A NUVEM E O VENTO
A NUVEM E O VENTO
Roberto Schima
Essa história não tinha necessariamente um princípio ou um fim. Formava um círculo feito um cão serelepe a correr atrás da própria cauda. Ou seria um ciclo como as estações do ano? Sim... Feito de uma infinidade de ciclos, qual o mundo a girar e a girar suas incontáveis voltas, enriquecido ao longo do tempo por sua miríade de histórias.
E, então, sem rodeios...
Havia uma nuvem no céu - a Nuvem -, e ela era branca, grande, fofa feito um chumaço de algodão.
Flutuava lentamente, quase imóvel, entre outras tantas nuvens, sobre o fundo azul do céu de verão.
A bem da verdade, era uma Nuvem como outra qualquer, a qual ninguém daria maior importância, exceto, talvez, aquelas pessoas aéreas que, deitadas nos gramados, pensamentos longínquos, buscavam enxergar formas animais ou outras quaisquer em seus contornos.
Sim, era uma Nuvem qualquer, comum... Exceto, porém, por um pequenino e quase imperceptível detalhe: ela pensava.
Uma Nuvem que pensa?
Sim, ela pensava. Pensamentos nimbus, cumulus, cirrus ou stratus.
Como alguém em terra poderia saber disso, não é verdade? Como poderiam sequer imaginar?
Os pensamentos dela eram diferentes dos pensamentos humanos. Não tinham uma lógica, uma linha reta a seguir. Não possuíam um começo, um meio e um fim.
Não eram algo do tipo: "Penso, logo existo."
Seriam mais como: "Penso que penso."
Eram pensamentos de Nuvem!
O tempo não existia para ela.
Havia um caos plácido e aéreo nas suas tortas linhas de raciocínio. E a vida daquela Nuvem resumia-se a saborear a brisa, o calor do Sol, o frio das alturas, o arrepio dos cristais de gelo, a paisagem distante e misteriosa mais abaixo. Para ela, na maior parte das vezes, era o chão que se movia, e não o contrário.
- Aonde vocês vão? - gritava, inocente, com sua voz de Nuvem para as árvores lá embaixo. - Esperem!
Era uma voz delicada, tênue feito um bafejar sobre o vidro da janela em uma manhã fria.
As perpectivas mudavam conforme o observador. Ou, como diria um certo humano avoado sem voar, tudo era relativo.
Ela imaginou se a vida resumir-se-ia nisso: existir, contemplar, flutuar e, por fim, desaparecer.
Ah, mas também dentro de sua mente - a mente de Nuvem -, ela tinha a intuição de que se movia ou, de que, pelos menos, as outras nuvens o faziam. Senão, de que maneira poderiam aproximar-se ou afastar-se umas das outras, não é verdade? Porém, como essa mágica se realizava, era um completo mistério, principalmente por ser alheio à sua vontade. E isso também a deixava confusa. Como se precisasse de muita coisa para confundi-la, pobrezinha.
Tentara em vão comunicar-se com suas semelhantes, porém, ou eram muito orgulhosas, ou não compreendiam bem o seu idioma.
- Tudo bem aí? Viram só aqueles pássaros, que majestosos? O dia está maravilhoso, não está? Vocês sabem dançar? Brincar de esconde-esconde? De onde vieram? Para onde vão?
Nada. No máximo, o resmungar de um trovão.
Seriam nuvens estrangeiras?
Seriam surdas?
Coitadas!
Acabou por concluir, com o passar do tempo - por mais falta de noção que tivesse deste -, ser ela única entre as nuvens. E o fez sem arrogância ou vaidade. Uma Nuvem que pensava e falava. E, se ela era a única, que vida teria?
E, passado mais e mais tempo, a Nuvem sentiu-se triste por não ter com quem se comunicar. Conheceu a solidão. Nesse dia, ficou toda amuada, cinzenta e uma suave cortina de lágrimas derramou-se sobre a terra. Encheu o ar de melancólica umidade; e as plantas lá embaixo, sem a Nuvem o saber, de felicidade.
Todavia, eventualmente, tudo desaparecia, nem que fosse por alguns instantes. Até a tristeza.
Então, certo dia, procurando não pensar em sua solidão, admirando a paisagem a desenrolar-se lá embaixo - retalhos de bosques e vacas leiteiras -, surgiu alguém. "Surgir" era mais uma força de expressão. Ela mais sentiu do que viu. Chegou de forma inesperada e atrevida, levantando-lhe fiapos na parte de baixo. Assustou-se.
- Quem está aí? - perguntou naquela voz frágil de Nuvem.
Sentiu algo de novo, agora dos lados.
Pequenos redemoinhos se formaram.
E repentinamente:
- Ah, você fala! - disse uma voz.
Ela gritou, assustada:
- Quem é você?
Sentiu-se aturdida, um misto de temor, expectativa e alegria.
- Quem é? - repetiu.
Arrepiou-se toda por dentro.
E, estranhamente, como se viesse do interior de si própria, ouviu a resposta.
E ela era um sussurro, um soprar insinuante, um suspiro:
- Eu? Ora, eu sou o Vento...
- Vento... - repetiu ela feito um eco.
E o Vento veio suave, feito uma brisa matutina, porém, sua natureza impetuosa logo o fez tornar-se uma rajada mais forte. E, assim, arrastou a Nuvem para longe de suas companheiras surdas e mudas. E ele prosseguiu, envolvendo-a de todos os lados, por cima, por baixo, através dela.
- Pare com isso! - protestou a Nuvem. - Quem você pensa que eu sou?
E tudo o que ela pôde ouvir foi o seu riso. Parecia vir de toda parte.
A Nuvem ficou contrariada.
- Do que é que está rindo?
Era frustrante não poder vê-lo, exceto pelos rastros que deixava no tecido diáfano do corpo dela, a Nuvem.
E ele respondeu de parte alguma e de toda parte com sua voz assoprante de Vento:
- Eu estou rindo porque estou feliz. Muito feliz! Não imaginei encontrar alguém como você. Estive em todos os cantos e recantos do mundo: através da mata, das frestas das janelas, nas altas montanhas, nos campanários... Nunca tive uma resposta. Os outros ventos, quando muito, só sabiam uivar e nada mais. Não prestavam atenção em mim. Eu achava que era o único no mundo. Eu, o Vento...
- E eu também! - Ela completou, indiferente ao significado de palavras como "mata", "janelas", "montanhas", "campanários". Haveria tempo para desvendar esses mistérios. - Eu... a Nuvem.
E sob o azul do céu de verão, o Vento envolveu-a em todas as direções, ora delicado, ora maroto, ora faceiro, ora atrevido.
E conversaram sobre muitas coisas, cada qual contando sobre suas viagens. A Nuvem ficou surpresa por saber que era somente ela que se movia, e não o chão e, se ela conseguia se mover, era por causa de outros ventos a carregá-la. No máximo, ela acreditava que fazia isso por conta própria ou por força do acaso, embora não tivesse domínio sobre onde ou quando ir.
- Você não percebia isso porque os outros ventos são te contaram. São mudos...
- ... mudos como as outras nuvens - completou ela.
- Mudos, surdos e, eu acho, cegos também.
E riram juntos.
Então, como não poderia deixar de ser a um espírito leve e livre, a Nuvem apaixonou-se pelo Vento.
Queria estar sempre junto dele fosse dia ou noite, ser tocada por ele. Queria que ele, com sua força, a levasse para conhecer diferentes paragens e paisagens, como aquelas das histórias que ele narrava. E explicasse o que eram as florestas, as colinas, portas, janelas e campanários.
E o Vento falou e falou, contou tudo o quanto sabia ou poderia saber.
E a Nuvem ouviu e absorveu tudo na sua ansiedade infantil pelo conhecimento. Se tivesse olhos, estariam arregalados. Contudo, tudo o que podia fazer era entremear os relatos do Vento com suas interjeições admiradas.
Com o passar do tempo, porém, por mais feliz que se sentisse, o Vento deu-se conta de não poder mais viajar aos mesmos lugares que ia antes, nem com a mesma velocidade ou liberdade. Estava preso à ela, a Nuvem. E seu espírito, tão frágil e volúvel quanto sua própria composição, não teve coragem de contar-lhe isso.
Então, numa certa manhã, com os raios do Sol a tingir de rubro o horizonte, o Vento foi embora sem dizer palavra. E isso foi o pior de tudo: devolver com silêncio os doces chamados, transformados em súplicas da Nuvem. Nem um uivo sequer entre as folhagens foi ouvido como resposta, nem um sussurro. Nada.
A Nuvem ficou inconsolável.
- Vento!
Tanto tempo achara ser ela a única, condenada a solidão perpétua.
- Vento!
Tanto tempo sua voz soara sem encontrar eco, sem o calor de uma companhia.
- Vento!
Então, quanto descobrira finalmente alguém, nem que fosse alguém invisível, um companheiro, um amigo, alguém a quem se apaixonar, ele partira subitamente sem mais nem menos, ciente da incapacidade dela em segui-lo. Sem uma explicação. Sem uma despedida. Nada.
- Vento! - gritou ela muitas e muitas vezes. - Vento!
De nada adiantou a companhia muda de outras nuvens ou de outros ventos. De tão triste, ela chorou, chorou e chorou.
Choveu copiosamente sobre a terra por dias seguidos.
Durante a noite era pior: era fria, escura e vazia. Do jeito que a Nuvem se sentia.
Em terra, as pessoas não compreenderam, pois o aguaceiro provinha apenas de uma nuvem isolada no céu, parada lá no alto, cada vez menor, menor e menor.
Houve alagamentos.
Rios transbordaram.
Morros deslizaram.
E ela chorava e chorava.
E, simultaneamente, minguava e minguava.
Parecia não haver conforto para a sua tristeza. Nada tinha o poder de consolá-la.
- Vento...
E ela, por fim, compreendeu o significado do tempo. E o quanto poderia ser longo.
A Nuvem foi diminuindo gradualmente, diminuindo, diminuindo... Até, um dia, desaparecer por completo, toda ela convertida em pranto.
Ninguém se deu conta disso.
Nenhum vento soprou.
Nenhuma nuvem lamentou.
A história poderia terminar aí, melancólica, trágica e triste.
Porém, quis o destino - ou uma força maior - ter ela um final mais generoso.
A Nuvem, agora transformada em Água, correu pela terra que, até então, só conhecera a distância. Percorreu valas, canais subterrâneos, córregos e rios. Não havia um minuto de descanso. Mal dava-lhe a oportunidade para pensar, para remoer a sua amargura. Novos e novos cenários surgiam a cada instante. Sempre uma novidade a cada declive mais ou menos íngreme. Gritou de espanto ao ver-se transformada em cachoeira. Sua mente, ainda diferente e sem lógica, mente de Água, mais densa e molhada, não conseguia acompanhar.
E ela seguiu as trilhas dos rios e lençóis freáticos até um dia, finalmente, desaguar no Mar.
Sentiu-se estranha.
Dissolvida.
Diluída.
- Olá - ela ouviu a voz. Era estranha, não parecia vir de um lugar específico, mas de toda parte, até de dentro dela, como o Vento fizera, e, ainda assim, diferente, mais entrelaçada.
- Que-quem é você? - perguntou temerosa.
Houve um instante de silêncio molhado.
Por fim:
- Eu sou o Oceano.
- Oceano?
- Sim. Eu estou em você. E você está em mim.
Espantada, viu os peixes nadarem dentro dela.
- Como é possível?
- O que é impossível?
- Mas eu nunca o ouvi?
- Você estava longe demais no céu. Distante demais para ouvir e ser ouvida. Nós sabíamos de sua existência. Sentíamos. Entretanto, nada podíamos fazer... Até agora.
O Oceano recebeu-a como a uma igual.
Agora, ela podia movimentar-se a vontade, por sua vontade, pois fazia parte das correntes marítimas. E era uma só com o Oceano, como jamais fora com qualquer outra nuvem e, sequer, com o ingrato Vento.
A paixão voltou a acender no coração da Nuvem, agora chamada Água. E ela e o Oceano, que já eram um só fisicamente, tornaram-se um também em espírito. Juntos, percorreram todos recantos do mundo como ela jamais sonhara ser possível. E pôde, finalmente, ser feliz.
Quanto ao Vento, continuou a percorrer os céus do mundo do modo que queria: livre, sem destino, mas, agora e tardiamente, ele compreendia: só. Para sempre só. Nenhuma outra nuvem representou algo para ele como ela, a Nuvem. Arrependido, chamou e chamou por ela, todavia, nunca mais obteve resposta.
Seu vôo livre passou a ser acompanhado sempre por um lamento. Seu uivar grassou melancólico por entre os ramos das florestas sombrias e as frestas das janelas nas casas abandonadas. Era especialmente audível nas noites frias e chuvosas de outono, quando as pessoas, no aconchego de suas casas, envolviam-se mais em seus cobertores o abraçavam-se para espantar temores antigos.
E lá ia o Vento.
Sempre e sempre procurando, sem jamais encontrar.
Pois ele era o Vento, que jamais teria um lugar.
E ela era a Nuvem que encontrara o seu Lar.
Essa história, sem necessariamente um princípio ou um fim, continuou a girar e a girar feito o ciclo das estações do ano. Uma infinidade de ciclos, qual o mundo a girar e a girar suas incontáveis voltas, enriquecido ao longo do tempo por sua miríade de histórias.
Quem sabe, algum dia, alguém as haveria de escutar?
BIOGRAFIA:
Sou neto de japoneses. Nasci na cidade de São Paulo em 01/02/1961, o que agora me parece muito distante. Passei a infância imerso nos anos 60, período de várias transformações. Tive a felicidade de sentir o clima de entusiasmo em relação a Conquista do Espaço que hoje não existe mais - não obstante a Guerra Fria. Fui o vencedor do Prêmio Jerônymo Monteiro, promovido pela Isaac Asimov Magazine (Ed. Record), com a história Como a Neve de Maio, publicada em seu nº 12. Escrevi a história Abismo do Tempo, uma das contempladas do concurso Os Viajantes do Tempo, promovido pela revista digital Conexão Literatura, de Ademir Pascale, e publicada em sua edição nº 37, de Julho de 2018. Desde então, tornei-me um colaborador regular da revista. Escrevi os livros Limbographia (contos), O Olhar de Hirosaki (romance), Os Fantasmas de Vênus (noveleta), Sob as Folhas do Ocaso (contos) etc.
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