A espécie refugiados
De quando em quando a palavra refugiados volta a frequentar as manchetes da mídia mundial. Especialmente a do Ocidente. Com a entrada do Talibã em Cabul, estamos num desses momentos.
Só que o assunto tem um prazo de validade curtíssimo. Logo é esquecido. Como se os refugiados deixassem de existir. Até uma nova tragédia acontecer. Pode ser quando o Mar Mediterrâneo se transforma em cemitério para centenas deles. Pode ser quando o corpo de um menino é encontrado numa praia qualquer. E Khaled Hosseini escreve o belo “A Memória do Mar”.
Não temos a mínima capacidade de imaginar a vida dessas pessoas em seus países natal antes de precisarem fugir. As perseguições políticas. As perseguições religiosas. Fugir! O regime no encalço sempre pronto para atirar. Entregar as poucas economias e a vida nas mãos de aproveitadores. Enfrentar a alta probabilidade de morrer na fuga.
A revoluções que ficaram conhecidas como “Primavera Árabe” derrubaram vários regimes de ditadores no Oriente Médio. Não conseguiram derrubar o regime sírio que contra-atacou com força. É nessa Síria em guerra que vamos encontrar a jovem Doaa Al Zamel. Baseado em muitas horas de entrevista, sua história é contada por Melissa Fleming de modo romanceado no livro “Uma Esperança mais Forte que o Mar”.
Depois de participar dos protestos contra o governo, Doaa viu sua cidade ser e cercada por tanques. Soldados do regime com ordens de atirar antes e perguntar depois. Com ordens de torturarem desde as crianças. Com ordens para invadirem as casas. Contam-se centenas de milhares de sírios mortos pelo regime desde o início da guerra.
A primeira fuga foi o Egito. Na época os refugiados sírios eram recebidos com festas. Não durou muito. Logo o regime egípcio caiu e as perseguições aos refugiados recomeçaram. Ainda no Egito, Doaa percebeu que retornar a sua amada Síria e para vida anterior com sua família seria impossível.
Embarcou com o namorado Bassen num barco que tinha como destino a Itália. Por qualquer ângulo que se tente dar a narrativa, é impossível imaginar como Doaa sobreviveu vários no mar depois que o barco foi atacado e destruído. O namorado não resistiu.
Levava o Alcorão e duas crianças meninas no colo ao ser resgatada por um navio. Foi transportada de helicóptero e deixada num hospital na Grécia. Apenas uma das meninas sobreviveu. A mesma Grécia que agora levanta um muro para evitar a entrada de refugiados afegãos.
Doaa merecidamente foi transformada em ícone pela mídia europeia. Foi agraciada por prêmios. De um deles recebeu a quantia de três mil euros. Ícone e premiada, Doaa enfrentou um longo caminho burocrático até conseguir trazer sua família do Egito para a Suécia onde Doaa foi reencontrá-los. Epopeia que os países europeus permitem a poucos.
“Uma Esperança mais Forte que o Mar”, vai além de um livro simplesmente para se ler. Ele exige reflexões. Infelizmente os milhões de refugiados espalhados pelo mundo mesmo pertencendo a raça humana, são olhados como se fossem de uma outra espécie. Uma que serve de alvo para um tiro. Uma que pode se afogar no mar. Uma que os prazeres humanos permitem molestar. As mãos são lavadas.
Como diz na capa do livro, a história de Doaa é extraordinária! Faça o que fizer e quer se formar advogada, infelizmente continuará a ser de uma outra espécie. Permito-me uma última reflexão. A possibilidade de os refugiados representarem de fato a raça humana. Nós do Ocidente é que somos uma outra espécie.