Dores ao crepúsculo
Eu nunca imaginei e nem havia ouvido falar naquele tipo de doença. Ela era dolorosa e intermitente. Ocorria comigo todos os dias ao anoitecer, mais intensamente quando eu estava sozinho. Quando acompanhado de alguém ou envolvido em alguma ação ou atividade, somente quando eu lembrasse sua existência. Eram dores agudas, viscerais, que sozinho deixavam-me abatido, melancólico, taciturno. Quando acompanhado, eu passava por um bom ator hollywoodiano: ninguém percebia que sofria intimamente.
Sentado num banco frio, dilapidado pela maresia e coberto por fina e imperceptível camada de sal e areia, eu observava sozinho o mar. As ondas que invadiam a areia da praia fazendo surgir uma enovelada camada de espuma muito alva. A paisagem marítima é paradisíaca e encantadora. Eu olhava para a linha do horizonte, onde o mar escuro e sereno encontrava-se com o céu azul. A proximidade com o fim da tarde levou-me a lembrar das dores. Elas eram uma das lembranças de Alice. Ela era uma mulher muito bonita, de cabelos ruivos naturalmente ondulados e sedosos, e um olhar cativante, sedutor. Eu, às vezes, nem podia acreditar que uma mulher tão bonita fosse capaz de se apaixonar por um homem como eu, de tez azeitonada, físico de um Apolo, e de origem pobre. Conhecemo-nos acidentalmente numa cafeteria e depois de uma boa conversa, entre sorrisos e olhares trocados, acabamos amigos e depois apaixonados. O amor floresceu e por uma trama provocada por uma amiga de Alice, minha eterna amada findou nosso relacionamento. Ficamos casados por apenas quatro anos.
Agora estava eu, sentado diante do mar, em vias de sofrer mais um dia de dores ao crepúsculo. Ela terminara o casamento, não oficializado em cartório, saindo de nosso apartamento com duas malas cheias de roupas. O chofer de seu pai voltou para buscar o resto. Havia uma expressão de satisfação no rosto daquele homem de origem germânica que me fez lembrar o pai de Alice. Ele era contra nosso relacionamento e certamente estava muito feliz com o retorno da filha mais nova, jovem de vinte e sete anos de idade, para a mansão em que moravam no Morumbi. Deixei nosso apartamento algumas semanas depois e tratei de vendê-lo, indo morar de aluguel em Santos, de frente para a praia, próximo ao banco onde estou sentado.
Havia pouco mais de dez meses que no separamos e desde aquele dia, eu nunca mais deitara numa cama com outra mulher. Meu corpo compelia-me ao sexo, mas meu coração não. Eu ainda amava Alice, minha doce e amorosa ruivinha, todavia meu corpo castigado pelas constantes dores do coração parecia não mais resistir ao celibato imposto por meus sentimentos. Levantei-me e voltei para casa.
Depois de revistar a geladeira e não encontrar programa televisivo que me agradasse, dirigi-me para o supermercado, a fim de comprar alguma coisa deliciosa que me fizesse esquecer, mesmo que momentaneamente, a mulher que ainda estava muito viva dentro de mim.
Durante a procura nos corredores do supermercado, não intencionalmente, deparei-me com uma solitária morena, de cabelos compridos, na altura dos ombros. Ela parecia de origem humilde e usava um vestido estampado, de flores miúdas. Embora sexualmente atraente, ela apresentava um acúmulo de gordura comum em mulheres que já tiveram filhos e que somente com uma intervenção conhecida como abdominoplastia, a cirurgia plástica da barriga chapada, consegue eliminar. O desejo que me inquietava desde o deslumbramento na beira da praia se agravou. Tentei me conter, mas não pude. Tive que abordar a presa.
- Olá, tudo bem?
Ela encarou-me um tanto surpresa.
- Eu costumo comprar neste supermercado, mas não estou encontrando a massa Paraíso – continuei, entabulando uma conversa. – Será que você me indica outra que seja boa?
Ficou indecisa por um instante, mas respondeu-me com um cintilante sorriso nos lábios.
- Ah, essa aqui... A Jovinte... Eu costumo usá-la e é muito boa...
Aproximei-me dela naturalmente, buscando intimidade, sem que ela percebesse.
- Sabe como é, homem solteiro cozinha, mas não conhece muitas opções de qualidade... Se mudar, ufa! Acaba estragando o jantar...
Ela sorriu. Olhei para o carrinho de compras e disse:
- Você parece que conhece da culinária... Pelo carrinho...
- Eu sei cozinhar, mas não tão bem, pelo menos eu acho...
- Hum, parece que não... Parece que você cozinha muito bem...
- Por quê?
- Tem uma boa variedade de temperos aí no teu carrinho...
- Ah, é que costumo comprar um pouco mais no início do mês...
Começamos a caminhar pelos corredores, empurrando nossos carrinhos e comprando. Passei a encará-la com olhares cobiçosos, os quais ela correspondeu.
- Você tem filhos?
- Apenas um menino...
- Eles são o melhor parâmetro para o sabor da comida...
- Eles são o quê? – indagou a morena indicando não saber o significado do vocábulo.
- Eu quis dizer que eles sabem julgar se a comida está boa ou não e não escondem seu gosto ou preferência...
- Ah, entendi...
- E seu garoto, como ele chama?
- Vitor...
- Bonito nome... O Vitor deve adorar guloseimas...
- Como você sabe?
- Desculpe, mas pela quantidade de doces e biscoitos no teu carrinho...
- Ah, é verdade, ele adora...
- Eu gosto muito de biscoito recheado e de chocolate...
- Engraçado, eu também...
- Comendo diante de uma TV, assistindo um bom DVD... Você gosta de filme, de DVD?
- Muito...
- Estamos conversando e eu nem sei seu nome...
- Márcia...
- O meu é Lélio... Você mora com seus pais?
- Não, moro aqui perto com meu filho...
- Ah, Vitor deve gostar também de ver filmes... Com o pai...
- Não... Eu não sou casada...
- Ah, mas deve ser comprometida...
- Não, não sou...
- Uma mulher bonita como você sem namorado?
- Você me acha bonita?
- Claro Márcia...
Minutos depois, passamos nossas compras no caixa do supermercado e a acompanhei até o seu velho carro. Ela revelou que o filho estava na casa da avó e que ia buscá-lo mais tarde. O estacionamento do supermercado estava praticamente vazio naquele momento. Guardei as poucas compras no interior do carro sem porta-malas e, num movimento súbito, cingi sua cintura delgada e beijei-a ardentemente. Parecia que a solitária mãe solteira também estava sem sexo há muito tempo, pelo jeito que correspondeu aos meus beijos. Embarcamos no meu carro, que ela ficou fascinado pelo conforto e luxo, e fomos para o meu apartamento, que ficava algumas quadras do supermercado.
Subimos pelo elevador de serviço, a pedido dela, e entramos sorrateiramente no meu apartamento. Depois de fechar a porta, agarrei-a novamente e passamos a nos beijar. Minhas mãos aflitas levantaram o vestido de algodão e encontraram a calcinha minúscula que desaparecia em seu bumbum. Arranquei-a rapidamente e passei a retirar minha roupa. Ela sorriu e também retirou o vestido. No momento que me viu nu e ereto, ficou admirada e fascinada, avançando sobre mim. Fez sumir minha virilidade em sua boca quente e úmida e levou-me ao prazer muito rapidamente. Levei-a para o quarto e coloquei-a na cama e voltamos a nos beijar. Novamente ereto, protegi-me com um preservativo e invadi suas pernas. Ela suspirou de prazer, agarrando meu corpo com aflição. Enquanto a possuía, ela gemia como uma mulher casada que não tinha relações sexuais com o marido há tempos. Agarrava meus cabelos, arranhava minhas costas e mordia meu pescoço, pedindo que abusasse dela. Num instante tive um devaneio. A desconhecida do mercado transformou-se em minha amada Alice, minha doce e amorosa ruiva. O devaneio me causou certo furor, lançando-me logo à realidade nua e crua. Eu fazia sexo com uma mulher que nada lembrava aquela que ainda possuía meu coração. Explodimos juntos, um dentro do outro. Caí para o lado, ofegante. Enquanto nos recuperávamos, de viés, olhei para uma fresta nas cortinas da janela.
O crepúsculo se aproximava. Lembrei-me novamente de Alice. De nossas ardorosas noites de amor, de carinho, de paixão ardente. Ressurgiu a dor no peito, o mal-estar galgou meu esôfago, chegando a minha garganta e provocando um amargor em minha boca. Levantei-me e dirigi-me para o banheiro. Márcia disse:
- Ei, gostoso, vem cá, vamos f... De novo, vem, vem me f...
Não lhe dei ouvidos. Entrei no banheiro e fechei a porta. Em seguida ela bateu, pedindo para que eu abrisse. Fingi não ouvir. Ela insistiu e desistiu, voltando para a cama. Quando retornei ao quarto, encontrei-a na cama, ajoelhada, nua e de quatro para mim.
- Vem, vem de novo gostoso...
Ela assustou-se quando recebeu o choque de suas roupas no bumbum que empinava o máximo que podia.
- Ei! O que é isso?! – disse Márcia virando-se rápido e adotando uma atitude agressiva.
- Vista suas roupas, não vamos ter repeteco... Vou te levar para o estacionamento do mercado e pegue seu carro...
- Espera aí... Você me come e já me manda embora?! O que eu fiz de errado cara? Não te chupei gostoso? Não fiz gostoso contigo?
- Não é nada com você... Gostou da trepada? Foi boa para você?
- Sim, foi...
- Também foi boa para mim, isso que importa... Agora vista as suas roupas e vamos embora.
Furiosa, ela vestiu-se emitindo impropérios e descemos como subimos: pelo elevador de serviço. Nenhuma palavra ou olhar trocado. Voltamos a ser desconhecidos. Deixei-a no estacionamento e voltei para o apartamento. Rasguei violentamente os lençóis e fronhas da cama e joguei-os no lixo.
Estirei meu corpo cansado no sofá da sala. O arrependimento de fazer algo que para mim foi, de uma forma inusitada, imperdoável, surgiu em rajadas incandescentes em meu íntimo. Ele queimava ardentemente. Voltei a pensar em Alice, em minha doce e amorosa ruiva, em seu olhar meigo e encantador em seu corpo macio e perfumado, na fragrância que exalava de seus cabelos ondulados. Comecei a chorar. Encolhi-me no sofá, como uma criança em prantos. A dor foi se agravando. Enquanto pressionava os olhos com os dedos tentando conter minhas densas lágrimas, por um instante, olhei para a janela.
Ocorria o crepúsculo. O sol desaparecia atrás da montanha de prédios que se enfileiravam a beira-mar e dava lugar à escuridão que surgia... Como as dores.
Robert Thomaz