Efuturo: A FLORESTA DAS ALMAS PERDIDAS

A FLORESTA DAS ALMAS PERDIDAS

A FLORESTA DAS ALMAS PERDIDAS


Roberto Schima


"Às vezes, luz demais ofusca nossos olhos. Necessitamos da penumbra para enxergar mais longe..."
(Provérbio de Ooqueah, avô de Nanook)


No Noroeste do Canadá, na fronteira do Círculo Ártico, em um vale próximo ao Alasca, existia uma floresta lúgubre imersa no mistério. Era diferente de todas as florestas boreais dos arredores, geralmente constituídas por pinheiros, espruces, bétulas e abetos. As árvores dessa floresta eram relativamente baixas, troncos e galhos escamosos e retorcidos como se suportassem a custo o peso do céu. Longas mechas de barbas-de-velho penduravam-se nelas e tremulavam sob a gélida brisa que, vez ou outra, soprava. Uma atmosfera sinistra permeava o lugar, realçada por um nevoeiro cinzento a encobrir tudo, tão denso que, até durante os curtos dias de Verão, dava-se a impressão de se estar em um perpétuo crepúsculo o qual jamais conhecera o alvorecer.
Os mais velhos inuit contavam que nem sempre fora assim. Segundo as tradições orais, cochichadas de uma geração a outra, na região, havia uma floresta como as outras, morada e local de caça de diferentes tribos que vinham se aventurar atrás de alces, lebres, caribus, castores e até ursos. O Espírito da Lua olhava para aquele pedaço de chão. Podia-se ouvir os guinchos das corujas-das-neves e a luta dos bisões nas épocas de acasalamento. O vento era vigoroso, oriundo das Planícies Brancas no extremo norte, e inspirá-lo fazia encher de vida o corpo e a alma, trazendo uma alegria imensa por estar ali, naquele momento, naquele lugar.



- E o que aconteceu? - perguntou a jovem para o rapaz corpulento ao seu lado.
Ela se chamava May. Era uma moça miúda, ruiva e de rosto sardento. Descendia de uma linhagem de nobres falidos de Provence, sudeste da França, imigrada para o Canadá após a derrocada de Napoleão. Nascera em maio, em plena primavera, daí o seu nome dado pelo pai, o velho Barão de La Croix, cujo maior sonho era vê-la ser desposada por alguém de uma família tradicional e de posses, como a dele um dia fora, e voltar a ostentar com orgulho o seu corroído brasão sobre a lareira.
Nanook, por sua vez, possuía o sangue inuit nas veias. Seus ancestrais cruzaram o Estreito de Bering havia mais de quinze mil anos, no final da última Era Glacial. Uma história de muita luta e sobrevivência. E ele, ao contrário da visão dos europeus em relação ao seu povo, sentia um orgulho enorme por isso e por suas tradições. Contava-se até que um parente distante acompanhara o explorador Robert Peary e Matthew Henson ao topo do mundo. O apelido Nanook fora-lhe dado pelos pais. Diziam ser ele desde garoto grande e forte feito um urso polar, o Grande Espírito do Norte, guardião das geleiras e das banquisas. Pendurado no pescoço por um cordão de couro de foca, trazia sempre um talismã de presa de morsa. Fora entalhado pelo seu avô paterno, Ooqueah, quando ele estava prestes a nascer a fim de que as divindades o protegessem e fosse um bom caçador. Seu contorno lembrava o de uma baleia beluga.
- Meu pai falava que o pai de seu pai, certa feita, saíra de seu igloo. Sentira o soprar do vento de Sila vindo de longe, a trazer o odor da Longa Noite que se aproximava. Pusera-se, então, a observar as Luzes do Norte. Pelo que entendi, ele queria observar as almas dos mortos - anirniit - fazerem sua longa peregrinação para a Terra da Lua, uma espécie de paraíso, creio, a qual chamavam Quidlivun.
- Quidlivun... - repetiu May para tentar guardar na memória. Ela era pequenina ao lado de Nanook, como um guaxinim, conforme ele comparara um dia. Em criança, frequentaram a mesma escola cristã e ele a defendia quando outras crianças punham-se a zombar das sardas dela. Desde então, tornaram-se próximos. Muito mais do que o Barão de La Croix gostaria. - Quidlivun.
- Isso. Era quando os mortos se despediam de sua amada terra em direção a uma outra jornada, quem sabe, junto àqueles que um dia se foram e cujos espíritos vagavam no compasso iridescente daquelas luzes...
- "Iridescente"? Está falando difícil...
- Te impressionei?
- Claro, seu panda! - respondeu, dando-lhe uma cotovelada amistosa.
- Decorei ontem para me exibir - riu. E continuou: - Ah, e o espírito dos animais também, pois todos os animais possuem uma alma. Eles não são caçados, mas deixam-se caçar a pedido de sua mãe, Nuliajuk ou Sedna.
- Nuli... Nulia...
- Nuliajuk.
- Nuliajuk - repetiu May lentamente. - Nuliajuk!
O rosto largo de Nanook abriu-se num sorriso.
- Talvez seja mais fácil você memorizar Sedna...
- Seu tonto! - E outra cotovelada.
Nanook ficou sério, seu timbre de voz tornou-se reverente, quase temeroso.
- Nuliajuk é o Espírito do Mar em forma de mulher e de cujos dedos as focas se originaram. Como eu falei, os animais deixam-se apanhar para que nós não pereçamos de fome. Às vezes, Nuliajuk pode ser cruel; outras, benevolente. Por isso, um caçador sempre pede perdão a sua presa e, também, agradece-a pelo seu sacrifício. E faz de tudo para não incorrer na ira dos espíritos.
- Acredita nisso? - perguntou May.
Nanook desviou seu olhar dos olhos dela e voltou-se para o céu. Estava límpido, quase sem nuvens, exceto pelos cirros pincelados bem longe, lá no alto. Inspirou o odor da neve. Relembrou as aulas dos padres e as lições dos xamãs. Disse baixinho:
- Digamos que eu não desacredito.
- Mas você é cristão!
Nanook sorriu e, sem se dar conta, levou a mão direita até a beluga de marfim.
- E sou inuk - respondeu, referindo-se ao singular de inuit, como se isso explicasse tudo. - Mas onde eu estava? Ah, sim... A Longa Noite chegaria em breve, límpida feito o interior de uma enorme taça de cristal e as Luzes do Norte tremulavam no firmamento, naquela majestade silenciosa que tanto inspirava temor quanto admiração, mas, principalmente, respeito. Sempre o respeito, pequena guaxinim.
- As auroras boreais são lindas!
Nanook concordou num aceno de cabeça.
"Mais do que lindas."
Sim, somente quem nunca as observara poderia reduzi-las a um feixe de vento solar aprisionado pelo campo magnético da Terra. Havia magnificência, grandiosidade, um espírito sagrado naquelas luzes tremeluzentes, muitos espíritos, e ele, Nanook, que crescera ouvindo diversas histórias sobre elas, era impregnado por um sentimento de deferência e admiração. Seus cabelos longos e negros balançaram suavemente no ar frio da manhã. E ele prosseguiu:
- Naquela noite, subitamente, uma grande bola de fogo surgiu do nada e foi crescendo e crescendo a medida em que cruzava o céu, até chocar-se no vale aos pés das montanhas. - Apontou.
- Meteorito?
O rapaz deu de ombros.
- É o que diriam os cientistas. Contudo... o que sabem eles? Meu ancestral chamou de tuurngaq, um espírito malígno que fez a terra tremer, o vento soprar de um jeito ruim - fedor, eu suponho - e matar tudo o que havia naquela área: alces, corujas, lebres, corvos, gente... As árvores foram totalmente destruídas, derrubadas como palitos caídos, despidos de suas folhas e galhos, divergindo do ponto de impacto como as pétalas de uma flor.
Os olhos de May iluminaram-se.
- Que nem aconteceu em Tunguska?
Nanook ficou intrigado.
- Conhece essa história?
May confirmou.
- O garoto russo, Oleg, contou sobre isso na escola, não se recorda?
- Mais ou menos. Oleg... Faz muito tempo. Bem, sim, foi exatamente como em Tunguska. Mas, diferentemente da Sibéria, a partir de então, as lebres sumiram, os ursos deixaram de urrar, as corujas-das-neves voaram para outras paragens, o uivo dos lobos calou-se para sempre. Sequer uma raposa restou.
- Que dó!
- Sim. As criaturas nativas já viviam uma luta incessante pela sobrevivência. Sua impiedosa rotina, por si só, era um épico. Todas desapareceram. As árvores que brotaram a partir daí eram diferentes: feias, retorcidas, torturadas, dominadas por esses espíritos malígnos. Até a atmosfera tornara-se diferente, tenebrosa, não deixando mais atravessar os feixes de luz em leques de arco-íris... Iridescente. A floresta do vale já fora alegre, encantada, e até a algazarra de pássaros podia ser ouvida. Depois da queda da bola de fogo, tudo mudou. Tudo se calou feito uma mortalha.
Nanook observou o pequeno corpo de May estremecer.
- Você está bem?
- Estou. Só um pouco nervosa com essa história.
- Eu posso parar...
- Não! - protestou, voz estridente. - Posso ter um medinho, mas não quero deixar de ouvir.
- Sei o que quer dizer. Apesar de tudo, eu também desejava saber mais.
- E eu gosto do seu jeito de falar, Nanook. Parece que estou presente lá. Eu vejo tudo acontecer diante dos meus olhos!
Ele sorriu e os cabelos negros e luzidios pareceram brilhar ainda mais, tanto quanto os seus olhos ao fitar o rosto pequenino da jovem May.
E Nanook continuou:
- Como falei, a maioria dos animais morreu ou fugiu para sempre. Os que sobreviveram jamais retornaram. Até as aves migratórias como as andorinhas-do-mar passaram a desviar seu trajeto sobre o vale. Então, o silêncio caiu pesado naquele lugar - fez o gesto com as mãos, como se algo baixasse -, tão denso quanto o nevoeiro que se formara, surgido não se sabe de onde, brotado da terra ou daquilo que viera do céu. As primeiras pessoas a se aventurarem no vale pouco depois da queda, retornaram confusas e amedrontadas sem saber explicar ao certo o porquê. Diziam perder a noção de tempo, de direção e, inclusive, da própria identidade. Afirmavam ver formas estranhas no nevoeiro, sombras diferentes, contornos difusos vindo e indo. Ouviram rumores, rosnados. Alguns sentiram um toque gelado e úmido no rosto, diferente do roçar em um galho ou da mão de outra pessoa.
- Estou novamente tendo arrepios!
- Eu também tive quando ouvi da primeira vez em criança.
- E vai me convencer que o ursinho panda não sente medo agora?
Nanook não respondeu. Seu olhar perdeu-se adiante, em direção à floresta. Em vez de confessar seus temores, preferiu continuar a recordar as velhas histórias ouvidas por um garotinho assustado sob as cobertas de pele de urso muitos anos atrás... Ainda bem que, agora, era dia claro!
- Contavam que algumas pessoas enlouqueceram. Os xamãs - angakuit - disseram que, ali, tornara-se um mau lugar a ser evitado, pois os tuurngait tinham feito a sua morada. Não havia cânticos mágicos, máscaras ou amuletos o suficiente para enfrentá-los. Ainda assim, alguns dirigiram-se até lá como prova de coragem, um rito de passagem... Tolos! Vários jamais retornaram. Os que voltavam diziam haver encontrado roupas e armas espalhadas pelo solo, mas sem sinal dos corpos. Então, os anos passaram e brotou aquela floresta de árvores tortas e folhagem escura em meio ao nevoeiro. Não demorou muito a alguém batizá-la de A Floresta das Almas Perdidas.
- Não veio nenhum geólogo ou astrônomo averiguar? - perguntou May.
O inuk voltou a sorrir. Disse:
- Veio um cientista. Acreditou nos relatos mais do que muita gente: anotou tudo num papel, deu meia-volta e foi embora!
- Não foi até lá na floresta?
Nanook fez que não com a cabeça.
A moça ruiva não se conformou.
- Que diacho de cientista era esse?
- Sensato, pequena guaxinim, um cientista sensato.



A Floresta das Almas Perdidas...
May e Nanook estavam sentados em um velho tronco caído. Desde que se entendiam por gente, aquela árvore estava ali tombada. Tornara-se uma espécie de canto favorito para os dois conversarem. Cada qual usava a sua parka forrada de pele e trajes de couro.
A floresta amaldiçoada encontrava-se a alguns quilômetros do povoado em que viviam, e podiam vê-la dali onde estavam, através das coníferas. Ou mais ou menos, por causa da névoa que entremeava a região em seus diferentes matizes. Um nevoeiro que somente ali havia feito morada. Sequer as nevascas conseguiam afugentá-lo.
Apesar do agasalho, May abraçou-se como se um vento gelado, subitamente, tivesse aparecido da vastidão das Planícies Brancas. Era uma história triste e, ao mesmo tempo, fascinante - de um jeito terrível, porém, terrivelmente fascinante, por assim dizer -, tão diferente das deprimentes histórias de feiticeiros, as torturas e a queima de bruxas na velha Europa que sua família, às vezes, narrava nas noites mais frias, quando a luz elétrica falhava e o fogo da lareira ou das lamparinas de óleo de baleia produziam sombras dançantes no interior da sala.
A lembrança a fez melancólica. Tentou recordar-se desse tempo de criança e da última vez em que presenciara o seu pai sorrir. Ah, isso fora antigamente, quando a situação econômica deles ainda não se havia deteriorado e o fantasma da ruína não os assombrava.
Suspirou. Sua respiração condensou-se imediatamente numa névoa branca.
As lendas do Norte possuíam uma limpidez e uma grandiosidade inerentes à vastidão do Ártico.
E Nanook as narrava de uma maneira apaixonada e poética, a qual sempre prendera a sua atenção.
- Angakuit - murmurou May, pronunciando corretamente. - Angakuit.
Vendo os olhos da moça tornarem-se tristes, impulsivamente, Nanook a abraçou.
Nesse instante, por uma dessas piadas que, vez ou outra, o destino costumava pregar - senão um dos antigos maus espíritos -, surgiu o velho Barão de La Croix.
- O que pensa que está fazendo, seu índio fedorento? - vociferou o homem de barba grisalha, tão corpulento quanto Nanook, mas sem a vitalidade daquele, e tão inseparável de seu rifle de caça quanto Nanook de seu amuleto de presa de morsa. Aparentava ser um idoso urso pardo devido ao seu casaco de pele. - Tire suas mãos dela!
- Pai!
- Senhor, eu não queria...
O pai de May ignorou completamente qualquer tentativa de explicação de Nanook. Apanhou o braço da filha de um jeito rude, ignorando o gemido desta, e levou-a de volta para casa.
- Vamos!
- Eu não quero!
- VAMOS!
E Nanook, o gentil "urso polar", pemaneceu lá, boquiaberto, vendo o pequeno rosto de May desaparecer na distância.



A partir daí, passaram-se semanas e semanas sem que Nanook visse a antiga colega de escola, sua amiga May. A tristeza tomou conta de seu coração. E ele procurava encontrar consolo fazendo longas caminhadas ao redor do povoado, ou auxiliando outros inuit em seus afazeres cotidianos.
Foi como se o cenário branco mais ao norte se descortinasse diante de seus olhos e os últimos raios do Sol tocasse o horizonte gelado, fazendo aproximar-se a noite cruel de vários meses. Tudo se apagou dentro dele. Sim, Nanook sentiu-se verdadeiramente um urso polar, um urso maltratado, desnutrido, pronto para a hibernação, porém, certo de que não aguentaria despertar para a próxima primavera.
E ele chorou; às escondidas, mas chorou.
- Minha guaxinim - balbuciava. - Minha pequena guaxinim...
E o medo da perda de May foi maior do que qualquer terror que a floresta maldita pudesse provocar.
Se o Barão de La Croix, descendente de nobres provençais, pretendera com isso afastar de vez os dois, ao final, conseguira justamente o efeito contrário, pois a separação fora a centelha a acender a chama da paixão entre os jovens. A saudade da companhia um do outro fizera-os ver até que ponto necessitavam-se mutuamente, do quanto se queriam, do quanto se amavam.
- Meu ursinho panda...
May parou de comer. Seu rosto, já pálido, tornara-se sombrio, olhos encovados.
Sua mãe insistia com toda sorte de pratos, inclusive o ensopado da escura carne de foca que a menina tanto apreciava. Sem efeito. Preocupada, queixou-se vezes sem par aos ouvidos teimosos do marido.
Este, o velho Barão, acomodado em sua poltrona, olhar preso ao brasão da família, jamais daria o braço a torcer.
- Um índio? Nunca! Já andei pesquisando por pretendentes. O filho dos London é um deles.
- Jackie, o baderneiro? - falou a esposa, incrédula. - Esse brutamontes não passa de um vagabundo arruaceiro! Sequer é de uma boa estirpe, conforme você tanto deseja.
O Barão de La Croix torceu o bigode entre os dedos, enquanto fumava o seu charuto.
- Mas a família dele fez fortuna na Corrida do Ouro. Fortuna! E ele é melhor do que qualquer nativo de olhos puxados nunca o será. - Ouviu um soluço da jovem vir do quarto. Virou-se para a esposa. - Faça a sua filha comer ou eu o farei a força!
E a jovem May comeu. Muito pouco, mas comeu.
Entretanto, nunca mais pensou na época em que o seu pai, um dia, sorrira.



Tempos depois, a boca pequena, correu pelo povoado um boato de que o velho Barão fora conversar com o jovem inuk. As mulheres, principalmente, eram muito faladeiras. Uma piada vulgar dizia que o telégrafo perdia longe para elas. Todavia, os homens, entornando seus canecos de brandy, vodka ou whisky trazidos de Quebéc, tampouco ficavam atrás. O álcool sabia amolecer uma língua... Murmuravam que o Barão de La Croix convencera o rapaz de que, se este quisesse ser digno de voltar a ver a sua filha, deveria trazer uma prova de sua afeição por ela.
- Farei qualquer coisa! - afirmara.
- Jura por Deus?
- Por Deus, por Nuliajuk, por Sila... por qualquer coisa!
- Pois bem...
E qual seria essa prova?
Sem contar a ninguém, ele deveria adentrar nA Floresta das Almas Perdidas e trazer um ramo com a folhagem ainda verde de uma das árvores encarquilhadas do lugar. Só assim, dissera o velho, poderia vê-la outra vez. Ninguém nunca vira uma folhagem verde naquelas árvores. Os que observaram a floresta de uma distância segura descreviam suas folhas de marrom a negro, ressequidas, aspecto de mortas, fosse qual fosse a estação do ano.
"Folhagem verde?"
Todavia, Nanook, o jovem inuk, desorientado pela falta da presença de May, aceitara.
- Eu o trarei.
Nanook fora um dos últimos a desaparecer nA Floresta das Almas Perdidas. Nunca mais retornou.
O velho Barão inventou uma história para a desconsolada filha. Falou-lhe de conversas de bar, sobre o rapaz ter fugido com outra inuk, a qual teria engravidado. Teriam viajado, para além das Montanhas Mackenzie, no Yukon. Chegou a pagar alguns dólares canadenses para uns beberrões corroborarem a sua versão.
A intuição de May, entretanto, foi forte e cristalina feito o vento do Norte.
- Mentira! - gritou, saindo de casa.
Essa versão não chegara aos ouvidos dos pais de Nanook. Eles residiam do lado oposto do povoado e mantinham uma vida seminômade boa parte do ano. Embora tristes, aceitaram resignadamente aquilo que o Espírito do Mar ou o Espírito da Lua teriam reservado ao filho. Nanook sempre fora um bom rapaz. Assim, fosse qual fosse o motivo para ele ser levado deste mundo, deveria ser por uma boa causa, e, certamente, estaria feliz e recompensado em um local de abundância eterna.



O velho Barão de La Croix já não se opunha às saídas da filha. Andava ocupado, planejando o futuro da garota... e o seu.
A jovem celta, frequentemente, ia se sentar no velho tronco caído onde, um dia, ouvira a história sobre a bola de fogo. Observava o azul do céu, as montanhas cobertas de neve e, mais abaixo, a floresta imersa em seu cobertor de nevoeiro.
Então, um dia, movida por um impulso, caminhou até lá, até a borda dA Floresta das Almas Perdidas. Não sabia explicar o motivo. Simplesmente pôs-se a andar e, quando se deu conta, ia naquela direção.
Sentia-se entristecida, muito confusa, temerosa das histórias que escutara do lugar, porém, apesar disso, a tal floresta tinha algo de comum entre ela, May, e o desaparecido Nanook, seu amigo: a antiga narrativa dos ancestrais.
Chegando próximo à floresta como jamais estivera em sua vida, a exemplo de um outro dia, agora distante, abraçou seu próprio corpo. Menos de frio, embora estivesse muito frio, do que da sensação de fatalidade que a dominara ao observar os troncos velhos, tortuosos, o sentimento de tristeza a emanar da neblina, a falta completa de cores do lugar, cores quentes, cores vivas. E o silêncio, quão pesado era o silêncio.
- Nanook! - chamou. - Nanook!
Somente a quietude veio em resposta.
Observou formas escuras ou figuras formarem-se no nevoeiro, contudo, achou ser isso apenas obra de sua imaginação, somada as diferentes sombras a ondular entre as árvores conforme os caprichos da brisa.
- Nanook...
O silêncio de chumbo.
A atmosfera de pesar.
E aquelas formas estranhas, movediças... Seriam como as figuras que, em criança, ela e Nanook fantasiavam ver esculpidas nas nuvens ou nos cumes das montanhas.
Mexeu os dedos dos pés dentro das botas. Queriam ficar dormentes por causa do frio... Ou seria por mais alguma coisa?
E May chorou pela falta de Nanook. Seus soluços quebraram a quietude do vale e infiltraram-se pela floresta. Chorou e chorou.
Uma rajada de ar repentina arrancou punhados de folhas escuras. Elas rodopiaram para longe da névoa e "choveram" sobre a pequena May.
- Meu Nanook...



Subitamente, May escutou um barulho atrás de si. Assustada, virou-se.
Fantasmas? Tuurngaq?
- Senhorita de La Croix...
Quase.
Era Jackie London, o rico fanfarrão, trajando roupas finas e o seu estimado gorro de pele de castor.
- O que está fazendo aqui? - indagou ela.
Ele riu um riso cariado.
- Seu pai mandou-me procurá-la. Ele está bastante preocupado.
- Vá embora! Quero ficar sozinha - disse May, enxugando as lágrimas.
O rapaz acenou um não.
A neblina roçava os troncos torcidos e o chão úmido.
- Seu pai mandou-me levá-la de volta.
- Se ele mandar você ficar de quatro, você também fica?
O jovem abastado avançou e, impetuosamente, agarrou-a pelos braços.
- Vamos embora daqui!
- Largue-me, seu estúpido!
O nevoeiro descreveu um pequeno redemoinho, depois outro.
Sombras e penumbras se mesclaram.
Contudo...
... Não havia vento. Nem brisa.
- Ah, você é tão macia, senhorita de La Croix. - Inspirou. - E o seu perfume, apesar de barato...
- Vá embora daqui!
Ele aproximou-se mais a fim de cheirar-lhe os cabelos ruivos, o pescoço.
- Oh, sim... É delicioso.
- Solte-me, seu bruto!
A névoa agitou-se ao longe, no interior escuro da floresta. Barbas-de-velho se agitaram.
Um cintilar primitivo tomou conta dos olhos de London. Sua respiração tornou-se ofegante. Seu sorriso foi assustador.
- Creio que o velho barão poderá esperar por nós mais uns minutos - sussurrou nos ouvidos dela. - Noivinha!
De alguma maneira, May conseguiu desvencilhar-se. Girou o corpo e, usando toda a sua força, aplicou-lhe uma cotovelada no estômago. A seguir, penetrou na floresta.
London arfou. Em seguida a dor, subiu-lhe a raiva e ele soltou um palavrão entre os dentes. Avistou as árvores e o vulto de May. A princípio, hesitou, mas o calor do desejo brotara dentro de si, e observando aquela garota pequena e frágil desaparecer entre a névoa, calculou que não teria dificuldade em alcançá-la. Ademais, agora aquela mocinha lhe devia... Ah, sim, ela devia... E iria pagar! Correu atrás dela.
- Não fuja!
O silêncio da floresta engolfou a ambos, aprisionando-os no interior de uma concha. Até o som de suas passadas pareceu sumir. Em parte, foi por causa do terreno esponjoso, acidentado, semelhante à turfa, mas por outro lado... Não, não era de bom tom divagar sobre a natureza misteriosa daquela vegetação, sobre os odores penetrantes, sobre as histórias da bola de fogo, de onde teria vindo e o que haveria em seu interior. Sem pássaros, sem insetos. E aquela névoa sem fim...
Não, nada disso. Não passava de uma floresta igual a tantas outras...
... só que não era.
May voltou a chorar a medida em que, desajeitadamente, procurava correr. O nevoeiro dificultava a visão além de alguns metros. Sua saia enroscava-se nas raízes das árvores e nos galhos mais baixos, rasgando-se. Os galhos mais altos cuidaram de desmanchar seu penteado e arranhar suas faces. Seu rosto começou a sangrar. Lágrimas e sangue misturaram-se à neblina. O frio era intenso naquele lugar, mais do que fora da floresta, porém, agora, ela mal apercebia-se disso. Só desejava fugir daquele homem asqueroso e de um futuro horrivelmente incerto, cuja única certeza era a de que seria horrível. E pensava em Nanook, seu gentil amigo Nanook, nos olhos amendoados e nas antigas histórias dos inuit, seus costumes, sua simplicidade e a desinteressada hospitalidade.
- Volte aqui, mulher! - gritou furioso o ofegante Jackie London. Surpreendeu-se por mal conseguir escutar a própria voz. - Maldita neblina!
Ela fugia dele e, sem se dar conta, penetrou mais fundo nA Floresta das Almas Perdidas.
O rapaz correu como pôde em seu encalço, desajeitadamente. Seus trajes finos tornaram-se imundos. Agora, sentia mais rancor do que excitação. Perguntava-se como ela, naquelas roupas pesadas, poderia ser mais veloz do que ele. Indagou-se, ainda, se, a essa altura, valeria a pena tanto esforço por causa daquela rapariga. Havia muitas outras no povoado, algumas até mais bonitas e disponíveis. Sim, algumas delas fariam qualquer coisa por uma pequena pepita...
De repente, May tropeçou em uma das inúmeras raízes tortas e caiu. Gemeu de dor ao bater um dos joelhos em outra raiz. Sentiu as mãos afundarem na espessa camada de musgo e folhagem morta: era viscosa, de aspecto pútrido, pestilento. Tossiu, enojada.
Jackie London observou o pequeno vulto tombar alguns metros adiante e anteviu o seu momento de triunfo. O desejo retornou mais forte ao pensar nas mulheres do povoado e naquela que tinha logo ali, indefesa. Dificilmente teria outro momento de privacidade ao lado dela feito esse. Não antes do casamento. - Sorriu. - E ele sequer cogitava em se casar. Ah, ele merecia algo por todo o esforço, pela dor que ela causara. E aquele perfume no pescoço dela...
- Agora sim. Eis você, minha frutinha de mirtilo.
Quando estava prestes a agarrá-la, sentiu rajadas de vento ao redor.
O nevoeiro agitou-se.
Ramos farfalharam.
Penumbras e sombras se confundiram em diferentes formas, tons e densidades.
E, do nada, ouviu-se algo, uma voz - parecia uma voz -, quebrar o pesado silêncio da floresta.
Disse:
"NÃO!"



O vento tornou-se mais forte. Um redemoinho formara-se ao redor dos dois. Milhares de folhas negras revolutearam.
O sangue gelou nas veias do rapaz.
"Que loucura é essa?"
May e London olharam em volta, assustados. Incertos se teriam de fato escutado uma voz ou, simplesmente, se seria um outro som qualquer vindo daquela floresta dominada por uma quietude infinita.
E aquela ventania?
Nada.
Alguns metros adiante, não havia nada além das siluetas das árvores tortas e as formas sombrias que iam e vinham no nevoeiro a mercê de alguma brisa fugidia ou de um vento brusco onde não deveria ventar.
"Não deveria ventar..."
Não, não era possível. E todas as lendas, as histórias sobre o lugar? E se aquela névoa tivesse vontade própria. Uma neblina de outro mundo. Absurdo! Não podia ser...
O pretenso pretendente, julgando ser obra de sua imaginação e das histórias idiotas que ouvira nos bares, apesar do nervosismo, chacoalhou a cabeça. Avançou novamente para a jovem, mãos abertas em forma de garras. Sim, ela, a sua deliciosa e merecida recompensa.
- Agora sim...
Tão de repente quanto surgira, o redemoinho se foi.
Milhares e milhares de folhas escuras caíram.
A seguir, para o horror de London, deu-se conta: suas mãos estavam desaparecendo diante de seus olhos. Derretiam. Não, não derreter. Sublimavam, tornavam-se um tipo de vapor, ou melhor, parte do nevoeiro que os rodeava. De opacos para translúcidos e, enfim, transparentes.
- O quê?...
Tentou pedir socorro e não conseguiu. A voz diluíra-se em sua garganta.
May também não acreditou naquilo que presenciava.
E o olhar da garota só aumentou o terror do rapaz. Se ela também via, então, deveria ser verdade, por mais inacreditável que fosse semelhante insanidade. Era real. Estava sumindo!
London procurou berrar outra vez, mas o máximo que conseguiu foi emitir um som sufocado, um gorgolejo como o de alguém prestes a se afogar.
E, assim, aterrorizado, o arrogante filho de pai rico, Jackie London, em seu gorro de pele de castor viu-se pouco a pouco convertido a esse nada que era o nevoeiro sinistro, tornar-se paulatinamente parte dele e, num breve e pequeno redemoinho, desaparecer no exalar de um último suspiro.
Somente seus trajes não tão vistosos ficaram para trás.
O gorro caiu sobre o colo de May.
A mocinha horrorizada quis pedir auxílio, contudo, a exemplo do outro, não conseguiu. A voz definhou antes de chegar aos lábios.
Filetes de sangue riscavam o rosto cortado.
Trêmula, estava presa pela tensão. O pânico a dominava.
As antigas histórias...
O frio, finalmente, começou a fazer-se sentir em seu corpo. Farpas de gelo cravaram-se na alvura de sua pele.
Por fim, ao largo de menos de um minuto, outra sensação, por mais irracional que fosse, principiou a murmurar em seus ouvidos...
... Ela não estava só.
Aterrorizada, olhou para um lado e para o outro.
O nevoeiro percorria os troncos escamosos e retorcidos em toda parte, onipresente. Qualquer direção que mirasse era idêntica à outra. Não conseguia ver o Sol através das copas e da névoa. Encontrava-se totalmente perdida na penumbra sem fim.
Repentinamente, May prestou atenção nas formas escuras que, vez ou outra, vinham e iam no nevoeiro do fundo da floresta. Seus contornos indistintos ora assemelhavam-se a contornos humanos, ora a de animais, ora a de criaturas de mitos ou de pesadelos. Sua respiração tornou-se mais rápida e descompassada. O coração pesava no peito.
Só podia ser um sonho, um pesadelo muito ruim. Fez força para poder acordar. Não conseguiu.
Uma dessas formas emergiu do interior do nevoeiro, acompanhada por novos redemoinhos. Tornou-se mais escura, mais densa, mais definida. Chegou por entre as árvores torturadas num silêncio de morte. Fez balançar as longas barbas-de-velho em seu caminho. Os contornos assemelhavam-se aos de uma forma humana, grande, de cabelos compridos.
Os redemoinhos de vento e nevoeiro tornaram-se novamente mais fortes. Fizeram os galhos balançarem. Mais folhas se desprenderam.
Então, algo caiu do alto da árvore mais próxima de May, junto a sua mão. Um objeto de um branco envelhecido preso a um cordão de couro.
E ela o reconheceu: o talismã de marfim.
A sombra escura ficou ali, parada, esperando...
May gritou:
- Nanook!
O vento cessou.
E ela ouviu - mais dentro de sua mente do que através dos ouvidos - aquela voz de momentos atrás, a que ordenara o "NÃO!" para London, sussurrar-lhe delicadamente:
"May..."
A forma escura aproximou-se ainda mais.
Anirniq, essa era a palavra, anirniq.
Ela ainda sentiu uma fisgada de medo: o temor pelo desconhecido. Mas, aos poucos, retomou o controle de sua respiração, o tremor abandonou o seu corpo pequenino. O coração continuou a bater forte, porém, dessa vez, por outra razão. O pavor, vagarosamente, desapareceu, diluindo-se na camada de musgo e vegetação morta sob seu corpo.
Viu duas protuberâncias projetarem-se para ela. May, sem hesitar, estendeu os seus braços. Não era algo físico e, ainda assim, estavam lá. Levantou-se. E, quando acreditou que suas mãos haviam tocado as dele - pois aquilo que via não passava de uma sombra muito escura projetada do nevoeiro -, do mesmo modo que London, May, a jovem de cabelos ruivos, começou a se dissolver. Todavia, não sentiu medo, não mais.
Agora, ela sabia.
Finalmente, reencontrara o seu nobre, generoso e amado Nanook.
E ficariam juntos para sempre, no nevoeiro, na floresta, ou a vagar lado a lado sob a proteção de Sila, junto às maravilhosas Luzes do Norte.
Seu último pensamento naquilo que ainda poder-se-ia chamar de consciência foi:
"Meu ursinho panda..."
Logo, restaram apenas os seus trajes em andrajos sobre o solo úmido na floresta.
A beluga esculpida em presa de morsa também caíra.
Afinal de contas, de um modo assombroso, do qual Ooqueah, o avô de Nanook nunca poderia supor, o talismã que fizera para o bebê ainda não nascido cumprira, de fato, a sua função.
E, através da penumbra, ele enxergara mais longe.



A Floresta das Almas Perdidas continuou a ser, por um bom tempo, um local tabu a ser evitado - até mais, após o desaparecimento dos jovens -, onde as árvores eram aterradoras com seus galhos descarnados e troncos retorcidos, atormentadas pelo peso do céu de onde, um dia, uma misteriosa bola de fogo surgira. Onde o silêncio imperava e o nevoeiro, denso a ponto de esconder a luz do Sol e das estrelas, envolvia a tudo com sua gélida onipresença.
Entretanto, agora - alguns audazes perceberam -, o silêncio não era tão completo assim.
Algumas pessoas, que por um motivo ou outro, acidentalmente aventuraram-se na borda da floresta, voltaram trazendo outras enigmáticas histórias. Diziam ter escutado vozes ou impressão de vozes dentro de suas cabeças. Vozes de um tipo diferente. Não tinham certeza se era uma peça de suas mentes, ou o assobio insistente do vento nas folhagens, mas poderiam jurar de pés juntos. E, pelos menos os inuit, não eram dados a falar mentiras. Ouviram duas vozes: a de um homem e a de uma mulher.
- Vozes? Homem e mulher?
- Sim...
- Tornou a encher a cara no bar?
- Não, mulher, eu juro!
E, ao contrário de gemidos, uivos ou lamentos apavorantes, elas riam e riam uma para a outra, revoluteando pela penumbra úmida e fria sempre em mutação na floresta.
Um dos aventureiros até trouxe um ramo de uma das árvores torturadas, o qual encontrara caído no solo esponjoso: sua folhagem estava verde.



Era o mês de maio. Primavera.
A memória do sorriso de May inundava a velha cabana de troncos.
Vez ou outra alguém, incitado pelos inconformados pais de Jackie London, atirava uma pedra de lá de fora, arrebentando mais um vidro nas já castigadas vidraças.
Fiapos de vento frio rodopiavam pela sala, criando montículos de neve.
A lareira não conseguia dar conta em aquecer o interior, cujo calor, a bem da verdade, partira fazia um longo tempo.
- A lenha está terminando - resmungou a mulher, enquanto agachava-se para apanhar a pedra intrusa no assoalho.
Ele não deu mostra de ter ouvido, olhar distante.
Ela deu de ombros.
O velho estava aninhado em sua poltrona estofada, muito gasta por incontáveis invernos, tão abatido quando um velho carvalho caído sob o peso da nevasca - ou de um machado. Refletiu casualmente sobre um tempo em que a filha, sentada num dos braços da poltrona, aninhava-se em seu ombro e pedia para ouvir alguma história.
História...
O povoado andava cheio de histórias.
Ao comentar sobre os tais relatos de vozes na floresta, o velho Barão de La Croix, agora condenado ao ostracismo pelo resto daquela comunidade, rompeu o silêncio e resmungou entre os dentes:
- Maldita seja essA Floresta das Almas Perdidas!
Ao que sua triste esposa, de malas prontas e farta de tudo - cujos ouvidos não ficaram indiferentes às conversas fofocadas pelas mulheres da vizinhança - retrucou numa voz que destilava um misto de veneno e alento:
- Agora, A Floresta das Almas Perdidas tornou-se a floresta das almas que se reencontraram...
E partiu sem dizer adeus.
E o velho descendente de orgulhosos nobres de Provence, charuto apagado entre os dedos, mais do que todas as almas que por lá desapareceram, sentiu-se terrivelmente só e totalmente perdido.
Sua mente era um poço de perguntas.
Outra pedra zuniu.
Outro vidro estilhaçado. Cacos por todos os lados. Não restavam muitos.
Levantou seu corpanzil da poltrona e foi junto à lareira. Num canto, apanhou o rifle de caça.
- Corram! - ouviu-se o grito de uns garotos do lado de fora. - Vai atirar na gente!
Retornou calmamente para a velha poltrona.
E, assim, o Barão de La Croix, do fundo do cano de seu rifle, finalmente, encontrou num lampejo a escuridão de suas respostas.



O Noroeste do Canadá, da fronteira do Círculo Ártico até as latitudes mais setentrionais era uma região rica em lendas e mistérios. Desde tempos remotos, seus primeiros habitantes - o povo genuíno - sabiam disso, respeitavam suas terras, as rigorosas regras que estas impunham, suas divindades e os espíritos dos animais que abatiam. Praticavam a generosidade e a benevolência. Amavam a brancura da neve e veneravam a grandiosa beleza das Luzes do Norte.
Agora, seus mitos foram enriquecidos, senão parcialmente apaziguados. De alguma forma, eles sabiam e apontavam: ao menos por lá, naquele lugar, os tuurngait transformaram-se em anirniit, e um pedaço do céu descera das estrelas até o vale.
Aquela estranha floresta tornara-se um fragmento do Quidlivun.
O medo se fora em sua maior parte, porém, nunca completamente. E quanto ao respeito, este sempre haveria de existir. Tarqeq, Sedna e Sila apreciavam isso e recompensavam as pessoas através de um bom clima, boas caçadas e uma pescaria farta.
O silêncio continuou.
O nevoeiro prosseguiu.
A penumbra fazia morada.
E, por muitos anos, ao redor do fogo, tocaram-se os tambores de pele de leão-marinho.
E os anciões e xamãs cantarolaram, cantarolaram, cantarolaram.
Misto de narrativas, de lendas e de palavras mágicas.
E fizeram mímica. E dançaram. E falaram.
Crianças de olhos arregalados sob as cobertas de pele de urso e de caribu ouviram encantadas.
Sim e sim, durante muitos anos, haveriam de se lembrar:

"Ouçam essa história que vou-lhes contar.
"De um amor proibido, perdido no tempo.
"A respeito de um panda e uma guaxinim,
"Cuja paixão transformara-os em vento."

Ah! O vento era vigoroso, oriundo das Planícies Brancas no extremo norte.
E inspirá-lo fazia encher de vida o corpo e a alma.
Trazia uma alegria imensa por estar ali, naquele momento, naquele lugar...



NOTA DO AUTOR: Inspirada no encanto e na magia da história "Anoitecer", da escritora MBlannco, publicada na revista digital "Conexão Literatura" nº 36, Junho/2018 e editada por Ademir Pascale.
http://www.fabricadeebooks.com.br/conexao_literatura36.pdf
Meu agradecimento a Maya e a Nanuk...



BIOGRAFIA:
Nasci em São Paulo/SP em 01/02/1961 e sou neto de japoneses, por mais que o meu sobrenome pareça alemão, como já me disseram (na verdade, segundo lendas da família, o "C" foi um erro de interpretação no cartório de registro e acabou passando de pai para filho). Desde criança eu gostava de desenhar. O gosto pela escrita surgiu muito tempo depois.
De 20/04/1980 a 26/04/1981 tive algumas tirinhas amadoras publicadas na "Folhinha de S. Paulo".
Em 1987, publiquei de forma independente a coletânea "Pequenas Portas do Eu" (João Scortecci Editor, http://www.scortecci.com.br/home.php).
Pouco tempo depois tomei conhecimento do “Clube de Leitores de Ficção Científica” (CLFC, http://www.clfc.com.br/), idealizado por Roberto César do Nascimento, que reunia admiradores do gênero e editava o fanzine “Somnium”. Neste, dei continuidade ao exercício da escrita, colaborando com algumas histórias e, também, ilustrações. Posteriormente, tive conhecimento de outros fanzines, nacionais e estrangeiros, com os quais contribui.
Em 1990, fui contemplado com o "Prêmio Jerônymo Monteiro", promovido pela "Isaac Asimov Magazine" (Ed. Record, http://www.record.com.br), com a história "Como a Neve de Maio", publicada em seu nº 12.
Em 1993, participei da antologia "Tríplice Universo" (Ed. GRD) com a noveleta "Os Fantasmas de Vênus", a qual teve uma versão digital pela Virtualbooks (http://virtualbooks.com.br/v2/capa/) em 2005.
Em 1995, "Como a Neve de Maio" teve sua estréia digital no nº 7 da revista em CD-Rom "Neo Interativa" (http://www.dialdata.com.br/neo).
Entre 2000 e 2005 várias de minhas histórias foram divulgadas pela já citada Virtualbooks, cujos links, infelizmente, não se encontram mais ativos.
Após isso, houve um longo hiato.
Em 2013, lancei a coletânea "Limbographia", e, em 2014, o romance "O Olhar de Hirosaki", ambos através do Clube de Autores (https://www.clubedeautores.com.br/) e da agBook (https://www.agbook.com.br/). "Os Fantasmas de Vênus" teve uma edição de bolso (pocket) por meio destes, assim como outras histórias.
A partir de 2014 tive contos e desenhos publicados no blog "Marcianos como no cinema" (http://marcianoscomonocinema.blogspot.com/), de Herman Schmitz, e no site Efuturo (https://www.efuturo.com.br/sala_leitura.php?id=671).
Em 2018, fui um dos contemplados no concurso de contos "Os Viajantes do Tempo", patrocinado pela revista digital "Conexão Literatura" (http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/), de Ademir Pascale, com a história "Abismo do Tempo", publicada em sua edição nº 37, de julho de 2018. A partir de então, tornei-me um colaborador regular da revista.
Atualmente, "Os Fantasmas de Vênus", "Limbographia" e "O Olhar de Hirosaki" estão também disponíveis pela Amazon.

OBS: Maiores informações sobre o meus trabalhos: Google, Amazon, Wattpad ou nos links abaixo:
https://www.amazon.com.br/s?k=roberto+schima&__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&ref=nb_sb_noss
https://www.clubedeautores.com.br/authors/97551
https://www.agbook.com.br/authors/97551
http://www.revistaconexaoliteratura.com.br/p/edicoes.html
http://marcianoscomonocinema.blogspot.com.br/search/label/Roberto%20Schima.Wey1sltSzIV
http://www.efuturo.com.br/pagina_textos_autor.php?id=671
Contato: rschima@bol.com.br ou rschima@ig.com.br