O dia-a-dia das deusas
Há um lago em chamas no fundo do olhar dela, varrendo a noite como um cavalo alado de asas negras e crina reluzente. No local em que bate estrelas se movem como meteoros, e casais apaixonados fazem promessas, enquanto em algum lugar buracos enormes abertos, estrondos acordam os comuns e alguma destruição real é vivida pela queda.
O céu é domínio dos prendedores dos seus cabelos; ela, displicentemente os permite cair como chuva de vagalumes encantando aos notívagos e despertando alguma paixão em casais antigos, rememorando dias gloriosos.
Não é preciso sorrir para que saibamos que ela se orgulha de tudo ao redor, e esse orgulho a deixa um tanto mais generosa com os pedidos dos amantes e com os sonhos dos adolescentes.
O seu corpo é um mapa perfeito perseguido por todos, mas dificílimo de alcançar, pelas estradas tortuosas, cânions assustadores e barrancos impiedosos que destroem os que distraem com as visões hipnóticas dos montes e das curvas perigosíssimas.
Já se ouviu dizer, por poetas românticos que em seguida se despediram da vida com satisfação de terem vislumbrando uma mera centelha do que ela seria, que o cálice sagrado perseguido pelos cavaleiros da Távola Redonda mal se compararia aos encantos que dela emanariam.
Um sopro de seus lábios carnudos aliviaria o calor do deserto, e ao mesmo tempo causaria tempestades incríveis, letais e destruidoras. E entre os destroços, diamantes, pedras preciosas e rastros de sangue, pétalas de rosas perfumadas e espinhos venenosos, representando as armadilhas do que é viver sem ter certeza alguma do que pode acontecer.
Empenhar tudo o que se tem, apostar até o que jamais se terá é algo comum aos olhos cálidos dela, e as expressões de tédio e incredulidade, permitindo entrever que não há outro caminho, tudo isso é tributo merecido e devido a ela, que observará começos e finais, sempre trágicos e desastrosos causados simplesmente por sua existência, e é assim que deve ser para todo o sempre. Esse é o dia-a-dia das deusas.
Marcelo Gomes Melo