Atalaiada – Parte II
O marido sempre que podia a menosprezava. Dissera em oportunidades anteriores que ela podia ir embora, que podia deixar a casa que não mais lhe servia. Ela ignorava as ofensas e ordens de despejo. Queria mais que ele morresse, para ficar com a casa que ele comprou com seu dinheiro, dinheiro da venda do apartamento em Juiz de Fora. E queria também ficar com sua medíocre aposentadoria, era isso que ela queria. Mas Clemente era vaso ruim e nem gripe pegava depois de enfrentar temporal. Sua raiva aumentava na presença dele. Quando o marido infiel estava ausente, ela ficava feliz. Podia colocar o velho aparelho de som no mais elevado volume e fumar e chorar que ninguém a ouvia. Podia bisbilhotar a vida alheia à vontade e assaltar os desprevenidos para disseminar as últimas fofocas da rua. Podia ser livre, estar livre. A presença de Clemente a sufocava. Ele não gostava e não queria que ela ficasse vigiando a vida alheia.
As mãos corrugadas acenderam as bocas de fogo e colocaram as panelas sobre as grades metálicas. Depois passaram a cortar algumas verduras compradas na xepa da feira.
Quem sabe eu consigo uma trepada, já que o Clemente nem fode mais comigo, quer dizer, foder, ele fode, quando a vadia nega fogo... Aí ele vem para casa e me arrasta para a cama... Fica suando que nem um bode fedorento em cima de mim e com muito custo se desafoga entre as minhas pernas... Eu finjo e digo que gostei, para não levar porrada... O cachorro ainda me bate quando chega bêbado... Eu podia ir na polícia fazer queixa contra ele, mas é besteira, ele é da polícia! Merda!... O pessoal da delegacia é tudo colega dele, vai rir de mim... Eu estou cansada dessa vida... Eu tento esconder dos vizinhos, mas acho que muitos deles sabem da humilhação que eu sofro...
Súbito, ela cortou o dedo com a faca de lâmina longa que usava. O olhar incendiou-se de ódio quando viu o sangue escorrer e pingar dentro da pia. Largou bruscamente a faca e envolveu o dedo ferido com um pano de prato, apertando-o para estancar a pequena hemorragia. O mesmo ódio se alastrou quando pensou no marido na cama com uma mulher muito mais jovem. Ela aos gemidos alucinantes e ele se regozijando com seus movimentos incendiários.
Envolta em silêncio, ela serviu o jantar na mesa da sala. Ele que assistia a uma partida de futebol, levantou-se e foi comer. Comeram a refeição praticamente sem falar um com o outro, sendo a atenção dele voltada para a partida. Terminado o jantar, ele voltou rapidamente para o sofá. Amargurada, ela recolheu a louça e foi para a cozinha. Enquanto lavava a louça, a mente divagava. A dor de sua humilhação era profunda e perpétua. Os copos e pratos deixavam o fundo da pia para o escorredor esmaltado e a lâmina da faca reluzia no choque com a água da torneira. O ódio que se renovava e crescia, espraiava-se por todos os pontos de seu corpo. Ela terminou de lavar a louça e foi para o quarto. Não tomou banho, apenas retirou a roupa velha e desbotada e deitou-se na cama, cobrindo-se com o lençol. Ficou olhando para o teto por um longo tempo. Quando ouviu o marido desligar a televisão, virou-se para o lado. Sem contrair o rosto, lágrimas corriam-lhe pela face.
Clemente entrou no quarto e despiu-se. O perfume barato avançou sobre a mulher revoltada. Ele a agarrava e dizia que queria e ela resmungava, esquivando-se, indicando recusa.
- Ei mulher! Porra! O que te deu?!
- Nada Clemente – respondeu a velha com os olhos marejados. – Hoje eu não quero...
- Não quer?! Que não quer o quê?! Vai querer sim, você é minha mulher e vai querer na hora que eu quero, cacete!
- Mas...
- Não tem mais e nem menos, porra! Vira pra cá, vai!
Chorando, ela volveu o corpo devagar sobre a cama, ocultando o imenso rancor. Ele empurrou suas pernas para os lados e penetrou-a com violência. Enquanto ele gemia, ela soluçava em silêncio. Seu ódio crescia.
- Não vai gemer mulher? Geme, geme que eu gosto! Vai, geme!
Ele começou a suar. O ódio continuava a crescer, a cada segundo, a cada instante. Ela passou a manifestar o choro, a implorar-lhe que parasse. Ignorando suas súplicas, ele continuou a estocar com força. Quando estava prestes a chegar ao clímax, foi acometido por uma violenta dor que lhe surgiu no tórax. Clemente soltou um grito de dor e levou rapidamente a mão ao lado do peito, para apavorar-se com a frieza da lâmina reluzente da faca da cozinha. Com os olhos arregalados e assustados pelo derrame de sangue que surgia, ele tentou arrancar a faca, mas ela penetrara profundo.
- O quê, o quê vo-cê fez... O que fez mu-lher?!
Ela empurrou o corpo de Clemente para o lado e ele tombou sobre a faca, fazendo-a penetrar mais fundo. O lençol começou a encharcar-se com o sangue do marido traidor.
- Por que mu-lher?... Por quê?
Ela levantou-se na cama e ficou de pé, assistindo a agonia daquele que vivia a humilhá-la, a menosprezá-la.
- Não... Não me dei-xa morrer... Não me dei-xa... Não...
Clemente parou de se mover. Os olhos ficaram arregalados. Ela ficou olhando para o marido morto por alguns minutos. Abriu uma das portas do armário e apanhou o revólver que ele guardava no fundo de uma gaveta. Nem olhou se estava carregado. Ele sempre deixava o revólver carregado.
- Não vou me ferrar na cadeia por causa desse fdp... Não vou sofrer mais ainda por causa dele...
O cano frio e escuro do revólver tocou o peito, entre os seios volumosos e caídos. Os olhos marejaram e ela respirou fundo, fechando os olhos. Num movimento único, apertou o gatilho. O estampido assustou os vizinhos que moravam ao lado, clamando-os em ajuda. Um forte ardor surgiu-lhe no peito e ela tombou ruidosamente ao lado cama. Agonizando, agarrou-se ao lençol da cama, expressando arrependimento.
Eu, eu não quero mais sofrer... Não quero mais sofrer... Eu quero ser feliz!
O grito de socorro foi sufocado pela saliva e pelo sangue que inundou sua boca suja. Ela puxou mais o lençol para si na tentativa vã de salvar-se. O rosto bateu no chão frio do assoalho. O olhar fixou-se na escuridão sob a cama. Um derrame fino correu da boca semiaberta. O corpo disforme e desnudo não mais se moveu. Uma mancha escarlate começou a espraiar-se sob ele, finalizando a cena tétrica. Na manhã seguinte, a tragédia em sua casa seria o mexerico do dia. Como ela fazia e gostava de fazer. Só que na boca de outra fofoqueira.
Robert Thomaz