Abel e Caim
Partindo de uma narrativa bíblica, a escritora Carla Madeira escreveu uma ficção daquelas saborosas de se ler. Da beata Custódia ao bêbado Antunes encontramos os personagens que aparecem em “Véspera” no nosso cotidiano diário. A exceção fica com o padre Tadeu. Dificilmente esbarraremos em alguém parecido fora da ficção.
Augusto é abandonado numa avenida de mão única. A partir daí enquanto o enredo vai se fechando, supostamente procurando pelo filho, a mãe Vedina destila em conta-gotas para os leitores o inferno no qual ela entrou sem que fosse capaz de encontrar saída. Uma frase do livro lhe cai bem: “Uma mulher que apanhou uma vez de um homem apanhou para sempre”.
Custódia casou com Antunes. Só engravidou depois de ser convertida pela Bíblia. Um “milagre”. Com o receio de cair no agora “pecado” do sexo, expulsou o marido da sua cama para sempre. Convertido pela cachaça, Antunes planejou uma vingança. Quando apresentou a certidão de nascimento dos gêmeos lá estava escrito Abel e Caim.
Até chegarem na idade de irem para a escola, Custódia encontrou sua saída perfeita. Os gêmeos eram apenas “Abel e Abelzinho”. Depois não teve jeito. Enquanto Caim tornou-se um gênio, Abel foi “tomando bomba” do professor de matemática e repetindo de ano. Por bagunçar a loja do pai, Caim apanhou no lugar de Abel. Quase foi expulso da escola por fazer uma prova passando-se pelo irmão.
Se na escola Abel conhece a Veneza, é também ali que ele permite começar se deixar assassinar emocionalmente. Nas conta-gotas da Vedina sabemos que ela é casada com o Abel. Seria a mulher Vedina a menina Veneza? A autora logo revela. Vedina é a amiga da Veneza.
Com essa revelação nem é preciso esperar até Abel ir abrir a porta no dia da festa do Caim para saber quem estava chegando. O assassinato de Abel é intensificado pelo coração. Um moribundo se torna perigoso quando é atingido neste lugar pela irracionalidade e obsessão.
Confrontada pelos irmãos na partilha dos bens depois da morte da mãe, Custódia transformada numa tricoteira de mão cheia quase teve de enfrentar seus “pecados” antes da hora. A vilã foi a depressão. Fez as pazes com Antunes antes que ele fosse. Numa ocasião Antunes pediu que Custódia ficasse nua. Depois de recusar ela aceitou e ficou. Antunes morreu feliz.
Dois casais se formaram. Um deles se uniu por amor e nasceu a menina Rosa. O outro foi unido pelas mágoas e rejeições. Desse nasceu Augusto abandonado na avenida. Custódia perdeu o poder de decisão quando os pais de Rosa foram “morar juntos”. Perspicaz, sabia que nem a santidade do altar, véu, grinalda e vestido branco salvariam o outro casamento.
Um personagem narrando em primeira pessoa viu Vedina deixar Augusto na avenida. Logo estavam andando de mãos dadas. Um não amado Augusto deixou de existir para existir um amado Daniel. Talvez, foi salvo de se deixar assassinar prematuramente como o pai por um crime. Para quem o levou cometendo um crime, “fazer o mal era um fardo pesado porque o bem também é uma tentação”.