Amor inviolável
Ela costumava acordar assustada todas as noites, preocupada com a vida que tinha, mas achava que não tinha. Guiada pela ansiedade preferia não ver o que estava à sua frente, esperando as inúmeras possibilidades, todas com ínfimas chances de acontecer.
Era assim que desperdiçava as oportunidades mais simples, por ocupar o seu tempo e a mente em algo subjetivo, monstros que a imaginação não parava de criar e a impediam de usufruir os pequenos prazeres. Sempre perdia 60% por causa da insegurança. Impossível saborear até o fim qualquer conquista quando a preocupação com as próximas possíveis falhas era mais atraente e visível, tornando-a um ser humano inacabado por escolha própria.
Foi assim que impulsivamente desconfiou do sorriso tranquilo que ele lhe dava, do bom dia polido e do bombom que ganhava. E o afastava gentilmente com comentários gélidos acompanhados de sorrisos sem graça. Jamais era retrucada, o que a deixava ainda mais estranha, criando fantasmas onde não havia, deixando escapar ironias como autodefesa e cinismo em compota para sobremesas desagradáveis.
Nunca recebera as cantadas que esperava. Os meios manjados de aproximação, os convites para almoçar ou qualquer coisa do gênero. Uma vez, na praça sob o sol agradável da hora do almoço ganhara um sorvete de casquinha, compartilhado lado a lado em um banco de cimento, observando skatistas e bikers em silêncio. De vez em quando um olhar, um sorriso.
Talvez desarmando-a sem esforço, uma flor sobre a mesa de trabalho, um biscoito da sorte, um olhar demorado para o novo penteado, sem elogios patentes, subentendidos.
E um dia, livre de suas defesas criou confiança para um convite: cachorro-quente na praça, caminhada em torno do lago... No fim da tarde de um sábado se viram em um restaurante saboreando um jantar com uma taça de vinho, sem compromisso, sem perguntas, cobranças.
No fim da noite, na porta de casa, um início constrangido de despedida. Um aperto de mão, talvez? Sorrisos tímidos, um abraço frio e distante, quem sabe, com tapinhas nas costas... De repente a tempestade aflorou e virou abraço apertado e beijos famintos, incontidos, ofegantes, surpresos. Um convite desajeitado para entrar. Mais carícias e beijos no sofá. O caminho do quarto, natural, e a melhor noite já vivida por um casal que se recusava a amar, e caiu na armadilha daqueles que nada esperam, e quando se envolvem, percebem será para sempre. Amor inviolável.
Marcelo Gomes Melo