BATATAS EM MARTE - Crônica escrita em 2015
Após duas horas de filme, fiquei pensando nos sonhadores que entraram na fila para viajar só de ida ao planeta Marte. Quem é um desses e assistiu “Perdido em Marte” de Ridley Scott, e é claro que assistiu, deve ter saído do cinema em êxtase.
Afinal, que humano não seria capaz de fazer o que Mark Watney (Matt Damon) fez? Plantar e comer só batatas fertilizadas com o próprio cocô. No escuro do cinema isso pareceu ser a maior das molezas. Muitos não conseguiriam imitá-lo fazendo o mesmo aqui na Terra.
Entre “2001 – Uma Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick e “Perdido em Marte” de Ridley Scott, o segundo é mais humanizado e plausível. Só que, como sabemos a realidade não permite utopias. Realisticamente os dois são inatingíveis.
A começar pela sorte de Mark Watney em sobreviver ao desastre. Aqui na Terra existe um ditado para quem tem muita sorte. Dizemos que nasceu com a bunda virada para a lua. Mark Watney literalmente nasceu com a bunda virada para Marte.
A sorte dele pode ser elevada ao cubo. Qualquer outro material que perfurasse o traje espacial provocaria sua morte. Na sequência, operando-se de emergência vemos que mesmo em Marte os grampeadores podem ter outras utilidades.
E não apenas os grampeadores. Em sã consciência e longe da ficção, é impossível imaginar um astronauta em solo marciano usando esparadrapos, para conter a despressurização depois que o capacete trincou. Fita crepe adesiva na porta de um abrigo. Ou salvar-se substituindo o bico do módulo de voo por um plástico amarrado.
E se para qualquer planeta os plantadores de batatas são essenciais, os gênios também são. Infelizmente já na saída do cinema poucos se lembrarão do gênio responsável por trazer Mark Watney para casa. Na internet é preciso fazer uma pesquisa minuciosa do elenco para descobri-lo. Fica a pergunta que não quer calar.
O gênio ganharia maior evidência se fosse loiro, e tivesse olhos azuis? Após algumas tentativas fracassadas de resgate o “negro” Rich Purnell, personagem de Donald Glover descobre uma maneira eficaz. No fim, ele prefere apenas observar a festa por uma porta entreaberta. Ninguém estava comemorando sua genialidade.
Na ficção, a NASA possui tecnologia para levar ou resgatar um astronauta em Marte. Na realidade, a OTAN não detectou um avião americano que bombardeou um hospital repleto de pacientes durante quarenta e cinco minutos, em Kunduz no Afeganistão.
Ninguém precisa ir a Marte para “morrer por algo grande e bonito”. Os médicos “sem fronteiras” sabem disso. Eles vivem no planeta Terra, e sem efeitos especiais.