coisa que não se discute. É coisa de muito pouco desespanto. Até tem uns cabra que enfrenta sem fazer bazófia.
Mas quando o sujeito tá na mira de arma qualquer, que nem sabe qual vai ser a hora, nem adonde será o chuchado..., é tudo diferente. Se morre logo de vez, até que nem dá tempo pra choramingar. Mas, se fica de se estrebuchar, se esvaindo de sangue e vida! ..., aí a coisa é outra: grito, choro, esperneio..., e não tem cabra bom, nessas hora, pra se conformar com tal fadário.
Mas voltando a contação..., o avexado do momento não era de muito pensar na bala que era de a mim justiçar: nem de quem vinha, nem de onde vinha, muito menos onde é que ia ser acertada.
Dois desses diagramados de chumbo maldito, vindo sei lá de onde, passou tão perto que até vi o alumiado dos óinho dos querubim! – não fez estrago qualquer, porque se foram, perdidos não se sabe onde.
Daí fiquei de bendizer a sorte e se distraí, pensando no que não era pra pensar..., a terceira bala me acertou na canela esquerda e fez um estrago na carne..., e u’a vontade doida de matar um peste me subiu aos gurguminho. Antes mesmo de dar um grito de dor, meus dois tiro de parabélum foi certeiro: um caiu e o outro ficou de percurar chão pra se estrebuchá.
Duas balas certeiras, dos tiros que dei, com tanto gosto que ganhei dois defuntados.
Aí dei meu grito de dor e chamei pelo santo de devoção, mas esse peste, que não gosta de se meter nessa história de briga de gente – e tem meu respeito –, não me acudiu e eu chorei que nem cabrito desmamado.
Era dor muita, seu moço – as água saía dos’óio e marejava a cara inteira.
Doía na alma!
Doía tanto que nem quase que dava pra resfolegar!
Aí sim que os alumiados dos óinhos dos querubins que Deus mandou pra me valer, foi acendido de vez!
Fiquei de conter o grito, mas o grito saiu – afrouxado e quase que emudecido –, foi aí que se aquietei um pouco, foi aí que se acovardei mais..., pois a dor era muita!
Tava afrouxado de vez!
Tava amachucado na canela, que não dava pra ver todo o estragado, mas queria me ajeitar e amarrar um taco de pano acima do joelho, pra não perder o sangue todo, pois sangrava em borbotão.
Choramingava, mas não tinha acudimento, nem do santo da devoção nem dos companheiros que tava tudo pior que’eu!
No que tô tentano se ajeitá pro sangue não sair mais muito – amarrando um taco de pano sujo na perna esquerda –, um disgramado de um soldado da volante, pula de, sacode de cá e me vê desafogado da luta e dá mais um tiro de fuzil que me pega na cintura e só sinto o quentinho do sangue, pois na vontade de matar o disgramado, nem dor deu pra sentir. Um tiro certeiro meu, com o parabélum que tinha na mão – que por pouco não faía pelo empapado do sangue na caixa das bala – acertou feio, o disgramado.
Misturou sangue meu com sangue da injúria que veio cair nos meus pés. Deu ainda pra dar um chutão nas ventas do sujeito, com a perna sã!
Aí pude ver bem a perna. Não fosse a perneira de couro, tinha torado no meio – a bala do disgramado –, mas pelo estragado devia de ter faxiado o osso da canela e a dor era muita!
Agora que ela tinha chegado de vez e era dor muito da grande!
Os outros tudo, da cabroeira, nem estava mais vendo. Eram sete, com mais eu, oito, mas do lado nosso já se ouvia tiros poucos: ou foram matados, ou se acabou a munição – foi o que ajuizei, no que tava de poder ajuizar.
Ajuizei e fiquei sossegadinho no encostado da pedra, rezando e buscando forças pra se alevantá – mas os nervo tava de tremura tanta que nem força nas mão, tinha mais. Quando dou conta de querer levantar, óia que acho outro furo: essa d’agora, no ombro direito, nas’altura dos osso de cima, mais pro lado do coração. Não tinha muito sangue correndo, pois parece que foi entupido pela bala, mas se pegou num nervo..., a coisa estava preta por demais.
Não dava pra se’alevantar, não dava pra se mexer muito..., o jeito foi ficar que nem morto. Que nem pedra. Que nem semente de pé de pau, no chão seco, esperando chuva. Sossegadinho e de cunvesê com o santo da devoção.
Os tiro de cá, dos meus, já tava calado. Os tiro do povo de lá, que parecia ter munição mais, ainda acontecia, vez por vez..., e eu se aquêtei, sossegadinho, se afetando de morto.
..., e foi tiro muito, no miolo do fuzuê, desde quando a coisa principiou. Bala avoava sem ter carne onde se encravar, se encravava nos pé de pau, nos mandacarus, resvalava nas pedras do lajedo, ou se perdia no ar, até não ter mais força e se acoitar no chão seco: chumbo que da terra veio e pra terra desandava.
Principiou lá pelos meados do dia e se ia até quase o findo da tarde.
Os cangaceiros cabritavam pelo descampado da caatinga rala, se ajeitando por detrás das pedras e das touceiras de xique-xique, no escapar da mira dos soldados da volante, e os soldados da volante, em tantos mais que nóis, acoitados no lajedo e cercando pelos lados outros.
Não tinha como fugir. Era tocaia bem ajeitada!
Foi arrumação da grande. Era certo, de ser traição de coiteiro ou intriga de desafeto. Estava tudo tocaiado e de certo sabiam da hora da chegada e, por certo, esperavam o capitão estar junto, pois ele se separou de nóis, não era nem três léguas.
Com toda certeza foi tocaia bem arranjada. Até urubu tava de prontidão.
Do jeito que nóis podia, eu e os companheiros meus, se resguardava em trincheira, naquele destabocado de mato, que se não eram as pedras, o estragado era por demais cedeiro.
Quando começou os tiros, corremo tudo pro protegido das pedra mas vi bem quando Calango Feio foi atingido e caiu se debatendo, berrando feito boi na castração, em desatino tal, que se via não ter’escapatória.
Caiu nos primeiros tiros. Pelos estrebucho, vi logo não ter salvação. Nem dava pra chegar perto. Pra aliviar o sofrimento, fiz a caridade de lhe mandar u’a bala-amiga, da carabina que era companheira e não me negava a mira: foi tiro certeiro e na cabeça, pra não ter dúvida do passamento.
Acertei na cabeça de Calango Feio, fiz umas rezas de encomendação, bem no ligeiro, e fui me concentrar nas disgrama dos soldados da volante.
Agora que era eu e mais seis, com munição pouca – se era pra enfrentar gente muita –, os tiros haviam de ser regrados e só disparar quando na certeza da mira.
E o fuzuê não tinha aquietação: caia macaco de lá, caia companheiro meu de cá, e eu só ouvia os gritos e o alvoroço do estrebucho dos que não morria logo.
E não é que os disgramados dos macacos da volante trouxeram a matraqueira?!
Tição, pilherioso por demais, chamava a disgrama de costureira – não sei porque! Tiro muito, encarreiradinho que parecia mesmo, máquina de costura. Mas encasquetei de chamar de matraqueira pois mais parecia matraca de procissão de leproso.
Nem dava pra contar os tiros todos, cuspido pur’aquela boca dos inferno – era segurada por um e ajeitada a cartucheira das balas, por outro.
Ai eu com u’a dessa?! ..., tinha era feito um acabado de mundo.
Buscava os companheiros, pra saber adonde tavam e o que tavam de carecer de ajudância, ou o que podiam, a mim, dar adjutório, mas não dava pra ver nada que não só os macacos de volante cabritando pelo lajedo e pelos lados do descampado: quando mirava num peste, com minha carabina de estima, era tiro e queda.
Lembro de tudo, de tudinho, que sucedeu quando a tiraiada principiou:
Tição, que em noite sem lua só se via o alumiado dos olhos, pilherioso e muito, gritava por santo que nem tinha no céu e se atirou no chão e só vi quando escorregava pelas pedras, lombrigando pra escapar das balas, e daí perdi de vista e nem mais vi o peste. Morreu, isso é certeza, só não sei quando.
Calango Feio, recebeu a premêra bala e foi matado pra não sofrer muito. Eu mesmo dei o tiro pra aliviar a penúria. Chegou nos inferno, adiantado dos outros. Ruim do jeito que era, nem deve de tê passado na porta do céu, pra pedir bença a São Pedro.
Carne-seca, o mais seboso dos companheiros, vi só antes do desenlace. Se afastou pra tirar água do joelho, daí pra isso, não mais que vi o peste. Lá mesmo deve de ter morrido, pois ouvi tiro muito pr’aqueles lado.
Onofre, esse eu vi, acautelado e se escapulindo, sem dar grunhido que fosse. O peste era de pouca fala e, na hora do morrer, deve de ter sido mais calado ainda. Vi por derradeiro, quando segurava o papo amarelo, que pelo tanto de tiros que deu, devia tá era vermelho fogo.
Pé de Coisa, carregava um fuzil Mauser – velho tanto quanto São Cipriano –, e nunca que se apartava dele. Não vi o peste depois que o furdunço começou. Sei que morreu – pois me foi dito depois que sobrou só eu –, e deve de ter morrido agarradinho com a arma e deve de tê levado pr’os inferno: alma e arma, coladinha u’a com a outra, aos cuidado do capeta, só pode.
Vi mais não, depois que saiu cabritando entre as touceiras de xique-xique, atirando e escapando das balas que era atirada pra ele. Se escafedeu que nem mais pude ver o que sucedeu. Ouvi muito tiro pras bandas qu’ele foi!
Astério tava desapartado do grosso do bando, quando nós tava de caminhar, pois era crendeiro e muito. Dizia que dava um azar do cabrunco, quando andava tudo em fila feito boi pro matadouro. Deve de ter morrido muito longe. Pois era do costumado, quando tinha peleja, o disgramado sair em arrodeio pelos matos, caçando lugar escondido pra fazer reza. Só depois da reza e que dava tiro e quando dava tiro não empacava a rezação.
Por derradeiro, Di’Maria, que era o mais caçula do bando: tamanho pequeno, fala afinada feito moça, pouca idade, mas tinhoso e malvado que só a peste. O nome era Frezinho de Maria, mas pra encurtar nós chamava ele por Di’Maria – quando nóis queria azoretar o peste, chamava ele de Binga e aí nós podia ver o sujeito arrinado.
Esse foi acuado a u’as quatro braças d’onde eu tava, por meia-dúzia de macacos da volante e vi quando matou tudo. Mais com tiros de pistola. O último foi sangrado com a faca de destrinchar bicho.
Vi tudo dos acontecidos, antes que o fio da peste me enfiou a primeira bala. Olhava, assuntava, atirava e nem esperava ver a decorrência do tiro, já tava de percurá outro pra matar.
Aí veio a primeira bala, depois mais outra e o furo que achei na altura do coração, que nem sei quando foi que se deu: não atinei! Juro, pela minha mãezinha já morta, que não mais atinei, nadinha.
..., e eu ali, embiocado, no começado do morrer, furado em três buraco de bala, maldizendo a sorte, não mais ouvia tiro qualquer.
Os outros tudo..., se não tava morto, tava em condição igual ou pior do que o jeito qu’eu tava.
..., as vista anuviada..., frialdade no corpo por inteiro..., boca secada de cuspe..., pensei em pegar a lambedeira e acabar com tudo. Mas como?!, se as mão desobedecia o quengo?! ..., se nem o terço de reza, que foi um mimo da minha santa mãezinha, pude sustentar entre os dedo?!
O punhal pequeno, que é mais de cangaceira mulher, estava no embornal e o embornal estava a pouco mais de metro, mas para quem tava no entrevado qu’eu tava?! ..., era longe por demais.
Estava de acerto marcado com o morrer! Diferente das outras tantas vezes que dei de cara com a dita cuja, agora era de vera!
Pensei e quis gemer, mas quando tava nessa aflição, ouvi vozes chegando pra perto e um pisado forte de botas e deixei fechado os olhos e acendi a clareza da escuta.
– Corta as cabeça? – Gritou um macaco da moléstia que tava se achegando pra perto do meu carangaço – a farfalhada da farda e das armas e das falas, deixava isso mais claro que a certeza de ser a morrer.
– Perde tempo não! ..., é tudo peixe pequeno: lambari de riacho. Dá um tiro no quengo, pra garantia do passamento. – Arresponde o que é o chefe, ou só pareceu chefe, pelo gritado da quase ordem.
Senti o cheiro da danada da morte, mais que das vezes outras. Era tão de muito que me entupia as venta.
Tava de vê, no meu imaginado, a boca do trabuco do jeito de nunca havia de ter visto: nas minhas fuças. Abri um pouquinho dos olhos – só um bocadinho mesmo –, e vi o buraco escuro que nem breu de noite sem lua, da boca da arma maldita: medonho e assustoso.
Isso de ligeiro foi tanto que nem deu tempo de chamar por santo qualquer!
Queria principiar u’a reza, mas o juízo embaralhado não dava jeito de rezar: nem pra se alembrar de Deus, havia tempo.
Nessa hora de agonia tanta, tão de ligeiro que os pensamento era relampiado de coisa, atinei pra morte e percurei pelos assombrado que fiz na vida de cangacêro, mas era tempo pouco pra tudo.
Já me sentia defuntado! ...
..., aí foi que ouvi o gritado, que não dava pra saber d’onde veio:
– Corre cá que tem alvoroço nos mato!
Só depois fique de saber que era uma jumenta que foi espantada pra longe, pra distrair os atoleimados da volante, e os abestalhados foram caçar a jumenta na tenção de ser cangaceiro fugindo.
Apaguei, não sei se foi do susto, ou se foi a dor que era tanta que até doía na macheza: fiquei frouxo e me borrei todo – isso soube, depois do caso passado, mas não tive vergonha de dizer que era frouxidão.
Acordei, percebi os incomodados dos furos das balas, e não via mais nada!, e não ouvia mais nada! ...
..., fiquei de pensar as besteiras que todo condenado tem de pensar, creio eu: se havia de tê quem vinha me dar auxilio, não pode vir de pronto, pois os macacos da volante tava de flozô pelos mato..., e mais pensava: santo que havia de dar adjutório, já devia de ter dado tudo que podia, pois tô vivo – ou tô morto e azoretado?! ..., encafifado tanto que nem sei o lado que vou, pra ir pros lado dos inferno? ...
..., fiquei de pensar e queria escutar o que vinha trazido pelo vento, mas nem cheiro, nem mau-cheiro, nem coisa qualquer..., e de enxergar, não via mais que defunto. Isso tinha de montão!
Estava lá eu, e só eu de alma viva, ao que parecia de todo, nas beiradas de u’a capoeira de mato ralo, acostado nu’a pedra, que mais era pra cova-rasa que coisa outra qualquer! ...
Fazer o que? Era só o que pensava, pois, o juízo já estava de ficar baralhado.
Já tava nos estrebucho do morrer! – e devo de tê morrido e mandado de volta, por não ser hora..., ou a porta dos inferno tava tão cheinha de pecador que não cabia mais um, só pode.
Já tava que nem mais atinava coisa qualquer!
A noite tava já na boquinha, o escurecido se achegando e eu se’acostado na pedra, que era quase-túmulo. Sentia sede, sentia frio, sentia fome, sentia medo, sentia tudo que podia sentir e mais um pouco..., olhos fechados, querendo dormir, mas o juízo não se afastava muito de mim; mas também não ficava por demais coladinho: as vezes se ia..., as vezes voltava de vez..., as vezes o baralhado era muito e era como se perdesse por inteiro o continuado da vida..., anuviamento nas vista; frialdade no corpo que doía até na alma; desejoso de saber se tava bem morto ou se só era principiado; vontade de logo morrer...
..., em momento de relampeado, quando tava nesse morre não morre que quase não tinha findo! ...
..., vejo aquele anjo de candura, se achegando pra perto de mim, tanto que até senti o perfumado dos cabelo!, e cá comigo pensei: fui enganado e fui mandado pro céu!
Chega, no acompanhado d’um cabra, aquele anjo querubim..., quand’eu já tava de sentir as mãozinhas dos anjinho de Deus – ou dos querubins dos inferno –, me cutucando e me beliscando e me chamando pra assubir! ...
..., e nem tinha mais força pra nem pensar, mas pensei. Foi o pensamento derradeiro, antes do que semelhava passamento – que já dava por certo, mas não se sucedeu! ..., e quando já tava de me achar morto, vem um surto de vida e me assusta!
Não sei se pela dor que tava de sentir, ou o bafejo do coisa-ruim no apressado de querer me levar pros inferno, ou pelos sofridos que Deus ainda guardava pra mim, ou pelo que seja lá o que tenha sido..., abro os olhos e quero gritar, mas o grito não sai; quero chorar mas as vistas tá seca por demais..., e fico de querer morrer de vez, pra ter um aliviado pouco, mas acabo por ficar vivido, pelo adjutório do acudido de um anjo, ou o que parecia ser!
Tinha saia, e vejo quando ajeita a barra da saia de chita, de jeito arrodilhando e enfiando entre as pernas no que ela se acocora perto de mim – e nem sei porque ainda deu pra ver, pois já tava quase que cego.
Ouço aquela vozinha de anjo querubim me alisando os ouvido:
– Tá mais pra morto!
A moça diz pro cabra, que tá de parte, e sinto o pegado das mãozinha de seda nos panos do contimento do sangue. Me abre a camisa, empapada e examina a ferida da barriga e, quando chega na canela toda lascada, ouço ela dizer, com a fala doce que só alfenim:
– Aqui, o estragado e grande por dimais!
Nem sei porque atinei pra isso tudo, pois já tava nos afinal da morte!
Daí não ouço mais nada! Daí não vejo mais nada! Daí, é mais outro faniquito.
Mais pra frente – só não sei o tempo que era –, acordo e já tô amelhorado de pouco, e ouço, de novo, um dizer da voz trovejada do cabra, respostado pela voz singela do anjo, contradita pelo trovejado da voz do cabra:
– Ajeita o hôme que nóis tem de se ir, que nóis tem de levá pra longe!
– Mas tá muito do ruim!
– Vai é ficá muito do pió, quando a volante vortá, pra pegá as coisa dos cangacêro e os defunto deles.
..., e aí sinto u’a coisa me amarrando todo, feito rodilha de pote, depois um arrastado das varas do banguê pelo chão seco – sei que é banguê, porque já fiz muito disso pra carregar defunto.
Tomado de brios, levanto a cabeça para olhar o redor e vejo a mulher, que ainda não sei quem é, apagando os rastos que nóis deixou, e só sinto mais o balançado do banguê: lento e arrastado por demais pra quem tá de fugir de bala de soldado – pensei e nem mesmo sei por que pensei!, pois tava quase que morto.
Vi uns galhos secos amarrados nas pontas das varas que se arrastava que era pra não deixar o riscado no chão: coisa de coiteiro – pensei e arriei a cabeça; o corpo meu, já quase que morto, não dava pra mais abuso.
Mais adiante, não se demorou muito, o arrastado do banguê foi transferido do costado do homem para o costado de um jumento, pois pude sentir o suor fedido do peste: aí tudo foi mais ligeiro e mais doloroso. As dores estavam voltando, com mais pujança e por vezes fraquejava e esmorecia.
Fui arrastado pelas caatingas sem cuidado muito, pois a pressa era maior e, as vezes que acordava sentia repuxado na barriga, sentia frieza na alma..., da perna esquerda, sentia coisa nenhuma! ..., parecia que havia sido arrancada, tanto que era a falta de dor e de sentido da perna estropiada!
Era u’a aflição muito da grande! Amachucado e enfiado em um banguê e arrastado por um jumento, por cima de pau e pedra e o poeirão que mais secura dava na goela, e com os sacolejos mais sangue danava a sair dos furados de bala..., e querendo morrer, mas u’a coisa me segurando a alma, não deixava se findar o passamento...
E dor muita, que crescia e crescia e crescia..., no repuxado da barriga e no perto do peito..., e a dor era muita, e era dor por demais e o faniquito se deu maior: se tudo já estava no escuro da noite, mais escuro se deu no quengo e o pretume que me tomou foi maior que a pretidão da noite.
Quando dei por mim, tava deitado nuns pano – que era do feitio de uma cama feito no improvisado –, ajeitado e com o cobrimento de u’a capa grossa e velha de muito, tinindo de frio e as mãozinhas do anjo de candura que me salvou, ajeitando uns macerados, pra me aplicar nas feridas.
Me deram água de beber, ajeitaram uns pano pra fazer de mais conforto no acomodado, e daí foram simbora e eu fiquei de amargar dores muitas, amofinado e estrompado da perna esquerda, furado na barriga, com a bala que saiu atrás, e o furo outro, entupido pelo chumbo da bala.
Tremia de frio quando já era noite alta, que era uma sezão sem findo: o descampado de mato, era de frialdade de doer nos osso tudo.
Foi u’a noite de espavento, seu moço! Penei pela noite inteirinha. As vezes dormia, que era mais pra faniquito; acordava, com a dor que me tomava por inteiro, que me fazia gemer e gelar na alma.
Sei só que a noite passou e quando o sol foi chegado, eu tremia de frio e tremia de medo..., e quando o dia tava de sol mais quente, mais eu tiritava de frio.
Na goela, era secura da grade. Secura tanto mais que o carcomido do chão, que era só pedra e pó, nesse buraco que eu tava enfiado! Era um desatinoso penar, tanta pelo seco da boca e da goela, quanto do seco do chão, onde eu tava assentado, num morre, mão morre desatinoso!
Quando vem de volta os que me acoitaram, a moça – que tem as mão de alfenim que só anjo querubim tem –, traz mais coisa pra botar nas feridas e o homem um di cumê pouco e fiquei de saber, dos cangaceiros que morreu e foi deixado pros urubu comer. Vem também o comunicado que as volante tava no acuado dum cangaceiro ferido que escapou da tocaia.
Fiquei de saber os nomes dos que fez o acudimento e me acoitaram e estão nos cuidados das minhas chagas: o sujeito, que era o pai do anjo que me acudiu, era um coiteiro de nome Anselmo dos Santos, conhecido mais por Caiçara, por ser nascido no Sul e trazido cá para o Nordeste quando menino.
Não era conhecido meu, pois muito pouco fazia acerto com coiteiro – isso era coisa mais do capitão. Mas, por estima muita ao cangaço e ao capitão, achou por bem dar acudimento, quando viu o desatinoso da peleja.
O anjo de candura tinha por nome Maria Isabel, mas era um anjo e devia ter nome de anjo, assim, pensei em matutar um outro nome e fiz combinação com ela: quando achasse um outro nome, mais melhor e com a estampa que ela merecia, ela acatava!
E fiquei lá, por tempo muito, enfiado num buraco, que era uma gruta pequena, que cabia pouca coisa mais que meu corpo, estrompado e acuado, temendo pela chegada de soldados das volante.
Indefeso não tinha como cabritar pra puxar briga, nem pra correr, se fosse o caso. O entrevado era por inteiro na perna esquerda – nem mexia o mindinho.
Medo sim, seu moço! Medo sim e medo muito. Cangaceiro quando tá entrevado, é indefeso. É alvo fácil e alvo odiado pelos pestes que são muito mais pior que nós do cangaço.
Hão de dizer que cangaceiro é destemido?! ..., de posse de um papo-amarelo, é sim: é sim, e muito, quando é o caçador; fica diferente, por demais, quando é a caça.
Entatuzado, com duas balas poucas no parabélum, quero ver home não ser temeroso!
Era medo muito, seu moço. As três balas dos furados do corpo, haviam de tê me afrouxado mais.
Ficar sozinho, naquele ermo de mundo, só contando o tempo que passava e as estrelas no bucho do céu, no alumiado pouco da noite – quando tinha estrelas no céu e quando a lua não atrapalhava a contação –, era de fazer tremer os nervos e doer na carne, mais que os furados das balas...
..., e os dia tudo num passar mesmoso que até dava entojo de viver!
Nunca que tinha visto a lua, daquele jeito que tava vendo quando entrevado e entatuzado. Contava as estrelas e não dava vencimento das tantas! Perdia nas contas, principiava nova contação e não dava pra chegar nem no meio do principiado das contas porque tudo embaralhava de novo.
Nunca que tinha parado pr’o apreciado do vento maneiro arrepanhando os carangaços de mato que só era garrancho seco, pra brincar de picula, uns com os outros, no descampado.
Nunca que tinha visto céu tanto assim, cheinho de nuvens tantas, com uns debuxos parecido com algodão desenhado..., e nas nuvens eu via bicho, via cangaceiro, via macaco de volante, via coisa muita com parecença de tudo que já tinha visto na vida.
Nunca que tinha visto o Sertão – tanto e de belezura tamanha –, do jeito que tava de ver, naquele ermo de mundo!
E tinha o chamego do anjo de candura que dava pra mim cuidados muitos, e aí é que parecia estar no céu. Até me sentia desobrigado de morrer: agora é que não tinha mesmo satanás qualquer pra me arrepanhar; agora eu tava era protegido por esse anjo de candura, zelando dos meus furados de bala.
Era danado de bom o apego daquele anjo querubim e nóis ficava de conversê o tempo todo que nóis tava junto. Por vez no sombreado da pretidão da noite, ou então na luz do dia, com sol tamanho, escancarado e ferocíssimo..., o céu quase caindo sobre nossas cabeças e nóis amarfanhados naquele finzão de mundo, que era só pedra, poeira e sequidão e o medo de que nóis fosse achado pelas tropa de soldado das volante...
..., e era a coisa mais boa da minha vida!
Fiquei assim, sarando, por um bando de tempo, sendo acudido por Maria Isabel, que mudei o nome dela pra Maria Cândida e ela muito gostou.
Maria Cândida, que já atendia pelo nome que dei a ela, filha de Caiçara, ficava de cuidar de mim, enquanto sarava os furados das balas e, mais ainda, do aleijado da perna.
Por vezes não se demorava muito ali no escondido meu, pois as volante tava de muito procurar cangaceiros e sabiam que tinha um que escapou da tocaia do descampado das beiradas das Caatingas do Lajedão da Mula Manca.
Mas no tempo pouco que nóis ficava junto, fomos se achegando um para o outro que quando demos fé, tava nóis encegueirado: eu pur’ela, ela pur’eu!
Foi amor que chegou pra ela, pois pra eu já tava chegado. Desde que na vez que vi se achegando pra perto, no descampado, e eu estropiado de bala, que se encafifei pur’ela: foi o cheiro do cabelo, foi as mãos de anjo querubim, foi a candura do falar, foi o arrodilhado da saia de chita no enfiando de entre pernas..., d’um jeito tal que fiquei desobrigado de morrer. Se bem que fui nas profunda dos inferno e voltei inteirinho, quase – faltava só o caminhado bom da perna esquerda.
Anselmo ficou de querer, também. Não era muito do gosto de sinhá Zifinha, mãe de Maria Cândida e mulher de Anselmo, mas o tempo fez os ajustes.
E era um amor danando de bom, quando tava lá eu, entocado nas brenhas de um lugar que nem nome tinha, pois poucos, ou só os desesperados que nem eu, tinha coragem de se enfiar por lá.
Era um chamego muito do bom.
Eu estrompado, ela zelando das minhas feridas. Levava o di cumê, logo bem cedinho e nóis ficava o dia inteirinho de prosa, de achego, de lambança..., por vezes, era Caiçara que buscava ela já de noitinha, por vezes, ela ficava comigo até o dia outro..., por vezes não aparecia, pois os soldado tava de me percurá, e eram dias tormentosos! ...
..., mas eram dias de muito amor! ...
..., e era amor, por demais de grande! ...
..., e era falta muita, o dia que ela não vinha pra me ver. Era um di cumê entristecido – paçoca de carne e água pro desentalo –, e muitas horas de muito pensar! ...
..., no enfiado de um buraco que era u’a lapa pequena, num socavão perdido na secura do Sertão. Podia ver só um tantinho de céu e os ossos secos de pé de pau morto, enfeiando o descampado.
Tinha só, ali nesse fundão de coisa nenhuma, lagartixa, cobra e calango verde..., e aí pegava a me lembrar de Calango Feio!
Nessa hora, ajuizava eu cum eu:
– Troncho assim e de pensar no Calango Feio, por quê?! ..., nunca que fui de gostar do peste! Era ruim e agourento feito urubu de carniça! Só andava no meu grupo porque não tinha outro jeito. A escolha era do capitão e não tinha escapatória: mandou?! ..., não havia de tê contradito!
Quando tava de ficá suzinho, entatuzado naquela lapa pequena, mais parecia anjo caído.
Se sentia assim..., feit’um molambo de gente; um traste velho e pejado de amargor. Uma assombração, quase que desassoprado de vida. Um caroço de pó, no poeirão do Sertão..., querendo só achar um tantinho de alento, mas não de que jeito?!
Eu ali se abancado, muito do amachucado! ..., era desimportante por demais! Ânimo me faltava e mais me faltava as pernas, de voltar a porfiar no cargo do cangaço.
Não fosse o amor de Maria Cândida! ..., eu mesmo dava um acabamento naquilo tudo.
Por vez até ficava escabreado. Maria Cândida dizia u’as coisas! ..., qu’eu cangaceiro velho em peleja, nem que pensava, mas ela tinha um jeitinho todo santo de falar, que era duma fineza que eu nem mais atinava coisa qualquer, com aquela vozinha de anjo querubim que falava e eu só escutava, morrendo de escabreio!
No mais do tempo era apreciar as coisas daquele finzão de mundo, tontando pelo lajedão que tinha no fundo do socavão, que era a minha cova, que era minha sina, que era o meu inferno..., secado tanto que nem nada nascia ali. Pelo chão, só poeira e pedra; só pedra e poeira que era um tapetão de coisa acabada.
No elevado do céu só urubu voando alto e gavião peneirando fino, caçando di cumê que não tinha, e o céu, era só azul limpinho! ..., tão lindo! ..., tão sem findo! ..., e aquele esparrame de sol alumiando tudo, tinindo de quente e um calorão da moléstia, o dia inteirinho que Deus deu! ..., de noite era frio de bater queixo que era u’a frieza de lascar.
Aí pegava a pensar nos parceiros que morreram, quando se deu o desfecho desse desatinoso combate que me deixou entrevado, e nos outros muitos que ficava eu de saber, por ciência trazida por Caiçara e Maria Cândida.
Muitos resistiam, mas não mais tinha muita resistência: estava sendo caçado, cangaceiro por cangaceiro, como se seno pirraça dos hôme do governo.
Pensava muito, e muito, e muito..., e quase que só mais pensava, no que se sucedeu que arrastou nóis pra cá, pr’esse acabado mundo; pr’esse taco de chão, malditado pela sorte às avessa; pr’esse entocamento de flagelância; pr’esse matadouro de gente! ...
..., no inhantes disso tudo aqui, que se deu no confronto que os cabra morre e eu, Fedegoso, parceiro do morrido Três Pote, deu de ficar entrevado da perna esquerda e do juízo – um tantinho pouco, só.
Foi desatinoso muito.
Foi empreitada traçada pelo tinhoso: encomenda do próprio, travestido de gente. Era propósito, arrastar os sete, mais eu, para esse campo de tocaia e trucidar nóis tudo!
Nesses tempo, a traição e a covardia andavam juntadas, tal e qual em todo canto do mundo, indesde que a vida tomou posse do Sertão! Isso, creio eu que nunca que vai se acabar.
Um desditoso que se achava coronel, mas não tinha patente passada – dessa que se compra na Guarda Nacional –, conhecido por Júlio Prata: dinheiro muito, arrogância mais ainda, desalmado e de querência com o tinhoso, pois dizem que era pactuado com o diabo.
O acerto foi feito por um coiteiro, de nome Zé de Bilica, e os destinados a fazer o aceiro, na fazenda do desinfeliz, foram oito: esse que vos fala, mais os sete – que Deus os tenha em lugar não muito ruim, que por certo é os inferno –, tudo com nome pequeno, pra se de fácil chamado na hora do carecido: Tição, Carne-seca, Calango Feio, Onofre, Pé de Coisa, Astério e fechando os sete, Frezinho de Maria ou, pra nóis, só DiMaria.
O combinado era invadir a fazenda Lagoa Velha, matar todos e botar fogo em tudo.
Foi passado pra nóis que o desinfeliz, de nome Genário de Matos, tinha feito traição da grande. Deixou que nóis ficasse acoitado nas terras da fazenda, depois passou para um tenente da volante de Jeremoabo, o ponto exato do acampamento.
O dito coronel, que era coronel coisa nenhuma – não tinha patente, mas assim queria ser chamado e assim era chamado pra não ser contradito –, fez o aviso pra nóis e quando o tenente chegou, com tropa de pra mais de cem macacos, armados de tudo quanto era arma que tinha, nóis tava era longe.
Aí foi que veio a ordem de justiçar o traidor.
Foi feito o que foi mandado. Só depois de tudo feito, já pra mais de dias e u’as muitas léguas já mais distante, e que fiquemos de saber que a história foi outra. Foi armação do bostinha metido a coronel – que nem me atrevo a dizer o nome que é pra a raiva não voltar ao gurguminho. O disgramado queria tomar pra si as terras da fazenda Lagoa Velha, ajeitou as coisas com o cabrunco do coiteiro e fez intriga pra nóis trucidar os da família de Genário de Matos e mais os trabalhadores dele.
Aí eu quis voltar e cobrar vingativa do verdadeiro traidor, mas o capitão me segurou. Podia ser outra arapuca, e acabou por ser arapuca, pois foi delatado o trajeto do bando e o delator foi o bostinha metido a coronel e o coiteiro, só pode!
Mas erraram na desfeita e só eu, Fedegoso, que Deus deixou vivo pra contar a história, mais os sete, trucidados na tocaia do descampado amaldiçoado, pois o capitão e o grosso do bando foi por outro caminho: tinha outros afazer em Piranhas.
Pois bem! ...
..., no acontecido – que foi nóis fazer justiça, sem ser carecido de ter justiça, só por conta de intriga –, foi trucidado tudo: homem, mulher e mesmo um molecote de uns doze anos, se muito, e mesmo as vacas que estavam no curral.
Cheguemos e entremos e não houve resistência qualquer. As mulheres, usada pelos cabra pra se aliviarem, depois foram matadas com tiro de pistola – eu não sou nem nunca fui de pegar mulher na força, fui o único que não se aliviou nelas.
A ordem era u’a só: acabar com tudo – traição se paga desse jeito e maneira, na ponta da lambedeira ou no furado de bala.
Não havia de sobrar um só, sequer, com vida, pra ser contador da história!
Foi tudo acabado em tempo pequeno, pois nóis tinha pressa de se escafeder, pois as tropas, de pra mais de cem macaco, estava de prontidão e fazia buscado pela região.
Sangrei quatro, dos pestes dos empregados, mais o dito cujo que até aquele exato momento era o nosso traiçoeiro. Três outro, morreu na bala, logo na chegada e no meio deles o molecote de quase, ou mais de doze anos.
As mulheres, contado em três, eram pasto no aliviado dos cangacêro. Depois do aliviado e de outras perversidades, os tiros foram na cabeça, pra tê morte ligeira.
O casarão da fazendo, no que foi botado fogo, virou ligeiro um fogueirão da gota serena. Queimava feito as caldeiras dos inferno; alumiava mais que o cabrunco do sol em tempo de seca; servia até pra fazer assado de gente..., assim, foi jogado os corpo lá dentro, só pros peste dos cangaceiros sentir o cheirinho de carne de falsidade sendo esturricada.
Pé de coisa que era o mais arrinado de raiva, pelo que a nóis foi dito traição – e que acabou não sendo –, foi pro curral e matou as vacas, dando tiro na cabeça, só pra fazer destreza de mira entre os olhos das bicha.
Sobrou nadinha. Ficou lá, tudo matado e esturricado pelo fogo, botado na casa da fazenda.
Quando já tava no findo do massacre, nóis ouve o galope de cavalo e corremo tudo pros mato e nada pegou mais nóis.
No instante do momento era justiçamento. Nem que passava nada na cabeça, a não ser vingativa. Merecimento de traidor. Dava gosto vê os peste sangrado, se estrebuchando, enquanto os outros que tavam na fila, ficavam de rezar e chorar e suplicar pra não morrer.
Paga maldita, a paga desse disgramado – queria voltar e tirar satisfação, mas o capitão conteve o que tinha de ódio que a mim embebedava. Foram rifles 44, dos que nóis chama de papo-amarelo, e munição pra quase todo o bando e mais uma bruaca de moedas de prata e ouro. Nem dava pra saber quanto era, pois não havia tempo de contar: era pro pagamento de u’as encomendas que o capitão fez em Piranhas.
O coiteiro de fazer os acertos, Zé de Bilica, não ganhou nadinha e deve de tê ficado com raiva muita. Ou ele fez a denúncia pro Tenente, ou então foi o coronel de merda, que nunca foi coronel coisa nenhuma, que ficou com medo d’eu voltar e matar ele u’as duzentas vêiz, pra deixar de ser tinhoso.
Sei que foi um desses dois que armou a encrenca toda e denunciou nóis. E não se ajeitaram muito, pois fiquei de saber que Zé de Bilica armou um fuzuê com a polícia e foi tocaiado pelos macacos da volante e trucidado por um sargentinho marrento, de nome chique: Paulo Afonso.
O coronel da birra nossa – que era coronel coisa nenhuma –, não se deu muito bem pois foi assassinado pelo amante da esposa, enquanto dormia, e perdeu tudo: mulher, dinheiro e honra! – isso fiquei de saber, tempo depois, quando já não mais era do cangaço.
Tição, Calango Feio, Carne-seca, Onofre, Pé de Coisa, Astério e Di’Maria – que era o mais caçula do bando..., esses eram os que me acompanhava em bando pequeno e morreu tudo no encontrado do Lajedão da Mula Manca. Tinho um outro que vez por outra se juntava a nóis, mas tava de caganeira, não foi no trucidamento da Fazenda Lagoa Velha, nem viajou com nóis pra o Lajedão da Mula Manca: escapou de morrer..., – ao menos desta feita.
..., e tinha outros muitos, que não era do bando pequeno, mas sempre tava junto com nóis: Pau Ferro, Xará, João de Deus, Mansidão, Bimbão, Antônio de Ó, Cabo Preto, Rajado, Bananeira, Mateus de Quinta-feira, Faísca, Cobra Preta, Tabaqueiro, Baliza, Jaçanã, Juvino, Passarinho, Maçarico, Moita Braba, Pancada, Meia Noite, Sabonete, Saracura, Cirilo, Devoção, Sereno, Baiano, João de Dé, Sereno Seco..., e outros muitos tantos mais, e era um bando de gente na lambança de beber cachaça e dançar: homem com homem; mulher com mulher – porque mulher no dançado com homem era ajeitar confusão –, arrotar bazófia e disputar, na prosa e no grito, pra ver quem era mais maior atirador; mais valente; mais matador...
Morria uns, outros se ajuntavam ao bando, o bando crescia depois o bando minguava e ficava pouco..., o bando crescia de novo, depois uns outro muito morria, um atrás de outro, até que veio esses tempos de chumbo grosso e findar-se poucos, muito poucos..., e nesse findo de quase tudo, sobrou eu só, pra contar essa história, que já contei mil’e u’a vêiz e tô de contá de novo, desta feita no escrevido das letras!
Tempos de peleja muito da grande, seu moço!, esses tempo que principiou o fim do cangaço. Tempos de sofrimento muito, seu dotô! A gente era só caminhar pelo Sertão, de déu em déu, e o Sertão, ruim que só madrasto, a judiar de nóis!
Era u’a vida desatinosa!
Sertaozão pegado com os inferno: desmedido de quente. Coivara do mais imaculado fogo e das grandes!, das que queima sem findo, pois nunca que tem apagamento!
O sol lascando o quengo e um caminhado sem pouso muito. Nóis andava daqui pr’ali, pisava daqui pr’aculá, penava num solão desmaculado, que nem dó tinha de nóis..., e a vida nossa, seguia nos passos determinado pelo destino ingrato! Pela sorte às avessas! Pelo fugido das balas, dos soldados das volantes: macacos dos infernos – os peste não dava sossego.
Houve tempos que não era assim não. A coisa era melhorada e nóis andava de mais acalmado. Era uns tempos num canto aqui, uns tempos num canto ali, uns tempos num canto acolá..., vida cigana, mas de jeito mais sossegado.
Nuns tempos que era uma cabroada desmedida de grande!
Foi aí que um coronel outro – esse tinha patente: dinheiro tanto que não sabia onde enfiar; boi nos pasto que era de ponta virada, do tantos que era –, ofereceu coito pra nós, pois já era do costumado dele, e assentou a cabroana nu’a cabeceira de mato, pegado num canavial, numa que era das suas fazendas. Mandou comida e botou porcaria no di cumê, pois os cabras que comeram ficou de estrebucho e uns morreram logo.
Quando nóis deu pur fé, não é que o disgramado mandou botar fogo na canavial, e assentou jagunço misturado com soldado de volante, pra atalhar nóis e matar na bala de carabina! ...
..., aí foi um Deus nos acuda..., – o mundiça tinha por nome Isaías e era da família dos Arruda, e nós tava no Ceará –, e essa foi a pior das arapucas que já se armou pro bando do capitão.
Não morreu tudo do bando, porque u’a parte dos cabras foi acertado de fazer o di cumê do meio do dia na casa grande da fazenda.
No momento que a cabroeira tava se ajeitando pra sair, foi que tudo se sucedeu, e os que tava debaixo dos pés de pau na beira da vargem, acercado da roça de cana, fez reação e fugiu atirando e correndo pelos matos mais fechado e pelas pedras de uns lajedos...
..., eu no meio da cabroeira, ainda deu tempo de chumbar uns tantos que se botou pra mim, e por sorte e por ajuda do santo da devoção, escapemos por pouco, pouco..., pouquinho mesmo!
Uns cabra – dos que correu com os que fugiu –, saiu botando as tripas pela boca, pois os intestino tava ofendido pelo que foi botado na comida que depois nóis ficou de saber que era veneno, mas não se sabe que veneno era.
Ficamos de saber, também, que uns pouco, muito pouco, escapou de morrer e deram salvaguarda pros peste e se desviraram em soldado de volante.
Ai o bando ficou pequeno e por tempo muito nos teve de buscar refúgio!, – isso nóis já tava em terras de Pernambuco.
A sobra do bando entrou em desatrelo e uns ficaram por lá e se não é muita conversa, o bando ficava desfeito, pois a briga foi muita. Só não chegou às vias de fato, pois o capitão contornou. Mas chegou bem perto.
Nuns tempos outros, quando o Governo mandou acabar tudo do cangaço, a coisa ficou mais feia e nóis era caçado feito bicho e não tinha sossego: tinha sempre u’a bala procurando por nóis!
A ordem era acabar com o cangaço. Matar os cangaceiros todos que dessem resistência e prender os que era de mais manso. O governo estava incomodado, e nóis era a espinha de traíra na goela do governo: pequeno, mas que incomodava por demais.
O nome meu, de combate, era Fedegoso, não sei porque. Foi o finado Três Pote, que me arrastou pro cangaço, que me deu esse apelido.
Quando se diz nome de combate, quer dizer nome pequeno, pra ser gritado na hora de luta. Mas o apelido pega de tal jeito, que no desafogo do descanso, o nome de batistério serve só pra fazer chacota.
Fico só de pensar, enquanto me atribulo e fico de cuspir na cara da morte danosa..., enquanto fico vendo de trivela a sombra que o tinhoso lança no meu corpo quase morto, fazendo rezação às avessa pra me levar pros infernos; enquanto tô de penar, nesse carangaço de vida, que é naco de Sertão, que é fim de mundo, que já tá quase que se debruçado pros infernos..., será o meu findo?! Será que vão se esquecer de João Manco, o sapateiro, do jeito que se esqueceram do cangaceiro Fedegoso?! Será que essa história que aqui vos conto vai ficar no alembramento de quem quer que seja?!
Pensava em tudo de ruim que se pode pensar, quando tava no entrevado do Socavão, jogado nu’a cama de pedra, mirando o céu por um pedacinho só de fresta..., comendo o pão amassado pelo diabo, que se não fosse o chamego de Maria Cândida, nem sei o podia suceder..., e foi então que dei a primeira escarrada na cara da morte!
Pirracenta que só a peste, e mais pirracento eu era, furado de bala em três buracos, entrevado da perna esquerda que nem me alevantada da pedra que era cama, enganei a dita-cuja e resisti de morrer.
Pensava eu, que depois dos atribulados da vida no cangaço, seria difícil, muito difícil, quase impossível ter outra vida senão aquela que era vida de cangaceiro, desvirado no capeta, de mãos dadas com a desgraça, de picula com a morte e fazendo pilhéria com o demo e os cão tudo dos inferno!
Pensava eu que “o tudo” era aquilo e só aquilo, e o que nada mais tinha, além dessa coisa de penar no Sertão, procurando chumbo de bala e coito com o coisa-ruim, no acoitado do cangaço...
..., pensava eu que só sangrar um desinfeliz e ver o peste se estrebuchar no morrer, era o mais bom de tudo, pois não pensava em coisa qualquer que não fosse o arrenego da sorte e a caminhar sem rumo, arrastando o carangaço de vida e carregando na cacunda o amargar da vida às avessa da sorte!
Pensava eu, até o desatinoso momento, que tinha corpo fechado pra bala e pra faca e pra amor qualquer..., que não fosse amor às armas que carregava e às atrocidades que fazia. Corpo fechado pra amor de mulher, que só queria a aliviado do instante – nunca na força, pois isso não é coisa de macho, mas sim de cabra safado e fui bandoleiro! ..., cabra safado nunca.
Pensava eu, que o enfadado não teria findo, se não voltasse para o cangaço – coisa que o manco da perna não havia de deixar.
Mas o amor de Maria Cândida..., ah!, o amor de Maria! Um anjo de candura que com ele Deus atalhou meu caminho torto.
Se Deus me deu, por direito, a formosura de Maria Cândida, queria Deus que as coisas do cangaço, fosse matada e pra isso Fedegoso tinha de morrer!
..., e ali, naquele buraco do Socavão que nem nome tinha, morreu Fedegoso!, u’a morte que não foi matado, o cabra! Morreu só o cangaceiro e ficou enterrado naquela lapa do socavão, que desvirou em sepultura, e ficou de guarda das coisas todas do cangaço, e não havia de ser mostrada a mais ninguém. Tudo lá no fundo daquela carneira, em cova-rasa enterrado.
Nasceu pra vida, João Manco, chocho e capenga e de mal viver, salvado só pelo amor de Maria Cândida. Um cabra amargurado e de mal com a falta das coisas que a vida deu, mas tomou de volta: deixou amargor, de paga das muitas mortes que tinha na cacunda – u’as muitas que sei que eram merecidas; outras muitas, burrada. Asneira..., não havia de ter acontecido tantas.
Depois que fui levado pra u’a casa de taipa, arriada de velha, que seria de esconderijo e escapar de ser matado pelos soldados das volantes, ajuizava muito em muita coisa ruim, ainda, mas já não era tanta!, e essa foi minha soltura; meu livramento dos ligames do cangaço.
Ah se não é Maria Cândida!
Mudei o nome dela pelo costumado do cangaço de mudar pra nome de guerra – mas pra ela era nome de paz; nome de anjo; nome do meu salvamento; nome de mulher chinchanda na força!
Mulher assim, só havia de ter visto, dona Maria de Déa. Essa sim, tinha nome de guerra; tinha fibra e determinação. Se ajuntou com o capitão, por querer. Se assentou no cangaço e foi mulher de peitar marmanjo, sem medo de coisa qualquer.
Vontade de voltar pro cangaço?! ...,vontade até qu’eu tinha. Mas fazer o que?!, amparado em muletas que até pra montar cavalo carecia de ajudância?! Melhor era ficar no meu quieto.
E aí é que foi a parte pior. Aleijado d’uma perna, não tinha mais valia e fui esquecido pelos outros e fui esquecido por Deus, e fui desapartado até do santo de devoção, pois nunca que fui atendido, quando mais clamava por ter a perna esquerda sã outra vez.
Caiçara, sogro meu, diz que foi sorte minha, mas não vejo dessa maneira. Era bom de tiro e tinha carreira no cangaço, mas foi cortada pelo entrevero do aleijão.
A perna não foi cortada, mas os nervos se engurujaram e fiquei manco: força nenhuma mais, na perna esquerda.
Foi uns tempo de aflição muita, quando aleijado e entocado nu’a gruta pequena, vivendo que nem bicho, lambendo as feridas e sabendo do mundo pelas falas dos outros, depois embiocado nos cafundós onde judas esqueceu das botas, nu’a casa velha tanto que era quase dos tempos da arca de Noé – Maria Cândida era que me passava os acontecidos nas hora de chamegamento.
Pensava eu, que dela era só pena d’eu, que estava um trapo esgarçado. Só um resto de gente embiocado feito bicho; entatuzado naquele socavão, parcelando morada com as cobras e outros bichos mais pequenos, e depois atabafado na casa velha, pra escapar dos soldados do sargentinho de bosta...
..., mas era amor! Amor que Deus há de tê abençoado! Amor benzido pelo santo da devoção minha! Amor que me amparou! Amor que me aliviou – um pouco só, mas um pouco muito –, do que se desvirou em penitência, do que ficou de parecer castigância. Digo isso, porque a mortificação, depois que fiquei de me amparar nas muletas, foi sofrimento muito do grande! Foi sofrimento maior que a padecência cangaceira, no pior dos tempos do cangaço.
Mas disso tudo nóis se ria muito. Eu, Maria Cândida e Caiçara – pai de Maria Cândida –, sentava na beira de fogo e nóis se ria muito dos acontecidos, do que muito foi passado.
Era muita gaitada, quando um de nóis se alembrava da história da jumentinha, que arrastou os atoleimados pelas caatingas, pensando que tava no encalço de cangaceiro.
Nessas horas é que nóis se alembrava muito, dos muitas acontecidos e, por vezes vinha água nos olhos; vinha tristeza do que é passado, e u’a vontade endoidecida de que tudo fosse do jeitinho que era, tim-tim por tim-tim. E no meu juízo, u’a coisa encafifada não me dava sossego, mesmo com as muitas conversas: Deus me mandou de volta da morte, pr’eu contá essas história!? ..., será?
O tempo passou, o Sertão desmudou de muito..., Caiçara se foi..., Maria Cândida também é finada..., muitos outros se foram, morridos ou matados de jeitos muitos, e ficou eu, pedra-semente deixada por Deus pra dar testemunho dos acontecidos.
Já contei, um bando de vêiz e tô de novo a contar de novo e pode ser a última vez, mas pode ser que não – Deus pode de não me querer nos cafundós dos infernos, ainda –, mas há de me faltar lembramento desses muitos acontecidos, pois já tem uns faiados nos alembramentos.
U’a coisa ainda me deixa arreliado, um tanto abespinhado, um tanto muito amofinado, é com a desimportância tanta, que até me dói no juízo e deve de tá fazendo os finados companheiros meus, estejam onde estiverem, que por certo é os infernos, se remoerem de raiva!
Ninguém mais, nunca que falou nada de nóis – eu e os sete mais que morreu tudo no Lajedão da Mula Manca. Parece até que nem existiu Fedegoso – que ficou manco da perna esquerda –, que não existiu Tição, Carne Seca, Onofre, Pé de Coisa, Di’Maria, Calango Feio, ..., tudo que morreu no lajedo da Mula Manca, na tocaia montada pelo sargento finório – que nem vale dizer o nome por desagravo a bezerrada!
Peixe miúdo, seu moço! Lambari de brejo. A insignificância do cangaço. Pau mandado e desobedecido das ordens de Deus; desimportante de tudo e um pouquinho mais.
Um fiapinho de linha no costurado de Sertão que a vida desnaturada pespontava em pontos miúdos: no Sertão, que era vida vazia, cheia de saltos e sustos. No Sertão que era descabrestado e desmazeloso com seus entes.
Sertão remoso, que naqueles tempos de chumbo e aço era surto de ceguidade de decência: cada quem pensava no seu cada qual, sem muito se importa com o que era direito do outro.
Nóis tudo do cangaço era só um fio pequeno e fino no riscado do entremeado de linhas no papelão da almofada de renda de birros..., nos Sertões riscado pelas malditância que se fez rendeira, onde tudo era versado pelos determinados de Deus!
Peixe miúdo! ..., lambari de trovoada; pequeno e desimportante!
Mas como bem diz o dito do povo, mutuca é que tira boi do mato!
As tardes vão se findando, dia após dia, e cada vez que aprecio a tarde no findo me vem água nos olhos! Muita água nos olhos! Uma vontade endoidecida de voltar aos tempos de qu’eu tinha pernas para caminhar pelas carangaços de caatingas, nos estrepes de juazeiro, nos furados de unha-de-gato e macambira, nas coisas muitas que por muito tempo dei de pisar pelos Sertões. Era vida atribulada, mas tinha a livrança desse entrevado que só me dá muletas e gastura nesse padecer.
Maria Cândida podia tê esperado eu, pra nóis se ir junto. Bem sei que o porteiro do céu deixava ela passar! ..., – tal como deve de ter acontecido. Eu é que seria enxotado pro caminho dos infernos – isso tenho por certo.
Posso afiançar que o trabalho do cangaceiro foi um trabalho honrado. Cangaceiro trabalhava com as ordens de Deus – por vezes o diabo atrapáiava mas não era sempre.
Cangaceiro fazia limpeza das coisa ruim que tava por riba dessa chão, desmedido de grande, que até esse momento de agora, é secado tanto que nem pé de pau quer nascer.
As falhas, havia de ter as compensações – não se podia acertar todo o tempo. Por vêiz cangaceiro dava de matá quem nada tinha de muito ruim, mas o desacerto, logo, logo era pagado com a vida de u’a disgrama que não tinha serventia qualquer.
Deus deu ao cangaço o direito divino de justiçar. Isso eu agaranto, pra vocês!
Cobrava caro! Muito caro! Mas isso só depois que o disgramado era matado, pois cangaceiro não morria de morte qualquer! Era sempre de morte matada, pois de outro jeito não tinha a graça de visitar as portas do céu, receber condolências e depois ser encaminhado pros quinto dos inferno!
Mas não vamos se’alongar por dimais. O que é mais importante é contar de ligeiro, o que se assucedeu.
Se me perguntar de arrependimento?! ..., me arrependo não. Um tantinho pouco que seja! ..., me arrependo não.
Fiz o que tinha de fazer, nos encomendados de Deus. Não era o diabo conduzindo minha mão, nas hora de justiçá gente ruim. Sabia o que tava de fazê. Era de certeza bem certa o que fazia, porque isso era um encomendado de Deus: justiçar o Sertão!
Teve tempos de que o cangaço ficou de muita sustança e era respeitado e temido pelos muitos que tinha falta a ser cobrada. Era o cangaço justiçador.
Teve tempos de que o cangaço foi perseguido e cangaceiro era matado do jeito que se mata mosca: aos montes. Era o cangaço bandido.
Nesses tempos, o avexamento era tanto que carecia de nóis se esconder por dias muitos.
Quando era assim, que era carecido de se fazê resguardo – no mais das vezes era num raso de caatinga, entocados num lajedão –, não tinha muito que fazer. Era gastar o tempo no afiar as armas branca e no lamber os pau-de-fogo, pois tinha o proibido de dar tiro – ficava tudo lustroso! ...
..., e era sempre carecido de ter por perto aqueles mais achegados – mesmo não sendo amigo de todo –, pru mode não sê espantado com um tiro no meio das fuças, em u’a traição qualquer. Não tinha esse que fosse de confiança por inteiro. Valia mais o dinheiro e a troca de favores. Era tudo farinha de um saco só: tudo era bandido.
Por vezes a cabralhada era acuava em lugares que nem se sabia de exato onde tava.
Era u’a viver mundano e nós saía pelos matos de caatinga..., atravessava rio..., vencia léguas e léguas, de a pé..., quando dava pur fé..., óia que nós tava em outro Estado?! Era Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Ceará..., só aprumava de vez, quando chegava nos borocotós do costumado velho. Quando era em fuga, no desatino do Deus nos acuda, onde tinha pra escapar, nos se escafedia prum canto qualquer, sem nem atinar pra onde.
Das vezes que se sucedia um dasatinoso fugir, nóis fugia era por dentro dos matos: u’as veredinhas estreitadas que era quase mato fechado e saía rasgando as roupas e o couro do corpo nos espinheiros de calumbi, unha de gato, macambira, jurema..., era espinho muito e nóis ficava de zanzar, até que dava u’a parada e nóis ficava entocado nas brenha que achava pra nóis se embiocar e se esconder das tropa de volante.
Quando tinha jeito de ir até perto de lugar da escolha nossa, a cabroeira era levada pr’um lugar conhecido nosso e a salvação nossa era as quengas que as dona do puteiro trazia pra nóis. Às vezes trazia u’as moças que não era quenga, mas acabava se desvirando em quengas, pois a paga era muito da boa – o dinheiro nosso, não podia ficar de criar bolor. Com elas vinha cachaça e perfume e comida e outras baboseiras mais.
Uns ficava de butuca, fazendo guardas, os outros iam se aliviar.
Nem aí, as danças, quando tinha festa de dança com as putas, era de homem com mulher. Até nesses bailes tinha pega de briga da cabroeira.
O Peste do Mergulhão, é que quando estava avexado pra se aliviar, saía doido pelos matos, caçando mulher. Se não achava, pegava as éguas e as jumentas e as mulas.
No mais do tempo, ficava um bando de marmanjos sem muito que fazer, uns pegava a brigar com outros e as vezes saiam nos tapas, as vezes tinha arma no meio, até faziam mesuras pro capeta e u’as poucas vezes até que tinha morte.
Quando fiquei manco, na tocaia do descampado do Lajedão da Mula Manca, foi difícil e muito, me ajeitar na vida de gente natural. Tinha u’as inquietação que me deixava arreliado por demais.
Nada muito podia ajeitar por que o aleijão não deixava..., fiquei na profissão de remendador de couros, e de fazer coisas outras – de couro de bode, de veado e sola de couro de boi: alpercata, embornal, bolsa, alforje, bainha de facão, bainha de peixeira..., e outras coisas muitas, que gostava mais que remendar sela e encourado de vaqueiro..., a não ser jaleco! Esses eu gostava muito de pespontar os enfeitados com couro de veado.
Era bom na labuta com os couros – no cangaço era eu quem trabalhava mais com isso e o capitão apreciava por demais, as coisas qu’eu fazia nos couros.
Até fiz cartucheira pras armas das mulheres, encomendado por sinhá Maria de Déa, que aprovou e me mandou fazer perneiras – pra ela caminhar pelas caatingas –, e acabei por fazer pra elas tudo!, as mulheres do bando. Aí botava uns enfeite..., botava u’as fivela..., pespontava uns cortado dos desenho do capitão... – e o sujeito era bom desenhador!
Gostava mais dos couros de bode e de viado. Não tinha tempo pra curtir, pois nóis não tinha parada certa por tempo muito, mandava Antônio da Venda, em Angico, fazer o curtido: ia levar e ia pegar de volta, daí a dois mês, a mais.
Fazia embornal para o capitão e os cabras todos, cartucheira de cruzar no peito, perneiras, bainha de tudo que era arma de cortar, luva pra dar proteção pras mãos...
Meia noite era quem dava u’a demão, vez por outra, quando tava de veneta.
Vida cigana, essa vida que nóis tinha! Nem bem chegava num canto, tinha nóis que se arribar com tudo outra vez!
Mais ainda nos tempos que o governo mandou dar fim nos cangaceiros. Aí foi que nóis não tinha mais sossego!, e não esquentava lugar. Nem dava tempo de assentar poeira. Era chegando e logo, logo se arribando de novo, pois vinha aviso de que tinha volante caçando nóis.
Tempo de peleja insossa!
A vida, naquele Sertaozão arrematado de amargor muito, sem porteira, sem cerca e sem taramela, era aparcelado pelo trovejado das armas. Tinha mais força quem tinha o poder do dinheiro, que pagava jagunço e jagunço era quase que nem cangaceiro – pois daí era um pulo só. Matava, sem dó nem piedade, a mando de paga maior.
Aquela flor de formosura..., me salvou não só a vida, mas também do desatino. Não fosse Maria Cândida, ainda tava eu, desatinoso por demais!
Não fosse Maria Cândida! ...
Um anjo e eu um pecador desmedido de culpa e de crimes; um querubim que Deus mandou pra me aquietar da mundiça da minha vida de cangaceiro.
Não fosse Maria Cândida! ...
Fica aqui meu pesar, pelas penas todas que Maria Cândida dividiu mais eu, pois eu era o pecador e ela a flor mais flor que já botei os olhos que esse chão há de comer.
O chão, sim, o chão! ..., pois se não é esse meu anjo a me guiar, forte tanto quanto meu santo de devoção, meus olhos há muito tava nos bico dos urubu! ..., e já tô de vê essas disgramas avoando pelo céu, caçando por’eu, o cangaceiro que sobrou, dos outro tudo!
Quero pedir muito não! Direito, nem sei se tenho! ..., mas o que quero não é de forte significância!
Bota meu carangaço ajeitadinho ali bem pertinho de Maria Cândida. Se não for de muita disposição, nem carece de cavar sete palmos! Pode ser cova-rasa, bota por cima u’as pedra, depois, que é para os bichos não futucar..., e deixa lá no meu morrido me ajeitando com o capeta!
Muito disso fiz pros companheiros meus, quando dava jeito de enf