O TROVÃO E AS ONDAS
O TROVÃO E AS ONDAS
Roberto Schima
Os adolescentes sentaram-se na tábua que fazia a beirada para o mar, pés balançando, olhares perdidos nas águas sem fim. Estavam na idade em que se era jovem demais para namorar, e, entretanto, tarde demais para serem crianças.
O garoto olhou por cima do ombro.
- É agora - murmurou.
A garota mordeu o lábio inferior, nervosa.
- Vão pegar a gente!
- Não vão não. Estamos de costas para eles. Não conseguirão ver.
- Se pegarem, estamos perdidos.
Ele fitou-a nos olhos.
- Quer desistir?
Por um segundo, um segundinho só, ela esteve tentada a dizer que sim. Mas a cabeça morena acenou um não. Sorriu. Um brilho matreiro de cumplicidade cintilou em seu olhar.
O garoto, então, retirou um canivete do bolso. Ganhara-o do pai recentemente. Era antigo, cabo de osso, ponta quebrada. Observou novamente por trás dos ombros. Disfarçou, como se estivesse coçando uma picada de pernilongo inexistente.
Os pescadores cuidavam da vida e nada perceberam. Tampouco estavam interessados em dois adolescentes que não tinham nada melhor a fazer além de ficarem perigosamente na beirada do trapiche. Se os pais não estavam lá para tomar conta, eles é que não se dariam ao trabalho de fazê-lo.
Então, o garoto principiou a entalhar na madeira, cuidadosamente, atento para não se cortar.
Levou uns bons minutos.
- Pronto! - disse triunfante. Limpou a sujeira, jogando as lasquinhas de madeira no mar.
Ela admirou o entalhe. Tornou a sorrir-lhe, dessa vez, de um modo diferente, mais profundo, estranho.
Ele sentiu-se corar e não soube dizer exatamente o porquê.
Foi, então, que escutaram o grito:
- Ei, crianças, saiam daí! É perigoso.
Sobressaltaram-se e, por pouco, não caíram de fato. Viraram.
Era um dos pescadores que, de longe, acenava para eles. Um que se importava. Não fosse por isso, não se distinguiria dos outros em seu aspecto: magro, amorenado de sol, chapéu de palha e roupas surradas.
- Saiam daí! - insistiu.
O garoto guardou depressa o canivete no bolso e, levantando-se, falou para ela:
- Vamos, Tina, vamos, senão a gente se atrasa na escola.
- E descobrem o que fizemos - completou ela, piscando.
E lá se foram, correndo através do piso de tábuas, sob o radioso sol de verão.
Jovens demais para pensar em namoro, entretanto, prontos para amar.
O pescador balançou a cabeça. Resmungou:
- Crianças!
Toda manhãzinha, cerca de uma ou duas horas antes do Sol toldar a linha do horizonte de rubro, ela aparecia. A mulher dirigia-se até o velho trapiche e, em pé sob uma lâmpada fraca e solitária, punha-se a esperar. Não parecia importar-se com o frio da madrugada, embora a maneira como seus braços frágeis abraçavam o próprio corpo o desmentisse. Usava um pulover gasto e desfiado sobre o vestido de chita, este esvoaçava. A friagem subia-lhe pelas canelas como uma chama num rastilho de pólvora. E ela tremia. Tremia e aguardava. Aguardava e chamava:
- Genaro!... Genaro!... Genarooo!
Sua voz era rouca e dolorida, arrastando uma vã esperança num fiapo de delírio.
A princípio, os velhos pescadores sentiam pena.
- Coitada...
- Coisas do mar.
- Levou tanta gente boa!
- Nem fale: o Piaba, o Zé Chulé, o Marcão...
- Não se esqueça do Zaroio.
- Verdade. Mas esse o mar não levou: deixou-se levar.
- Eu sei, mas dá na mesma...
Saíam cedo de seus casebres para a lida. Chegavam no trapiche às escuras, num arrastar de areia e, procurando fazer o menor ruído possível, preparavam os apetrechos para mais um dia de luta. Todos tinham a tez tostada de sol. Contudo, conforme as manhãs passaram e àquela cena da mulher repetia-se dia após dia, semana após semana, habituaram-se a vê-la como se ela fosse mais uma peça no atracadouro e, assim, a piedade gradualmente cedera lugar à indiferença, quando não ao nervosismo e superstição dos mais tolos.
Exceto por ele.
- Mexa-se logo, Tibério - cutucou o outro velho ao seu lado. - Os peixe num ispera.
- Já tô indo, Tonho - murmurou, entre uma tragada e outra de seu cigarro de palha de milho.
A fumaça dispersava-se depressa na escuridão.
O companheiro, Tonho, alternou a vista do amigo para o vulto da jovem, sentiu um calafrio, deu e ombros e seguiu caminho apressado, fazendo o sinal da cruz.
Mulher no trapiche dava tanto azar quanto a bordo de um barco.
"Viúva, intão, piorô... Credo Cruiz!"
Do jeito que ela gritava, espantava até alma penada.
Mas ninguém tivera coragem de expulsar Santina de lá.
- Genarooo!...
Seu Tibério, rosto tão gasto e vincado de rugas quanto as tábuas do trapiche, observava àquela figura solitária perto da beirada. Compreendia a dor e o vazio que a perda deixava na alma sem outra forma de preenchê-los senão pelo açoite do vento e a enormidade do oceano mais a frente. E o pedir e o implorar, para que o mar devolvesse, que trouxesse de volta das profundezas escuras, onde o frio é eterno; e o silêncio, quase absoluto. Sim, ele sabia. E compreendia nos ecos em seu peito. Mas também sabia que o seu próprio filho, Arnaldo, jamais retornaria. Perdera-se no ano anterior, todavia, sempre dava a impressão de ter sido ontem, sempre ontem.
- O mar nos dá muito, mas é capaz de tomar tudo - murmurou entre os dentes.
Ao contrário de D. Santina, Seu Tibério, calejado e curtido pelas vicissitudes de uma vida inteira no mar, conformara-se logo. A dor nunca passava, contudo, não adiantava choramingar. Estava feito. A vida seguia em frente e precisava continuar a trazer o peixe para ser vendido na feira e nos mercados. Mais ainda agora, sem o par de braços jovens, fortes e vigorosos do filho para auxiliá-lo.
- É capaz de tomar tudo - repetiu, soltando uma cusparada espessa na água.
O oceano sempre fora o seu lar, seu amigo.
Até Arnaldo, certa noite, bêbado feito o idiota que era, tropeçar no cordame, cair nas águas e desaparecer para nunca mais retornar.
Então, para Seu Tibério, o mar tornara-se apenas o ganha-pão, o lugar sinistro de onde arrancava os peixes e, em troca, oferecia o recheio de seu próprio intestino e bexiga. E os cuspes.
Toda a alegria de menino a mergulhar do vai-e-vem das ondas deixara de existir.
Toda a vitalidade e prazer que sentia no balanço da embarcação fora-se.
Tornara-se somente um trabalho.
Sem tempero.
Sem gosto.
Nada mais.
Em meio a escuridão de um céu sem estrelas, as águas batiam monótonas nas colunas do trapiche.
O som vinha nítido e alto naquele final de madrugada.
O vento frio e úmido soprava da terra para o mar. Todavia, às vezes, a direção mudava. Então, Seu Tibério sentia. Inspirou fundo.
- Vem outra tempestade por aí - disse para si. - E das boas.
A anterior, três semanas atrás, levara Genaro depois que uma onda imensa varrera o convés de ré. Fora uma das maiores tormentas que os pescadores já ouviram falar. Rasgada por inúmeros relâmpagos como se anjos e demônios lutassem no céu. Os vagalhões, de tão sucessivos e encrespados, adquiriram a tonalidade de um branco fantasmagórico, em meio à espuma e neblina por eles formados. E os vendavais rugiam e rugiam a toda voz, gritando feito um coral do inferno, encobertos de quando em vez pelo brado dos trovões. O barco agitara-se feito um touro no rodeio, completamente a mercê da fúria do mar. Mais de uma vez dera a impressão de que seria partido em dois. Só por um milagre de Deus não emborcara.
Quando finalmente conseguiu retornar ao cais - capenga feito um velho manco -, todos foram em procissão até a igreja para agradecer a boa sorte e a graça do Espírito Santo.
Todos, exceto D. Santina, até então católica devota. A jovem perdera a fé no instante em que o marido deixara de descer do barco. Para ela, os milagres deixaram de existir.
E gritara e gritara na beirada do trapiche, no mesmo lugar onde, agora, encontrava-se:
- Genarooo! Genarooo! Genarooo!
Rasgara suas vestes. Quisera pular para o mar. Olhar desvairado de quem perdera o juízo. Teve de ser arrastada a força e tratada durante dias por uma tia.
Repetira o nome do pescador vezes sem conta até sua voz tornar-se rouca, gutural, a ponto de alguém de imaginação fértil compará-la aos trovões da tempestade. Então, em um misto de temor e irritação, chamara-a de Santina Trovão. Era cruel, mas mediante os gritos contínuos e desesperados, a ponto de transformar o dó e a tristeza em impaciência e exasperação, o apelido - a boca pequena - pegara. E, para contrabalançar, fizeram o cúmulo de inventar um apelido também para o falecido, que passara a ser o Genaro das Ondas.
Ao saber disso, o pároco da igreja passara um sermão daqueles.
- Arrependei-vos! - pregara a plenos pulmões.
Porém, não houvera maneira de descobrir o responsável, nem mesmo no confessionário.
Santina Trovão.
Genaro das Ondas.
O Trovão e as Ondas.
Suspeitava-se seriamente que esse alguém seria uma das carolas solteironas da vila, de sensibilidade tão pequena quanto grande e afiada era a sua língua nem um pouco abençoada. Era invejosa da, até então, felicidade dos dois jovens recém-casados, a quem empinava o enorme nariz em fingido desdém. Infelizmente, a vida era assim, tal qual dizia-se na região: "Tem gente que é tão infeliz, mas tão infeliz, que só se sente bem vendo ou fazendo a infelicidade dos outros". Não havia como provar. E bem poderia ser somente uma intermediária de mexericos alheios.
O clérigo desistira, sabendo que, não obstante a sua ignorância, nada era invisível aos olhos de Deus.
Finalmente, Seu Tibério ergueu o corpo magro, ignorando a dor nas juntas. Deu uma última tragada no que restava de seu cigarro e atirou a bituca para as águas escuras. Lançou um último olhar apiedado à infeliz e foi para o barco enfrentar o mar. O que mais lhe restara na vida para fazer?
D. Santina prosseguiu a chamar e a gritar até os primeiros raios de sol despontarem na linha do horizonte, voz quase sumida na garganta dolorida. Então, como se a luz a afugentasse, ela retornou que nem um zumbi para a escuridão de seu barraco.
O "Virgem das Águas", barco de Seu Tibério e Tonho, deveria retornar somente no dia seguinte, entretanto, devido a proximidade da tempestade - confirmada através do rádio - bem como da pesca mal sucedida, retornou no início de tarde.
- Male, male pagará o combustível - resmungou o capitão do barco, homem obeso e rude, sempre de barba por fazer. Tendia a exagerar seus queixumes para, assim, pagar o menos possível a seus homens. - Male, male...
Tonho fez uma careta para o companheiro.
- Ai, ai... Já iscutei essa ladainha antes, Tibério.
- Nem fale, Tonho, não me lo diga...
- Sorte du Mané ter se aposentado.
Seu Tibério discordou.
- Sorte nada: inteligência, meu velho. Ele fez o certo. Nós é que metemos os pés pelas mãos.
Ambos sempre foram contra a pagar a Previdência, achando que isso só iria encher os bolsos dos políticos corruptos. Já poderiam ter se afastado do serviço havia anos.
- Qui seja! Ao menos ele mi vendeu a bicicreta bem barato.
- Uma boa casa, uma boa esposa, aposentado, o filho na Marinha. Mané fez tudo certo.
- "Nem mi lo diga" - remedou o outro, lembrando-se de Arnaldo, o filho bebum do amigo. - Os péis pelas mãos e um bucado de azar.
Cada qual retornou para o seu casebre.
Tostados, moídos, suados, roupas remendadas e bolsos quase vazios.
O barraco de Seu Tibério ficava pertinho do trapiche, quase defronte deste na verdade. Desde que o filho perecera, ele morava sozinho. A mulher abandonara-o, culpando-o pelo ocorrido. Não havia muito o que comer e nem ele precisava de muito. Ficou no beiral da janela, vendo a noite chegar, mais um cigarro de palha entre os dedos.
Coqueiros farfalharam.
Sentiu o odor frio do vento.
"Tempestade. E das brabas."
O velho pescador despertou de madrugada. Não soube dizer se foi por causa dos pesadelos, dos trovões ou do vendaval fazendo tremer seu telhado. Provavelmente, tudo junto. Num ímpeto, saltou de sua rede e correu em direção à janela. Foi imediatamente atingido pela chuva, pelo frio e pelo vento.
- Mãe de Deus!
Ficou ensopado e isso despertou-o completamente. Piscou e olhou para fora.
A tormenta viera com tudo e castigava o vilarejo.
Árvores agitavam-se em desespero.
Latas e tambores chacoalhavam.
O aguaceiro desabava do céu.
Relâmpagos pipocavam.
A fiação balançava.
As ondas batiam no costado dos navios, erguendo plumas esbranquiçadas. As embarcações moviam-se num vai-e-vem perigosamente, ameaçando chocarem-se contra os atracadouros e entre si.
Nem almas vivas ou mortas ousavam sair.
Tudo estava deserto naquele cenário de horror.
Seu Tibério espremeu a vista, limpando-a da chuva insistente.
A incredulidade tomou conta de seu semblante.
Tudo estava deserto...
... Quase tudo.
- Mas o quê em nome de...
Lá fora, em meio a intempérie, na borda do trapiche, estava ela.
A silueta pequenina no vestido branco.
Cabelos soltos colados às costas.
A jovem e bela viúva.
Dona Santina.
Era uma figura fantasmagórica sob a luz vacilante do poste, cuja lâmpada estremecia. De braços erguidos, ela parecia gritar feito demente para a tempestade, mas seus gritos não podiam ser ouvidos devido a força das vagas, o vento ruidoso e o ribombar dos trovões. Era a loucura personificada, a insanidade em forma de mulher.
E ria.
E pulava.
E pranteava.
Sempre a chamar e chamar:
- Genarooo!... Genarooo!... Genarooo!
Da tempestade não havia candura.
Daqueles olhos, o marejar da loucura.
Era estar diante de uma feiticeira em pleno sabá ao redor do caldeirão.
E, sobre o piso de tábuas molhadas do trapiche, a qualquer instante, a tresloucada criatura perigava tombar e cair no mar a exemplo do falecido marido. Isso se um relâmpago não a fulminasse.
- Dona Santina! - gritou Seu Tibério tão inutilmente quanto os apelos da jovem para o oceano bravio. - Sai daí, sua doida varrida!
A mãe de todos os pesadelos libertara-se de seus grilhões.
Assim, a tempestade prosseguiu sem descanso.
Areia, oceano, relâmpagos, vendaval.
Terra, água, fogo e ar.
A ira dos elementos.
Desesperado, o pescador correu para a porta do seu barraco, completamente esquecido da janela entreaberta e, agora, subitamente escancarada.
A chuva e o vento castigaram o interior do casebre. A tempestade fez visita, espalhando e estilhaçando tudo aquilo que podia, o que não era muito a bem da verdade.
A porta abriu num estrondo.
Mais coisas espatifaram pelo chão.
Seu Tibério, homem rijo e magro, foi atirado para trás. O vento estava tão forte que o pescador teve dificuldade em caminhar contra ele. Respirar tornou-se difícil. Seu pensamento era um só:
- Dona San-Santina! - gaguejou.
Isso não podia acontecer, de novo não! Não diante das vistas dele. Já perdera o filho para o mar e, embora não tivesse a amizade da mulher, conhecendo-a apenas enquanto freguesa na feira, e, de vez em quando, na missa dominical - quando dava e quando resolvia ir -, não lhe suportava a idéia de presenciar mais uma morte para o oceano que se tornara o seu algoz. A perda por ela sofrida também criara um tipo de vínculo, algo em comum que Seu Tibério podia entender.
Arrastou-se para fora do casebre. Percebeu num rabo de olho que a parede estava um tanto inclinada. Mais um pouco, levaria sua morada para longe, como se não bastasse tudo o quanto já lhe havia sido tomado. Deu alguns passos em direção ao trapiche, meio cego pela chuva, o vendaval e a fraca iluminação. Houve um estrondo, contudo, tão atento estava Seu Tibério à mulher que não se deu conta: o telhado de seu casebre foi embora. Panos, papéis e copos descartáveis esvoaçaram. Ironicamente, as paredes, embora frouxas, continuaram de pé.
E a mulher agitava e agitava seus braços, saltitando e saltitando nas tábuas molhadas. Por trás dela, as vagas chocavam-se fortes, fazendo erguer uma cortina d&039;água que alcançava o dobro ou o triplo de sua altura.
- Firme, Tibério - dizia o velho para si próprio, incapaz de escutar sua própria voz. - Firme!
Avançou lentamente, tateando, agarrando-se a troncos de árvores, cercas e muretas.
Atravessou a viela feito um ébrio, sem ter nada em que se segurar ou apoiar. A ventania esbofeteava-lhe o rosto sem clemência. Fios de água escorriam-lhe pelos cabelos e das roupas onde nada mais havia que não estivesse encharcado. Seu corpo esfriava rapidamente.
Custou-lhe um bocado até, finalmente, alcançar o início do trapiche.
Era como duelar contra o Oceano, porém, em terra firme.
- Tempestade desgraçada! - vociferou para as alturas.
De repente, sob a fraca luz da lâmpada, Seu Tibério viu.
Surgiu ameaçador, vindo do mar aberto, feito um monstro moldado pela tormenta.
O vagalhão.
Engoliu em seco.
- Dona Santina!
E o paredão de água avançou, avançou e avançou.
- DONA SANTINAAA!!!
De repente, o que ele mais temia que ocorresse à viúva aconteceu consigo: ele próprio escorregou nas tábuas molhadas. Bateu o queixo no chão e isso o nocauteou. Antes, porém, enquanto caía, viu a mulher ser tragada pelas águas e, sem ter arregalado completamente os olhos, acabou desacordado.
Acordou no hospital.
Tonho estava sentado perto dele, jeito de quem mal dormira.
- Pregou um susto lascado! - foi logo dizendo.
- O que houve?
- Eu qui prigunto. - Bocejou. - Logo, os polícia vem aí.
Seu Tibério sentia-se fraco. Tinha uma agulha espetada na veia de onde o soro estava-lhe sendo injetado. Procurou reorganizar os pensamentos.
- A polícia?
- Foi um temporal ferrado! Sua casa já era, mas eu os outro daremos um jeito. O que ocê fazia do lado de fora?
Então, surgiu a imagem da chuvarada, os coqueirais açoitados pela tormenta, a lâmpada a vibrar no alto do poste... o trapiche.
Ele não pudera impedir.
Ocorrera novamente.
Mais uma perda.
- A viúva. Tentei salvar a viúva.
- A maluca? - sem perceber, Tonho tornou a fazer o sinal da cruz. - Ela tava di novo no trapiche, naquele tempo?
Seu Tibério confirmou num movimento de cabeça.
- Tentei alcançar, mas escorreguei. O mar... O mar...
- Só pudia dar nisso, meu velho. Fazê o quê? Ela tanto quis qui conseguiu.
- Conseguiu?
- Tá junto dele, ora! Do tar Genaru...
Seu Tibério ficou cabisbaixo. Sentia-se arrasado. O corpo todo doía. O maxilar mais do que tudo.
- Sim, agora, ela está ao lado do marido... O Trovão e as Ondas.
De repente, uma sombra fechou o semblante do pescador.
Tonho percebeu.
- Qui foi, homem? - quis saber. - Ocê ficou pasmo! Tá bem?
- Nada não, Tonho, só o cansaço, só o cansaço...
Como Seu Tibério poderia dizer ao amigo? Como poderia contar a quem quer que fosse? A polícia? De jeito nenhum! Eles iriam saber tanto quanto Tonho acabara de deduzir: o mar levara D. Santina. Sumira como Arnaldo, ambos vítimas da imprudência e da falta de juízo.
Sim, ele se lembrara.
Apesar das cenas fragmentadas, do zumbido do vento que dava a impressão de ter feito morada dentro de seus ouvidos, Seu Tibério sabia. Ele vira o que vira. E isso o pescador jamais esqueceria.
Fechou os olhos, fingindo que tornava a dormir. Escutou sons de movimento. O amigo arfava, resmungou qualquer coisa, pigarreou, levantou-se e saiu do quarto. Cheirava a peixe e tabaco.
"Melhor assim."
Na escuridão por trás das pálpebras, uma fraca luminosidade se fez e o velho pescador reviu a cena no anfiteatro da mente.
Sim, ele vira.
- Não me lo diga...
Do interior daquela enorme cortina de água e espuma, um par de braços longos e esbranquiçados agarrara a jovem. Esta agitara-se em desvario. A silueta da coisa era esguia, assemelhando-se na parte superior a de uma de mulher, enquanto que, abaixo, seu corpo era serpentiforme. Erguera D. Santina no ar e, quando ambas mergulharam junto com a onda, o restante do corpo surgira no espaço de segundos e rapidamente desaparecera.
Sim, Seu Tibério vira.
Custava-lhe acreditar.
Mas ele vira.
No final, o corpo de serpente terminava em uma cauda semelhante a de um peixe.
A seguir, tudo apagara-se no baque surdo de seu queixo no trapiche.
- Meu Deus, que falta me faz o cigarro!
Era domingo.
O dia estava ensolarado.
Nem de longe fazia supor que uma tempestade daquela açoitara o pobre vilarejo.
Várias casas foram destelhadas e seus moradores providenciavam reparos.
Voluntários erguiam um novo telhado sobre o casebre de Seu Tibério. Ao contrário das grandes cidades, a pobreza material não cedera lugar à pobreza de espírito.
O padre rezava a missa em memória de D. Santina e de todos que haviam perdido a vida no mar nos últimos anos. Perguntava-se o porquê do sofrimento se abater geralmente sobre os mais necessitados.
Havia uma certa satisfação na fisionomia da carola fofoqueira, aquela que era solteirona. Destacava-se feito um farol diante de tantos semblantes contidos. E um sorriso esboçou-se quando o clérigo pronunciou os nomes de Genaro e Santina.
Foi assim que o padre teve certeza de quem inventara os apelidos sem necessitar do confessionário para isso. Sentiu o calor da cólera subir-lhe pelo rosto. Nos anos que o tempo levara, ainda bebês, batizara tanto Genaro quanto Santina. E também fora ele a realizar o matrimônio de ambos na mocidade. Agora, pouco tempo depois, fazia a missa. Sentiu-se muito velho e muito cansado. Todavia, ao perceber um esboço de triunfo no rosto da solteirona, perdeu completamente a razão e as estribeiras. E, sem precisar apontar ou dizer o nome, bradou:
- Aquele ou aquela que se nutre do mal, pelo mal será levado! Maldita seja a inveja de um espírito frustrado. Maldita seja a hipócrita que, na Casa do Senhor, zomba, difama e diverte-se com a desgraça alheia... MALDITA SEJA!
E seus olhos fuzilaram na direção da carola.
No silêncio pesado que se seguiu, rostos se viraram. E o burburinho tomou conta da igreja.
A mulher emitiu um gemido, sentiu-se encolher, diminuiu até alcançar a sua real insignificância.
Abandonou a missa pela metade e nunca mais retornou à igreja.
No seu caso, não seria de todo errôneo afirmar: o feitiço virara-se contra a feiticeira.
Seu Tibério, já de volta a sua casa, postou-se junto à janela. Enrolou um cigarro de palha entre os dedos calejados. Acendeu-o. Tragou lentamente e, devagar, soprou a fumaça. Suspirou. O olhar perdeu-se do trapiche para a vastidão do mar mais além. Desejou ter instrução o bastante para conseguir colocar em palavras os pensamentos que vinham-lhe à mente.
O mar estava calmo e ensolarado, tão diferente daquela madrugada. Os raios de sol batiam em sua superfície, perdendo-se no brilho de um milhão de estrelas. Alguns barcos destacavam-se na linha do horizonte, acima dos quais, bando de gaivotas lutavam pelo seu quinhão.
Em breve, o período de afastamento terminaria e, assim, Seu Tibério zarparia outra vez naquela bacia furada, o "Virgem das Águas", para mais uma pescaria ao lado do amigo Tonho e do questionável capitão.
Inspirou a pureza do ar úmido e salgado.
Subitamente, tomado por um impulso, saiu e dirigiu-se em direção ao trapiche. Apoiava-se em um bambu a título de cajado. As juntas reclamaram. Procurou ignorar seus apelos. Pé ante pé, areia sobre areia, chegou até o piso de tábuas velhas e, pouco a pouco, atingiu sua margem, perto do poste e da lâmpada solitária. O local exato onde D. Santina costumava gritar para o mar. O lugar onde ele a avistara pela última vez.
Lamentou:
- Coitada...
Mirou o mar mais abaixo, suas águas escuras tornadas sinistras.
As mãos tremeram.
Pôs-se a pensar nos mistérios infindáveis das profundidades oceânicas.
Teria acontecido?
Teria visto o que achava que viu?
Era somente um exercício de retórica. Sabia as respostas por mais que a razão o negasse.
Lembrou-se de que, quando moço, fascinava-o o momento de recolher a rede, pois nunca se sabia ao certo o que viria. E o mar estava repleto de criaturas diferentes, peixes de diversos formatos, estranhas estrelas-do-mar, conchas de todos os tamanhos e tantas coisas mais, conhecidas e desconhecidas.
Relembrou histórias recentes de redes rasgadas e barcos naufragados em épocas de calmaria.
Acidente?
Boatos falavam desde pirataria a outras dimensões e gente de outros planetas. Exoterismos demais para a sua mente simples de pescador.
Talvez não fosse exatamente o mar o seu algoz, mas certas criaturas de lendas que, um dia, o imaginário de marujos solitários fizera inventar. Não tinham um canto maravilhoso que fazia os navios chocarem-se contra os recifes? Como chamavam-lhes os indígenas? Iara... Era isso mesmo? Iara...
Atirou o restante do cigarro na água, observando-o flutuar e desfazer-se.
De repente, algo a seus pés atraiu a sua atenção. Estava na última tábua, escura e mofada, na beirada do trapiche.
Franziu a testa já bastante enrugada.
"Um desenho?"
Abaixou-se vagarosamente, escorando-se no bambu. As articulações dos joelhos triplicaram seus protestos.
O entalhe era antigo, de vários anos. Já estava gasto e suas linhas confundiam-se com as ranhuras da madeira.
O velho pescador passou os dedos sobre ele, acompanhando o seu desenho.
Estava torto, porém, percebia-se: era um coração. Dentro dele, duas letras: "G" e "S".
A surpresa tomou-lhe e rosto, e Seu Tibério recordou-se.
- As crianças...
Lembrou-se do casal adolescente naquele ensolarado dia de verão.
- Então, eram eles.
O pesar encurvou-lhe ainda mais os ombros, como se já não bastasse o fardo dos anos.
Ficou ali parado por um longo tempo até não mais suportar a dor no corpo, retomando o caminho para o seu casebre, agora de telhado novo.
- Eram eles - repetiu.
Fosse como fosse, dentro de si, Seu Tibério alimentou uma esperança: a de que, de alguma maneira, a infeliz viúva e o seu desafortunado marido, agora, estivessem juntos. Sim, juntos, em algum lugar nas profundezas frias, escuras e molhadas de um temporal distante.
No final das contas, o mar atendera aos apelos da jovem, apesar de não ter sido exatamente conforme ela desejara: em vez de devolver-lhe o marido, levou-a até ele.
E assim permaneceriam.
D. Santina e Genaro.
- O Trovão e as Ondas - murmurou.
Unidos para sempre em meio a uma tempestade sem fim.
BIOGRAFIA
Sou neto de japoneses. Nasci na cidade de São Paulo em 01/02/1961, o que agora me parece muito distante. Passei a infância imerso nos anos 60, período de várias transformações. Tive a felicidade de sentir o clima de entusiasmo em relação a "Conquista do Espaço" que hoje não existe mais - não obstante a Guerra Fria. Fui o vencedor do "Prêmio Jerônymo Monteiro", promovido pela "Isaac Asimov Magazine" (Ed. Record), com a história "Como a Neve de Maio", publicada em seu nº 12. Escrevi a história "Abismo do Tempo", uma das contempladas do concurso "Os Viajantes do Tempo", promovido pela revista digital "Conexão Literatura", de Ademir Pascale, e publicada em sua edição nº 37, de Julho de 2018. Desde então, tornei-me um colaborador regular da revista. Escrevi os livros "Limbographia" (contos), "O Olhar de Hirosaki" (romance), "Os Fantasmas de Vênus" (noveleta), "Sob as Folhas do Ocaso" (contos) etc.
Obs: Mais informações: Google, Clube de Autores, Amazon, Wattpad ou nos links abaixo.
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