A REVOLTA DO DICIONÁRIO
Era noite. Na biblioteca da escola, em cima de uma mesa, estavam uma pilha de livros de gramática e um pesado dicionário. Na mesa, ao lado, um porta-lápis e várias réguas, tudo bem arrumadinho. Em frente das mesas ficavam as estantes com muitos livros. A estante preferida das crianças era a que guardava os livrinhos de história infantil. Essa ficava bem perto da mesa onde repousavam os livros de gramática e o dicionário. Silêncio total na vasta sala de leitura. A iluminação da rua, através das vidraças, lançava uma tênue claridade no ambiente. De repente um soluço. Um lápis, cuja cabeça era enfeitada com uma borracha vermelha, perguntou:
- Quem está chorando?
- É o dicionário. Ele está muito tristinho. – respondeu um dos livros de gramática.
- Qual é a razão do choro? – perguntou uma régua amarela muito curiosa.
- É por causa das crianças. – respondeu o livro de história infantil Branca de Neve lá do seu cantinho na estante em frente à mesa que abrigava o dicionário chorão.
- Mas as crianças cuidam bem de nós. Não vejo motivo para essa choradeira. – resmungou um dos livros de gramática.
- Não é isso, meu amigo! – exclamou o livrinho de história infantil. – É que as crianças, doravante, não precisarão dele e não mais o chamarão carinhosamente de “Pai dos Burros”.
- Ora, isso não acontecerá! Não será exagero da parte do dicionário? – questionou o livro de gramática da terceira série.
- Que nada, meu querido livrinho! Foi decretado que falar errado é o certo.
- Como assim? Perguntou assustado o livro de gramática da quarta série.
- Por exemplo: - começou a explicar o livrinho de história infantil. – de acordo com o decreto você pode falar: “nóis vai na praia”, “nóis pega o ônibus”, “nóis come os doce” que está tudo certo.
- Que coisa feia! Mas eu tenho certeza que as professoras não concordarão com esse absurdo, portanto a criança não se expressará dessa forma.
- As professoras não podem fazer nada. A ordem vem de cima, de gente que se diz entendida em português. Entendeu agora por que chora o dicionário? Ele sabe o destino dessas crianças, coitadas. Falar “nóis jogou bola depois da aula”, “as menina chegou atrasada na crasse” é como dar uma paulada na cabeça. – finalizou o livrinho de história infantil Branca de Neve.
O dicionário parou de soluçar e, fazendo um esforço grande devido ao seu peso, ergueu-se sobre a mesa e começou a discursar.
- Caros amigos, - começou ele revoltado, - nós, instrumentos de alfabetização, estamos fadados a desaparecer. Sim! Se o errado é o certo, o nosso prazo de validade já venceu, e material vencido vai para o lixo. Precisamos lutar a fim de que as crianças tenham um futuro digno. Que elas possam ser alfabetizadas com dignidade. Que saibam se expressar corretamente porque o idioma é a identidade de um povo.
Todos os livros, lápis e réguas da biblioteca aplaudiram calorosamente a fala do dicionário. Mas como em todo lugar sempre tem um engraçadinho, a biblioteca também tinha o seu. Um lápis de cor azul já descascado de tanto ser mordido pelas crianças:
- É isso aí, dicionário! – gritou entusiasmado. – falou pouco, claro e bonito. Ainda bem que você não usou as palavras difíceis que tem aí escondidinhas nas suas páginas, ah, ah, ah, ah.
Já era madrugada quando todos foram dormir. Antes de se acomodar para o merecido descanso, o lápis de cor azul, não se sabe como, conseguiu ficar de cabeça para cima e, com sua ponta fininha, escrever no papel que forrava a mesa:
- Abaixo a incompetência dos “filólogos”, tudo por um ensino digno. Ah, ah, ah, pensam que é só o dicionário chorão que sabe palavra difícil? Eu, lápis, também sei. Viram o que escrevi? Filóloooogoooooo. Gracinha!!!
25/05/11.
(histórias que contava para o meu neto)
(Maria Hilda de J. Alão