AMOR ATO SEIS
Um obstáculo e morreremos na ribeira perdida.
Há peixes no fluxo de águas sensíveis
e pedras coloridas mostram nossa garantia de vida:
sólidos brilhantes unidos à placidez dos corpos.
Nos beijamos dentro de labirintos árduos
mas tão discretos, esvaecidos, no amor não carnal.
Sua mão me acaricia, afaga o vazio do colchão
Somente desnudos em um presente incondicional.
Sou eu que prontamente te transponho,
seguro teus cabelos para trazer a vingança
do corpo que és e habita sorrateiro em sonho.
Encontro nossas marcas: teu sorriso,
minha mão trêmula que adivinha teu próximo gesto,
aquilo que não é sobra, apenas um sinal para o impreciso.
Marília ainda era estagiária em enfermagem quando um rapaz esfaqueado e inconsciente entrou na emergência do Hospital Santa Luzia em Fortaleza. O médico examinou a vítima, o corte fora aberto na altura do estômago; tomou alguns cuidados e pediu à Marília as seguintes providências: colocar a luva cirúrgica e introduzir lentamente a sua mão direita dentro do ferimento do rapaz. Marília, julgando iniciar algum tratamento, obedeceu ao homem, introduziu lentamente a sua mão no estômago da vítima, mas quando estava no meio do caminho, dentro do corte, ela sentiu, devagar, as últimas batidas do coração do paciente. Marília puxou a mão e gritou. Soltou um grito enorme e ouviu a risada do médico titular, por coincidência também o seu professor na Faculdade de Enfermagem.
O mestre ordenara a providência da introdução da mão no abdômen do rapaz esfaqueado, não como uma tentativa de salvação do paciente, já condenado, mas para Marília sair do estágio, tornar-se uma profissional enfermeira que conhece e sabe relativizar a hora da morte. Enfermeiras devem adquirir a noção do efêmero.
Marília também começou a chorar. Chorou muito, junto com os familiares do rapaz, que morreu logo depois. Marília chorou porque percebeu também: sua mão dentro dos restos mortais não tinha sido apenas uma aula prática. Marília se sentiu unida ao corpo do jovem e tudo - o ferimento, a luva cirúrgica, o coração do paciente, o coração de Marília - pareceu uma fileira de dominós em queda, retida ali entre seus dedos.
Marília lembrou deste fato como a ocorrência mais marcante de uma carreira de cinquenta anos. Tão marcante para confessar a sua única irmã:
- Eu nunca me casei, mas algo em mim continua tão ligado ao tal homem quanto naquele dia.
Grandes são as coincidências neste mundo. Sábado, dia 23, Marília faleceu por causa de uma úlcera.
Marília tinha setenta anos. Deixa uma irmã, também enfermeira, e um sobrinho.
Apenas a irmã entendeu o pretexto amoroso da úlcera de Marília.
DO LIVRO: "AMOR POR FORÇA DA LEMBRANÇA"