Cadê o córrego do Gallo na vila Gallo?
O título deste artigo não é nenhuma brincadeira, é sério. Havia um córrego do Gallo na vila Gallo no município de Americana/SP. É Gallo com dois eles mesmo. Não se trata do macho das galinhas, que se escreve com um ele só, aquela ave que canta no alvorecer de cada dia. Este Gallo que é grafado como o meu sobrenome significa gaulês (originário da Gália). Pelo jeito, sou um descendente de Asterix e de Obelix, como todos os demais cidadãos portadores do mesmo sobrenome. Não importância alguma tal constatação, nada me acrescenta e nem aos outros Gallos.
Os americanenses mais novos talvez nem imaginem onde se localiza o córrego em questão, mas, com certeza sabem onde fica a Avenida Prefeito Abdo Najar. O córrego fica em baixo dessa avenida. A nascente e todo o córrego estão soterrados. Estranho? Não, nem um pouco. Era e ainda é, em muitos lugares, uma prática comum a canalização de córregos. Trata-se de um atentado à natureza, um dos muitos atentados praticados contra ela no meio urbano. Ali, na avenida, deveria correr um regato com a sua mata ciliar, o que poderia ser uma bela imagem do ponto de vista paisagístico e as cidades carecem de áreas verdes e de belas paisagens para suavizarem a brutalidade da selva de concreto, Americana não foge ao caso.
O cronista carioca Stanislaw Ponte Preta escreveu a obra Febeapá (Festival de besteiras que assola o país), que foi muito lida nos anos setenta, nos tempos da minha adolescência, parte dela vivida nos anos de chumbo da ditadura militar. Toda cidade precisaria de um Stanislaw Ponte Preta para registrar as besteiras praticadas pela gestão municipal, com o apoio e o aplauso de muitos munícipes, é claro... A canalização dos córregos está no rol das besteiras de muitas cidades. O município de São Paulo é o campeão nesse tipo de asneira. Quem sabe que o Vale do Anhangabaú em São Paulo era o vale do rio Anhangabaú? Sobre esse rio passa uma larga avenida. Essa situação se repete em muitas cidades do Brasil. Não se trata, todavia, de uma exclusividade brasileira; muitos outros países também necessitam de cronistas que registrem os seus respectivos febeapás.
Por que se canalizaram os córregos? Por dois motivos: 1) com o asfaltamento das ruas, as águas das chuvas corriam rapidamente para os córregos e acabavam provocando inundações e; 2) o despejo do esgoto in natura nos corpos d&039;água provocavam mal cheiro na vizinhança dos ribeirões, também se alegava questões de saúde pública. São duas saídas bem complicadas. As canalizações dificilmente resolvem as inundações, pois a melhor forma de combatê-las é a pela existência de solo descoberto ou, melhor, coberto apenas com vegetação, em abundância, para possibilitar a infiltração das águas no subsolo. Mas, onde fica a especulação imobiliária, que disputa cada palmo de chão para transformá-lo em dinheiro? Por sua vez, a melhor forma de eliminar o mal cheiro do esgoto e os possíveis riscos à saúde é pelo seu tratamento, desconheço outra. Em relação ao córrego do Gallo, parece-me que os dois argumentos foram usados à época. Em todas as cidades os argumentos são os mesmos.
Hoje, vários países já estão fazendo um tipo de engenharia reversa, estão descobrindo os rios canalizados, retirando sua capas de concreto, mas, no Brasil, isso ainda está longe de acontecer, quiçá um dia... As cidades cresceram em confronto com a natureza e poucas, muito poucas, respeitaram o meio ambiente no seu processo de expansão. Entretanto, esta é uma visão de hoje, pois até poucos anos atrás as questões ambientais não eram colocadas na ordem do dia, pois o que contava era o progresso, cantado em verso e prosa, e tudo que se colocasse contra ele era visto como atraso, como antiquado.
Hoje, passando pela Avenida Abdo Najar, que já está toda tomada por construções, parece difícil reverter a situação, talvez impossível. Registro este libelo com dois objetivos: 1) como advertência para outros futuros febeapás e; 2) como protesto pelo confinamento do ribeirão que homenageia a imensa família Gallo de Americana, parece-me que esta é a origem do seu nome, assim como do bairro.