Efuturo: CHUVAS NO JARDIM-BOTÂNICO

CHUVAS NO JARDIM-BOTÂNICO

Antônio, um jornalista em fim de carreira também olha a chuva. Não sabe porque tomara o ônibus antes da chuva... talvez porque saíra perturbado da diligência em São Paulo naquela semana. E não sabe também porque estava naquela sala de audiência quando chegou preso, o chefe de uma torcida do time do Palmeiras acusado da morte de um corintiano.
Antônio lembrou o motivo da tal prisão, o tal chefe palmeirense e outros colegas, na sede de sua torcida organizada, teriam tentado alterar a idolatria alheia e convencer torcedor de time diferente a mudar a torcida através da tortura por afogamento. Pensaram que, se afogassem bem, usando uma banheira cheia de água e saco plástico na cabeça, o torturado uma hora se convenceria de que alguma entidade o levara para o time errado, para a torcida errada, devendo então se declarar um novo palmeirense, surgindo também todo o processo como um modo de dimensionamento da glória do Verdão.
- Para quem você torce?
- Eu sou torcedor do Palmeiras, do Porco! Agora eu sou!
Após estas declaração golpeavam bem o experimento e quando o soltavam, já palmeirense redimido. Achavam que dali para frente, aos poucos, a tortura faria realmente efeito e o torturado um dia andaria pelo centro da cidade e se pegaria torcendo pelo Palmeiras porque afinal, o Verdão o livrara da morte e de consequências terríveis para a sua família.
As conversões pareceram funcionar durante certo tempo. Mas a tal confraria encontrou enfim o corintiano fanático, um adolescente de 17 anos, pertencente a outra pequena torcida organizada e durante 50 horas tentaram mudar a opinião do infeliz. Fizeram até rodízio de turma para o afogamento e o animal não mudava. Depois destas horas, desistiram e declararam que aquele não torceria para o Palmeiras, o tratamento fora inútil e, sendo assim o bicho não era bem vindo naquele ambiente sagrado (principalmente ali, onde uma semana antes havia ocorrido uma suruba sem camisinha com torcedoras palmeirenses e alguma coisa ficara no ar) sendo melhor matar o sujeito, porque corintianos (Um corintiano!) não poderiam respirar ali.
O corpo esfaqueado foi encontrado por um vigia três dias depois no Parque do Estado.
Antônio olhava a chuva e se lembrava da respiração do Delegado que, aliás, era torcedor do Palmeiras, e recebera preso o chefe daquela torcida em sua Delegacia. O torcedor algemado sentou-se em uma cadeira, parecia ter 25 anos, tinha pele branca, o lábio inferior muito saltado e um olhar que passava a ideia de estarmos diante de um cego, um cego esnobe. O delegado examinou o assassino, perguntou aos investigadores se aquele era o principal, o chefe do bando. A turma confirmou a procedência; o Delegado olhou para baixo em frente à cadeira e pediu uma foto da vítima. Antônio lembra bem do diálogo:
-Você tem pai, rapaz?
- Tenho!
- Mãe não tem?
- Tenho!
- Olha pra foto do sujeito que você matou!
- E daí?
- Eu pedi pra olhar a foto! – disse o delegado em um tom mais ríspido.
O bandido olhou ou fingiu olhar. O Delegado prosseguiu.
- Não percebe nada neste menino?
O palmeirense respondeu, já me acuado:
- Tem dois olhos!
- Descreve a vítima pra mim! – disse o Delegado ainda em tom ríspido.
- Dois olhos...
- Repara no rosto!
- Dois olhos, boca, nariz, cabelo...
- Que mais?
- Dois olhos, boca, nariz, cabelo... orelha...
- Não te ensinaram nada na escola?
- Dois olhos, boca, nariz, cabelo... orelha, pescoço, um saco...
- Não, filho da puta... Você quis tanto matar por causa do teu time e nem reparou...
- Fico pensando em meu filho... - disse o delegado para os investigadores.
Ninguém respondeu e o delegado continuou o interrogatório:
- Você não percebeu...a vítima tinha Síndrome de Down?
O chefe da torcida arregalou os olhos.
O Delegado, que deveria ter um filho ou filha com Síndrome de Dow, virou-se para o lado esquerdo, tossiu duas vezes, respirou fundo novamente e, de súbito, deu um tapa tão forte na cara do assassino, que o preso caiu da cadeira, bateu a cabeça na parede e soltou um gemido de dor semelhante a um arroto.
- Levem este imbecil daqui!

Antônio, um jornalista de rosto muito branco, estranho para quem mora no Rio de Janeiro e ali, no meio da chuva, lembra da cena e pensa em rezar. Pensa em pedir ao motorista em ligar a luz de emergência ou ligar um rádio se houvesse. Ouviria no rádio do motorista a notícia da queda de uma ponte na Barra da Tijuca.

Algo em sua vida lhe ordena, se tivesse filhos afastaria os seus filhos de ambientes onde a vida não vale nada. Mas afinal quais os ambientes certos? Uma partida de futebol... a sede de uma torcida uniformizada? Matar por causa de time de futebol não estão nas regras... Antônio sentiu vontade de chorar, de rezar, começou apenas a cantar bem baixinho o hino do Fluminense, do Flamengo, do Vasco da Gama... tão lindos...tão lindos quanto do Botafogo.