O fast food nosso de cada dia
Na minha infância e na minha adolescência, nos anos sessenta e setenta, na cidade de Americana, no Estado de São Paulo, não existia a abundância de fast foods que agora vejo. Havia algumas lanchonetes, as quais frequentávamos esporadicamente. O hábito de comer fora rotineiramente não era tão comum como agora, por isso não havia também a abundância de restaurantes e pizzarias da atualidade. Comer fora deixou de ser um luxo ao qual nos permitíamos vez ou outra e, agora, rotinizou-se.
Quando jovem, nos meus tempos de colegial, eu tinha uma rotina diária como muitos outros. Trabalhava o durante o dia, estudava à noite e fazia as refeições em casa. Muitos outros levavam marmitas ao trabalho, isso também era muito comum. Poucas empresas tinham restaurantes industriais naquela época. A nossa dieta baseava-se na alimentação caseira. Nos fins de semana, quando saíamos, às vezes, pelo menos no meu caso, íamos a uma lanchonete comer sanduíches ou pizzas, acompanhados de refrigerantes, na maioria das vezes. Nem o consumo de refrigerantes era tão rotineiro naqueles tempos como é agora.
O Bié Lanches, que ficava na rua Fernando Camargo, no centro da cidade foi uma referência importante, pois era bastante criativo na produção de lanches; se não me engano foi ele quem deu vida ao Lobo Mau, um lanche de tamanho grande, o nome cabia-lhe perfeitamente. Também existiam alguns bares onde se podia comer baurus, como o Bar Casa Verde, Bar da Escada, Bar do Crespo, Bar do Filiputti, Bar Bacan, entre vários outros. Os hambúrgueres foram chegando aos poucos nas lanchonetes, não eram tão comuns.
Não havia os trailers e os carrinhos de cachorros quentes e hambúrgueres, que fazem parte da paisagem urbana da atualidade. Lembro-me que o primeiro trailer de lanches, acredito que tenha sido o primeiro, foi o Baitakão, que estacionou na região central da cidade, próximo de onde funcionava o supermercado Batajão, e que fazia um cachorro quente enorme e cheio de recheio, conhecido como Baitakão, é óbvio. Foi a grande novidade em termos de fast food nos anos setenta em Americana.
São lembranças que considero agradáveis. Não pretendo ficar recordando o meu passado gastronômico, mas quero introduzir aqui uma reflexão sobre o fast food dos nossos dias enquanto incentivador de formas de consumo predatórias do ponto de vista ambiental e também da saúde.
A alimentação rápida dos dias de hoje nos chegou como imitação dos Estados Unidos e rapidamente foi ocupando espaço no meio urbano. Não dá para precisar muito a data em que isso, que era marginal, começou a ganhar corpo. Podemos localizar tal fenômeno mais ou menos a partir do final segunda metade dos anos setenta, com uma aceleração a partir dos anos oitenta e noventa. Nesse período aconteceram alguns eventos que podem ter contribuído: introdução do forno de micro-ondas; expansão rápida dos salgadinhos de saquinhos, tipo chips; crescimento do setor de alimentos congelados e; crescimento contínuo e firme da alimentação fora de casa.
No quesito crescimento da alimentação fora de casa podemos localizar duas situações que têm um caráter positivo: o surgimento de restaurantes do tipo self service, que dão ao cliente a possibilidade de escolha, de montar o seu próprio prato, e a expansão dos restaurantes que fornecem os chamados pratos feitos, que pretendem ser o mais completos possíveis do ponto de vista nutricional. Também ocorreu a expansão das lanchonetes, das pizzarias e dos carrinhos e trailers de lanches. Neste último caso o problema está mais na constância do uso que cada consumidor faz desses serviços de alimentação.
Vamos por partes, analisando em primeiro lugar a introdução do micro ondas e dos congelados, ambos são irmãos siameses. Com os congelados diminuiu-se o tempo de cocção dos alimentos, mas se aumentou, em contrapartida, o consumo de massas, como as lasanhas, por exemplo, em detrimento do nosso tradicional arroz com feijão. O abuso das massas, já é sabido, pode fazer mal à saúde. Digamos que o problema está na constância do uso. Do ponto de vista ambiental, com a expansão do fast food doméstico, tivemos o aumento da produção de resíduos sólidos, no caso as embalagens descartáveis. Aquele hábito antigo, que veio com os italianos, de consumir massas nos fins de semana, as famosas macarronadas, estendeu-se para os outros dias da semana. Haja calorias!
A expansão dos salgadinhos de saquinhos, os chips, por sua vez, é mais complicada. É difícil entendê-los como alimentos, inclusive, dada a sua artificialidade. Gorduras saturadas e excesso de sal caracterizam muitos deles. As embalagens, por sua vez, são do tipo totalmente descartáveis, impedindo a reciclagem, o que do ponto de vista ambiental é por demais incorreto. Os apelos publicitários desses produtos são minimamente desonestos, pois atingem em cheio o público infantil. A introdução de brindes dentro dos saquinhos é um forte chamariz para essa fatia do mercado. Lembram-se dos tazos, aqueles disquinhos colecionáveis que se tornaram verdadeira febre nos anos noventa? Os brindes contribuíram para introduzir o hábito de consumir isso que a indústria teima em chamar de alimento. São alimentos perniciosos do ponto de vista da saúde e do meio ambiente. Muitos os chamam de salgadinho de isopor, não é por simples acaso.
A expansão do setor de lanches rápidos e das pizzarias pode apresentar riscos a partir da constância do consumo por cada cliente. Ocorre que muitas famílias acabaram perdendo o controle do espaço temporal entre um consumo e outro, principalmente em relação às crianças. O apelo das pizzas, dos lanches e das frituras acaba atingindo mais o público infantil, que não tem informações e maturidade suficientes para estabelecer críticas ao que está consumindo. Muitas vezes, em relação a esses alimentos, acontece um forte embate entre pais e filhos. Se o meu amigo pode, por que eu não? É uma questão difícil para pais e educadores. Como dosar o consumo dessas saborosas guloseimas? Além de tudo isso, tem um agravante: junto com as pizzas, os salgados e os lanches, vêm os refrigerantes, que aumentam o consumo de açúcar.
Em relação aos lanches rápidos, nas cidades médias e grandes, a situação ganhou um complicador nos tempos atuais: a entrada de uma grande rede internacional de fast food, no caso o McDonalds. É o caso de Americana. A princípio ele se encaixaria na situação do tipo de alimento que se pode fazer uso esporádico. Até aí tudo bem. O problema está nos esforços que ele faz para aumentar o consumo dos seus produtos e para a fidelização da sua clientela. A principal vítima desses esforços é o público infantil, de novo... Além do excesso de embalagens (aquelas caixinhas chamativas pelas suas impressões coloridas), ele costuma oferecer brindes às crianças, como no caso dos chips. Além dos brindes, é comum nas lojas maiores da rede a presença de playgrounds para atrair as crianças. Assim, são criadas as condições para a produção excessiva de resíduos, que é incorreta do ponto de vista ambiental, e a possibilidade do surgimento de problemas de saúde, pelo excesso de consumo de um alimento pouco saudável.
Sobre o McDonalds, sugiro que vejam o filme Super Size Me - A Dieta do Palhaço. Ele se encontra disponível no Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=p5VGZVawW0c). Trata-se de um documentário de 2004, produzido, dirigido e protagonizado por Morgan Spurlock, um cineasta americano. No filme, Spurlock segue uma dieta de 30 dias onde apenas consome produtos da rede. Durante a gravação, ele comia nas lojas dessa rede três vezes ao dia, consumindo em média 5000 kcal por dia, um exagero, o equivalente a seis Big Macs.
Antes da sua experiência, Spurlock, comia uma dieta variada. Era saudável, magro, e, com 1,85 m de altura, pesava 84,1 kg. Trinta dias depois, aumentou o seu peso em 11,1 kg, saindo de uma faixa de peso considerada saudável para entrar numa situação de sobrepeso. Também experimentou mudanças de humor, disfunção sexual, e dano ao fígado. Depois das filmagens, ele precisou de quatorze meses para eliminar o peso adquirido.Três médicos que o consultaram ficaram surpresos com o elevado grau de deterioração da sua saúde. Um deles chegou a afirmar que era irreversível o dano causado ao seu fígado. Durante o período das filmagens, Spurlock comeu mais refeições no McDonalds do que um nutricionista recomendaria comer em oito anos. Isso significa que comer alimentos desse tipo só pode acontecer bem de vez em quando, conforme os nutricionistas.
O que motivou Spurlock a fazer a investigação, usando a si mesmo como cobaia, foi o crescimento da obesidade nos Estados Unidos, que chegou a ser considerada pela saúde pública americana como uma verdadeira epidemia. Também contribuiu para isso a demanda judicial contra o McDonalds em nome de duas meninas com sobrepeso, que alegaram que a obesidade era resultante do consumo de alimentos da rede. Parece que o consumo de comida rápida, do ponto de vista psicológico, pode ter um aspecto viciante; é algo a ser verificado.
O que está acontecendo nos Estados Unidos também está acontecendo no Brasil, a obesidade tem aumentado significativamente, com destaque para a obesidade infantil, com os malefícios que a acompanham, como a hipertensão e o diabetes mellitus. Trata-se de um problema de saúde pública. O melhor remédio para essa epidemia não é a cirurgia bariátrica, usada em casos extremos, mas a reeducação alimentar. Ela tem que se dar no seio da família, nas escolas, nas repartições de saúde e nos meios de comunicação, esses mesmos meios que propagam o tempo todo as delícias do fast food, não tem um caminho mais curto.
Apesar de tudo, o mundo não está definitivamente perdido. Tem muita gente atenta à questão da alimentação em todos os cantos do planeta. Trago aqui um ótimo exemplo. Em 1986 o jornalista italiano Carlo Petrini, com a ideia de promover a boa comida, fundou a organização Slow Food, cujo significado é comida lenta, em contraposição ao fast food, comida rápida. A ideia é aumentar o tempo gasto com a alimentação, com o objetivo de aumentar o prazer no ato de se alimentar, como nos velhos tempos, quando a família sentava-se à mesa, seguindo rituais antigos da comensalidade.
A filosofia da Slow Food (http://www.slowfoodbrasil.com/) resume-se em defender a informação ao consumidor, proteger as tradições alimentares, defender o cultivo e o processamento de alimentos herdados da boa tradição e defender espécies vegetais e animais, domésticas e selvagens. Para ela, o alimento deve ser bom, limpo e justo, o que significa: saboroso, nutritivo, respeitoso ao meio ambiente e com preços justos, tanto para os produtores como para os consumidores.
A rede de membros da Slow Food já reúne mais de 100 mil associados no mundo. Ela se organiza em grupos locais, que, periodicamente, organizam atividades como oficinas de educação alimentar, palestras, degustações, cursos, jantares e até turismo gastronômico. Ela costuma defender a produção e o consumo locais, o uso de alimentos da tradição e a compra direta dos produtores. Tudo isso pode tornar os alimentos mais baratos, pois encurta a cadeia produção/consumo, pela eliminação dos atravessadores. Além disso, a Slow Food questiona o custo ambiental dos alimentos produzidos em larga escala (agronegócio) e os impactos sobre a saúde do consumo de alimentos excessivamente processados pela indústria.
Reeducação alimentar é a palavra-chave do momento nutricional da humanidade. Lembro-me que na minhas infância e adolescência, a obesidade era bem pequena; uma ou outra pessoa era gorda e, no meio das crianças, era bem rara. O consumo eventual de lanches, pizzas e refrigerantes não produzia os estragos que o fast food produz hoje. A frequência esporádica, era esporádica mesmo, às lanchonetes e bares não produzia os estragos ora verificados. Além disso, não existiam os salgadinhos de isopor, as massas congeladas do fast food doméstico e a abundância de refrigerantes e outras bebidas pouco saudáveis. Saborear lanches no Bié e nos bares da época significava uma quebra de rotina, apenas uma quebra de rotina, não era a rotina. Essa quebra da rotina era agradável e não prejudicava a saúde, pois a sua esporadicidade garantia isso .
Bom apetite!