COMO A NEVE DE MAIO
COMO A NEVE DE MAIO
Roberto Schima
Nevava lá fora.
Era uma neve espessa de tonalidade cinzenta, que caía sem parar nessa tarde de maio. O vento soprava forte por entre os zimbros do jardim, produzindo um uivo monótono e triste. Agitava os flocos em rodopios de bailarina, fazendo-os pousar na folhagem para depois terem de se mudar novamente. Mais além, os ciprestes formavam uma cerca viva ao redor do edifício, e seus galhos co-bertos de neve gemiam como se não mais suportassem o frio que, na infância, desconheciam.
"Estranho...", pensou, observando a fileira de árvores escamosas. "São como sentinelas da advertência, e todas olham para mim, acusando-me."
Desviou sua vista para a entrada, as grades em arabescos e a rua sinuosa onde, havia muito, as pegadas tinham sido apaga-das. Os dedos acariciaram a cortina à procura de consolo. Mas não havia consolo. O rosto magro e afilado trazia no semblante uma expressão contida de desespero. Ao mesmo tempo em que via as colinas perderem-se na vastidão cinzenta, podia observar o seu próprio reflexo no vidro mover os lábios e pronunciar, sem emitir som algum: "Cinza..."
E os flocos de neve continuavam a cair como grãos de areia de uma ampulheta. Entretanto, na sua imaginação, eles come-çaram a subir.
"É o mesmo cinza de que me recordo desde os tempos de criança, desde que erguia os meus bonecos de neve com nariz de cenoura no quintal de casa. Ah, vovó... vovó Ernestina, teria você dito a verdade? Houve mesmo um tempo, um tempo quando você era jovem, menina ainda, que não caía neve por estes cantos do mundo, e que, nos lugares em que ela caía, era branquinha, bran-quinha, como chumaços de algodão? E, quase sempre, podia-se ver o sol banhar a cidade de dourado sob um céu de um azul sem limites? Eu não acredito! Ainda hoje, custo a me convencer disso."
Viu seu reflexo esticar os lábios num meio sorriso, do mesmo modo que ele sorrira naquela época em todos aqueles absur-dos. Ainda hoje, podia se lembrar da velha, exibindo a boca des-dentada, contando-lhe aos sussurros junto à lareira sobre animais e paisagens fantásticos. Até onde ele sabia, o céu sempre fora cinzento, as nuvens sempre foram cinzentas e a neve cor de chumbo sempre vertera das alturas, sempre.
"Mas não deixei de tentar imaginar como seria ver o sol irromper na primavera e derreter a neve dos telhados em incontá-veis cataratas. Um globo incandescente e eterno muito além da abóbada de nuvens... Qual! O céu plúmbeo é e foi todo o universo para mim, e isso já era o bastante para alguém que tinha somente quinze anos e esquecera o horário de voltar para casa."
Uma lufada atingiu a janela, e o assobio que se sucedeu fez com que ele recordasse da risada da vovó Ernestina diante do olhar esbugalhado do neto. Era algo assim como: "Ih! Ih! Ih!", um pintinho piando.
- Mentirosa! Mentirosa! Mentirosa! - cantarolou o reflexo, baixinho.
- Hã?! O que foi que você disse?
Os grãos de areia pararam de enfrentar a gravidade e despencaram todos de uma só vez.
Girou a cabeça, dando as costas para as cortinas. O hospital, sim, o hospital. Por um instante, ele havia se esqueci-do que existia um mundo distinto das recordações. A primeira coisa que avistou foi o emblema: uma rosa enovelada por uma ser-pente, e emoldurada pelos dizeres "Centro Hospitalar Penha-Canga-íba". Abaixou os olhos para a enfermeira atrás do balcão. Trazia um sorriso inquisidor. Sem ser propriamente bonita, não era o tipo de pessoa a se passar despercebida.
- Desculpe-me, Eva. O que foi que você disse?
- Eu perguntei justamente isso: o que foi que você dis-se?
- Ah... Nada, nada. Estava apenas me lembrando da minha avó e de como eu arreliava com ela cada vez que ela afirmava que, um dia, a neve fora branca, branca como o seu uniforme, Eva.
Seu nome completo era Eva Arruda de Camargo e, no pri-meiro dia que a vira, ele pensara em como combinava com aquele lugar e aqueles odores de anfetaminas. Lembrava-lhe bula de remé-dios. Naturalmente, nunca lhe contou.
Estavam a sós no saguão. Durante todo o tempo em que ele ficara a observar através da janela, ela estivera entretida com seus relatórios enfadonhos diante do terminal. Agora, estava pronta para digitar a ficha de saída de uma paciente que, depois de dezesseis anos de internação, teria alta de seu estranho tra-tamento. Mais estranho ainda pelo fato de ela nunca ter estado doente. "Como esta vida é estranha, como tudo neste mundo é es-tranho", estava pensando um segundo antes do reflexo murmurar. E Eva apreciou essa pausa, essa quebra do silêncio tumular.
- Meu pai também falava sobre isso. Ele tinha muito medo por causa da censura, mas não achava justo que seus próprios filhos fossem obrigados a viver à sombra da ignorância.
- Minha avó também tinha medo - concordou, aproximando-se. - Não sabia que seu pai conheceu aquele período.
- Não conheceu. O pai dele havia lhe deixado um diário antes de morrer, onde contou tudo o que sabia. Foi um grande risco para a família, minha avó que o diga; as inspeções domici-liares estavam no auge. Somente na adolescência ele pôde folhear o manuscrito. Estava oculto numa árvore. Tinha até fotos.
- Fotos? Mas e o Decreto de Censura? E a repressão? Todo o material deveria ter sido entregue ao Estado para incineração.
A enfermeira encarou-o, orgulhosa.
- Meu avô tinha tendências anarquistas e jamais aceitou qualquer tipo de ordem, mesmo ciente dos desaparecimentos e das torturas. Dizia que a hierarquia era dividida entre dois tipos de idiotas: os que mandavam e os que obedeciam.
Sol. Céu azul. Nuvens brancas. A selva amazônica. A mata atlântica...
- Você tem esse diário? E as fotos?
Eva abaixou os olhos para a tela do terminal. A princí-pio, deu a impressão que iria retomar o serviço, porém seus bra-ços continuaram cruzados.
- Infelizmente, não - respondeu pesarosa. - Meu pai não era tão ousado assim e temia os delatores. Queimou tudo ainda na mocidade. Eu bem que gostaria de ter visto. Se ao menos ele ti-vesse guardado por mais alguns anos dentro daquela árvore, quando o decreto deixou de vigorar. Se ao menos alguém tivesse guarda-do... Só resta imaginar.
- Imaginar uma memória perdida - completou ele, soltando um suspiro.
- Sim, e lamentar por mais essa manipulação da História.
O homem assentiu. Trajava um casaco de couro sintético, combinando com a calça de mesmo material. Possuía a estrutura sólida de quem, durante anos, dedicara-se a algum tipo de espor-te. A blusa por baixo do casaco era de um tecido sintético tam-bém, e trazia, à altura do peito, costurado com linha vermelha, o símbolo da confecção e a origem: "Made in Antártida". Muitos produtos vinham de lá, o que não deixava de ser irônico, já que, em seus primórdios, a Antártida era obrigada a importar tudo.
A enfermeira sorriu e o viu retribuir. Suas rugas se pronunciaram e, apesar de ter um aspecto bem apessoado e bem nutrido, era flae que passara as últimas noites insone. Depositou de leve a mão sobre o ombro dela e, em seguida, vol-tou-se novamente na direção da janela.
- Neve branca... Foi antes da guerra.
- Isso, Eva. Antes da malfadada guerra.
Antes que qualquer um dos dois pudesse dizer mais alguma coisa, o videocomunicador sobre o balcão soou. Na pequena tela de cristal líquido, surgiu o rosto de um homem grisalho com amplas sobrancelhas negras. Tinha um ar cansado e estava tirando um par de luvas de borracha.
- Enfermeira Eva, por favor, o Sr.Erasmo Marcolin de Pádua encontra-se no balcão?
- Está sim, Dr.Paulo.
- Bom. Peça-lhe que se dirija ao laboratório imediata-mente. Vamos começar agora.
- Sim, senhor. E, doutor... - Hesitou.
- Diga, enfermeira.
- Precisará de mim como assistente?
- Não, já lhe disse que não. A Márcia cuidará disso. Se você viesse, quem iria substituí-la? Logo hoje a Vanda tinha que faltar.
- Está bem, doutor.
A comunicação foi encerrada, e Eva lançou um sorriso desajeitado para aquele homem de pouco mais de trinta anos. Ten-tou concentrar seus pensamentos, fútil tentativa. "Como as coisas podem ficar de pernas para o ar em tão poucos dias?", indagou-se.
Erasmo não conseguiu encará-la. Fitou a janela, tentando recapturar a neve, o vento que uivava e as recordações de um tempo que não voltaria nunca mais. Mas as cortinas não o deixaram ver o cenário brumoso.
Nada havia para confortá-lo.
O laboratório estava situado do outro lado do corredor que o ligava ao saguão, imediatamente após uma série de bifurcações. De sua porta de vidro, tinha-se a visão parcial do saguão, da porta de entrada entre dois pilares brancos e do balcão onde Eva retornara ao seu monótono trabalho. Ao menos parecia monótono para o assistente que a observava havia algum tempo, simultanea-mente ao aproximar daquele homem de casaco de couro.
- Lá vem ele - comentou para o colega.
- Parece nervoso.
- Você também estaria se estivesse no lugar dele.
- Não se preocupe, estou nervoso por conta própria.
- Somos três - acrescentou um terceiro.
Erasmo foi interceptado pelo médico grisalho no meio do caminho. Saiu de uma das bifurcações acompanhado por uma mulher alta e muito séria.
- Como está, Sr.Erasmo?
- Dr.Paulo - cumprimentou-o.
- Desculpe-me pela espera. Esta é a enfermeira Márcia. Tivemos uma cirurgia de emergência para fazer. Emergência é o que não falta dentro de um hospital.
Erasmo concordou distraído.
Cruzaram a porta do laboratório onde os três assistentes aguardavam pelo médico para dar início à operação. Eram todos muito jovens e estavam ansiosos. A enfermeira, mais experiente, começou a examinar todos os instrumentos.
Os rapazes abriram caminho e, por trás deles, Erasmo a viu. Novamente a viu como fizera ao longo dos dezesseis últimos anos regularmente, todas as semanas. E mesmo depois de todo esse tempo, ele ainda podia ouvi-la chamar numa voz doce, imersa num calor interior: "Querido, meu pequeno querido." Era um calor que, mesmo aprisionado numa couraça de névoa esbranquiçada, resistia imutável. Sentiu a pele arrepiar-se.
"Aí está você e aqui estou eu. Finalmente, chegou a hora para nós."
Erasmo perdeu a conta das inúmeras vezes que tentou falar-lhe, como se ela pudesse perceber sua presença, senti-lo confessar sua saudade, sua desesperadora ânsia por fazê-la des-pertar. E, após narrar as principais novidades dos últimos sete dias, ficava aguardando por um comentário, uma resposta que não vinha a não ser em sua mente, uma mente repleta de imagens de um futuro a milhões de quilômetros de distância.
Lá estava ela, tão próxima quanto o amanhã.
Suas pálpebras eram cortinas delicadas, cerradas sobre o tablado da vida à espera do segundo ato. Os cílios imóveis havia muito não sentiam o tremor de um piscar. O perfil do nariz era ligeiramente arrebitado. As narinas não se contraíam nem se dila-tavam, não precisavam da fragrância das flores. Logo abaixo, os lábios finos e sem pintura estavam completamente relaxados, pron-tos a emitir suas primeiras palavras. Seu queixo era afilado, terminando num arco suave. Os cabelos eram como um céu isento de estrelas, cortados bem curtos. Faziam lembrar com pesar o seu comprimento original, que lhe atingia a cintura, mas que precisa-ram ser aparados devido à operação. No seu todo, seu rosto era o de alguém que acreditava na esperança. Era bela, singelamente bela e silenciosa.
"Finalmente, a hora."
Fisionomia marcada, Erasmo prosseguiu com seu toque de pluma, numa lentidão mais subjetiva do que real.
Dr.Paulo observou com a paciência religiosa de sempre, o mesmo não podendo ser dito dos assistentes e até da enfermeira, que, todavia, o imitavam.
Ela vestia roupas leves e imaculadamente brancas, que revelavam os contornos pouco pronunciados do seu corpo. Os pés nus estavam unidos, limpos e sem esmalte nas unhas bem aparadas. E seu nome... ah, claro, o nome... continha todo o fogo interior, toda a fornalha que ainda queimava no interior do planeta e para além das camadas eternas de nuvens, nas estrelas.
- Aurora... - sussurrou Erasmo a uma distância segura de seu corpo, sem se importar com aqueles que o fitavam.
"Querido, aí está você", respondeu ela em sua mente.
"Sim, Aurora. Eu estou aqui."
"Que saudade! Eu quero viver. Eu quero correr. Quero estar a seu lado. Quem mundo encontrarei?"
"Não está muito diferente, eu receio."
"Duvido, meu pequeno querido. Desta vez será você quem irá revelá-lo para mim."
Ela estava no centro da sala, flutuando a uma pequena altura de uma mesa de cerâmica. Ao seu redor, presa por uma jaula magnética, a névoa esbranquiçada conferia-lhe uma visão de sonho, de irrealidade, qual vultos perdendo-se nas ruas de um entardecer sombrio.
- Demorará muito? - perguntou Erasmo, voltando-se subi-tamente para o médico-chefe.
- Uma hora, aproximadamente.
- Bem... - tentou sorrir - ela já esperou tanto tempo que creio que uma hora ou duas não lhe farão diferença.
Os assistentes riram, aliviando a tensão. Um deles mirou a enfermeira Márcia, que, como Dr.Paulo, continuava séria. Per-guntou-se se ela seria feita de pedra.
Dr.Paulo atentou para as olheiras e as faces encovadas do homem que tinha diante de si, sentindo um misto de admiração e piedade por ele. "Antes de conhecê-lo e a você, Aurora, já ouvira falar de casos semelhantes, mas este foi o primeiro em que tive contato pessoal. Teria eu suportado tanto quanto ambos? Teria eu dado mostra de tanto amor e paciência? Quão gratificante é saber que o ser humano ainda é capaz de tamanho sacrifício pela pessoa amada. E triste também."
- Então, vamos lá - disse o médico para os demais.
Os assistentes posicionaram-se nos equipamentos computa-dorizados e passaram a pressionar teclas luminosas, a acompanhar mostradores cromáticos e gráficos tridimensionais. Num console mais isolado e próximo da mesa de cerâmica, a enfermeira colo-cou-se ao lado do médico e ativou os instrumentos. Um zumbido contínuo encheu o laboratório e lembrou a Erasmo o sussurrar do vento na janela do saguão. Num átimo, teve o desejo de voltar e afastou em seguida o pensamento absurdo: não existia caminho de volta, ou já teria se esquecido? Comprimiu a mão contra a outra. As luzes diminuíram de intensidade, e ele viu a névoa ao redor de Aurora assumir uma coloração alaranjada como nos anúncios de néon. Ficou num canto. Dr.Paulo pediu-lhe que se sentasse numa cadeira estofada, contudo, ele preferiu aguardar em pé. O médico encolheu os ombros e retomou seu lugar.
Aurora era uma nuvem laranja levitando num salão mágico onde tudo era possível. Estava cercada por um emaranhado de som-bras e dormia ao som do zumbido.
"Estou a caminho, querido."
"Eu sei", respondeu em seu diálogo imaginário. "Eu sei."
E Erasmo Marcolin de Pádua sentiu o peito comprimir-se sob o casaco de couro sintético e tornar-se pequeno, muito peque-no; tornar-se o peito, não de um homem, mas de um jovenzinho, um garoto, um menino de somente quinze anos, e que estava desampara-do na neve...
Era um final de tarde em pleno verão. Verão, outono, inverno ou primavera... não fazia a mínima diferença. Há muito que as nomenclaturas referentes às estações do ano tinham caído em desuso. Havia somente e tão-somente uma única estação, e ela se chamava Neve. E, naquele final de tarde, a neve se convertera em nevasca e os ventos mostravam sua fúria, castigando a paisagem cinzenta.
Não havia ninguém nas ruas. A Penha do pós-guerra era um cenário desolado onde pequenas construções intercalavam-se com terrenos cobertos de coníferas. Se um dia existira uma Penha feita de arranha-céus, centro comercial, bairros, asfalto, con-gestionamento de gente e de veículos automotores, certamente ficara esquecida em alguma parte do tempo. A Penha de hoje era pouco mais que um conjunto de vilarejos adormecidos, hibernando sob a nevasca. E quem quer que fantasiasse o contrário seria acolhido com desconfiança. Somente os redemoinhos de neve brinca-vam nos espaços abertos, desciam por ruas e rios congelados, invadiam quintais e escalavam telhados sem ninguém reclamar. Somente eles não dormiam, eles... e ele.
- Porcaria, mas que porcaria!
Era pouco mais que uma mancha escura subindo a rua prin-cipal, sentindo escorregar dois passos a cada passo que dava. Quanto tempo fazia que não avistava uma casa? Onde elas teriam se metido? Isso lá era hora de se brincar de esconde-esconde? Toda-via, sua mente jovem sabia: não se tratava de nenhuma brincadei-ra, era sério.
- Porcaria! - praguejou novamente, dentes chocalhando.
Arrastava-se com dificuldade, neve pelos joelhos. Sua visão estava turva, todos os pontos de orientação tornaram-se idênticos, confusos, uma sucessão de manchas e mais manchas. A ventania esbofeteava seu rosto e fazia piruetas por toda parte. Ele xingava e xingava, querendo parecer forte, mas sua vontade era se sentar e chorar. Não havia tempo para isso. A noite avan-çava. E as pessoas sabiam - ele sabia - o que significava passar a noite em companhia da neve.
Sentiu os passos cada vez mais pesados. Seu corpo lamu-riava-se, pois a temperatura estava caindo com rapidez, e sua indumentária de peles não aquecia mais com a eficiência de algu-mas horas atrás.
Por fim, ao atravessar um terreno de pinheiros e abetos, semelhante a qualquer terreno entre os vilarejos ou entre as casas de um vilarejo, distinguiu uma luz por entre as rajadas de cinza. Auxílio! Pediria auxílio ou mesmo um abrigo até o dia seguinte. A essa altura, vovó Ernestina devia estar tendo ataques de preocupação, porém compreenderia tão logo pudesse lhe narrar sua maravilhosa descoberta. Correu com a rapidez de uma tartaruga perneta.
Era uma casa como muitas outras e tinha aproximadamente a mesma idade que a maioria. Era construída de tijolos de barro cozido, onde só uma parcela era de material recente. A outra vinha das ruínas da guerra, retiradas por escavadeiras especiais e auto-suficientes. Ruínas e escombros serviam de alicerce para a nova Penha de França. Pouquíssimas habitações eram feitas de gelo, e ele mesmo sequer tinha visto uma. Embora fosse uma maté-ria-prima muito barata, não proporcionava o mesmo conforto, segu-rança e isolamento térmico. Favelados, inclusive, preferiam uti-lizar a madeira e nem imaginavam o quão próximos estavam de seus antepassados. Fosse como fosse, barro cozido, madeira ou blocos de gelo, ao longe, todas se pareciam e estavam cobertas por cama-das sobre camadas do floco cinzento do céu.
- Por favor! - gritou ofegante. - Ajuda... preciso de ajuda!
A ventania soprou os vapores de sua respiração e soltou um gemido medonho. Os pinheirais gargalharam, espanando a neve. Diziam: "Isso é um grito, pequenino, ou é um cochicho?"
- Socorro! - cochichou.
As mãos estavam dormentes dentro das luvas, e ele esmur-rou com toda a força a porta trancada. Esmurrou diversas vezes até sentir os braços doerem e pesarem como ósmio. Ao lado da dor, o alívio por sentir que o sangue ainda circulava. Tentou pular o muro e alcançar o quintal. Alto demais. Escorregadio demais.
- Socorro! Por favor, estou perdido... Porcaria!
Através das grades da porta, a casa continuava a não dar sinais de vida. Viu a varanda, um par de esquis encostado, uma mochila velha junto à porta, o quadrado de luz da janela. Teve então uma idéia. Armou-se de algumas bolas de neve e fez ponta-ria. A primeira espatifou-se nas grades. A partir da segunda, todas atravessaram, mas só a quarta acertou o alvo. O som de vidro se partindo chegou aos seus ouvidos muito fraco, amortecido pelo uivar do vento. Esperou, esperou e esperou... nada.
- Por favor - gemeu, não segurando mais as lágrimas.
Na distância, avistou as luzes de outra casa. Longe demais, jamais a alcançaria antes da escuridão da noite. E o céu tornara-se uma massa uniforme de penumbra. Não mais conseguiu sentir qualquer parte do corpo. O sono infiltrou-se como um alí-vio. O sono de gelo. O torpor do esquecimento. A paz.
Finalmente, quando suas mãos estavam escorregando das grades e o corpo fluía para o manto macio, a porta da varanda se abriu.
Aquelas pessoas ao redor dela. Aqueles instrumentos sofisticados, importados, brilhando. Luzes mutantes, luzes de muitas cores, como num salão de vídeo games. E ela era o prêmio. Um holograma brotando sobre seu corpo, acima da névoa luminosa, girando, parando, mostradores alfanuméricos trabalhando. Um es-pectro exibindo seus órgãos internos, as conexões nervosas, sua... alma? Dedos acariciando botões e teclas. Telas explodindo de imagens. Ruídos de vídeo game. Ela era o prêmio. Ela cavalgava o tempo sem saber.
- Sente-se bem, Sr.Erasmo?
- Hã?! E-eu, sim, Dr.Paulo. Está tudo bem.
- Tem certeza que não quer sentar-se?
Erasmo moveu a cabeça afirmativamente.
- Faça como achar melhor. Não demorará muito.
- Doutor?
- O quê?
- O senhor sabe qual é a cor do tempo?
O médico juntou as sobrancelhas, que pareciam duas tatu-ranas, sem saber o que responder. Dois dos assistentes se distra-íram dos computadores, olharam um para o outro e ficaram de ouvi-dos atentos.
- Não... ou... Seria cinza?
Erasmo sorriu, voltando-se para a mulher de néon.
- Não, doutor. A cor do tempo é frio, muito frio, frio escuro de uma gruta sem fim.
Dr.Paulo espiou a expressão tranqüila de Aurora. Enten-deu.
- Frio...
Calor...
Foi a primeira coisa que Erasmo sentiu momentos antes de tornar a abrir os olhos. Envolvia seu corpo num abraço indescri-tível, relaxante, mágico. Algo irreal em contraste com as farpas rasgando seu rosto e seu corpo havia... quantos milênios? E aque-las risadas maldosas vindas da folhagem, não se cansando nunca de atormentá-lo. Se existia felicidade, ele estava mergulhado nela. Literalmente mergulhado, foi o que descobriu no instante seguin-te.
Abriu os olhos.
Encontrava-se numa banheira de água quente, e o corpo flutuava em serenas ondulações. O banheiro era rústico, de tijo-los aparentes, cuja impressão geral agradava. As louças não obe-deciam a um padrão de cores e formas, cada uma tendo uma origem diferente. Tentou se mexer. Sob os braços, tinha um apoio, uma espécie de tipóia passando por suas costas e impedindo-o de sub-mergir. Deteve-se na névoa a subir preguiçosamente, condensando-se no teto.
Repentinamente, a porta se abriu, apavorando as emanações de calor. E ela apareceu... Ela!
- Saia daqui! - gritou instintivamente. Tentou cobrir sua masculinidade sem sucesso. A tipóia dificultava seus movi-mentos, e o melhor que pôde fazer foi erguer uma das pernas e esparramar punhados de água.
- Sim, Grande Homem - zombou ela, depositando o balde de água quente próximo à banheira. - Mas quem é que irá soltar você?
- Eu...
- Vai pensando, enquanto a água esfria.
"Boa pergunta", concluiu o garoto, novamente sozinho. De qualquer modo, era um pouco tarde para se ter vergonha. "Sem ajuda é que não vim parar na banheira."
Mais tarde, enxuto e vestido com trajes de pele, foi chamado até a sala para um copo de leite quente e biscoitos. A primeira coisa que lhe chamou a atenção foi a janela quebrada.
- Desculpa. Pode deixar que depois eu pago, prometo.
- Tudo bem - respondeu ela do sofá. - Venha se sentar. Um papelão deverá resolver por enquanto. Venha.
Ele foi e apanhou com cuidado a xícara fumegante. O leite desceu garganta abaixo. A sensação foi boa, muito boa. Seus olhos detiveram-se na chama da lareira. A lenha crepitava e sol-tava fagulhas. As chamas subiam pela chaminé, e Erasmo imaginou a neve derretendo no topo sobre o telhado e congelando-se novamente no beiral como estalactites de vidro.
- Você tirou minhas roupas - disse baixinho. Seu tom era o de uma acusação e de acanhamento, tudo misturado. Ruborizou. Só então tirou os olhos do fogo e a mirou.
A primeira coisa que chamou a atenção foram seus longos cabelos recém-libertados. Corriam livres pelos ombros e se perdi-am nas almofadas. Eram tão negros e brilhantes que a luz da la-reira produzia estranhos reflexos dourados. Depois, viu o sorriso meigo no seu rosto, a expressão de compreensão, o cintilar tranqüilo dos olhos. Erasmo desviou o olhar para as mãos pequeninas e de dedos finos; a mão direita trazia um anel de ouro.
- Sim, Erasmo. Eu tirei sua roupa. Não havia tempo para apresentações.
- Sabe meu nome? Ah, claro... - lembrou-se, enfiando a mão dentro da blusa. Vovó Ernestina costurara seu nome na camisa, apesar dos seus protestos.
- Mais?
- Não, obrigado. Ainda não terminei. - Tomou outro gole.
Ela continuou a sorrir, um sorriso tão franco que ele não teve mais receio de encará-la. Um tanto tardiamente, acres-centou:
- Obrigado por salvar minha vida.
- Nem pense nisso. Onde você mora?
- Na Penha mesmo. Rua Goananá. Estou voltando do córrego Franquinho.
Ela ficou séria.
- Tomou o caminho oposto. Estamos perto da estrada de São Miguel. O que é que estava fazendo lá fora até tão tarde?
- São Miguel? - assobiou. - Bem, uma descoberta. Eu fiz uma descoberta...
- Aurora. E?
Erasmo revirou o fundo do bolso, encontrou e entregou a ela.
- Uma pena?! Apanhou isso em algum museu?
- Não, não. Eu vi um pássaro nas margens do córrego.
- Não existem mais pássaros selvagens há muitos anos - falou a mulher, franzindo o cenho.
- Sei disso, Aurora... Esse que achei está congelado debaixo da neve. Um bloco de gelo tinha deslizado havia alguns dias por causa de uma escavadeira, e fui lá investigar. Fiquei cavoucando no lugar e o encontrei. Não é muito difícil achar coisas antigas, mas nunca pensei que fosse encontrar um pássaro. Gosto de colecionar relíquias, e ter ele na minha coleção seria o máximo. Tentei tirá-lo, mas está muito preso. Só quando o vento ficou mais forte é que percebi como o tempo tinha passado.
Aurora balançou a cabeça afirmativamente, rodopiando a pena úmida entre os dedos.
"Aurora..." Ele poderia ter dito "dona Aurora" ou qual-quer coisa semelhante, entretanto, algo o impelira a chamá-la apenas pelo primeiro nome. Devia ser algum efeito secundário do leite, ou do calor emanado da lareira. Ela não deu conta de ter percebido e, se percebeu, não pareceu haver se importado. E Eras-mo se sentiu muito bem por ter agido assim. Abocanhou outro bis-coito.
- Isso é espantoso. Tão logo possa, você dever ir comu-nicar seu achado ao museu. Não é algo para pertencer a uma única pessoa. Desde a guerra, nenhum pássaro ou vestígios de pássaros foram encontrados além de penas e esqueletos. Se você descobriu um pássaro bem preservado, terá sido um verdadeiro acontecimento paleontológico.
- Paleo... - resmungou ele de boca cheia. Farelos caíram em seu colo.
Aurora sorriu.
- Paleontologia. É uma ciência que estuda a vida antiga e tenta reconstruir o mundo do passado.
- Ah, você é cientista!
- Não exatamente. Estudei muita coisa, e biologia foi uma delas. Tome sua pena.
- Pode ficar para você.
- Não, você teve todo o trabalho. Ela é sua.
Erasmo tornou a revirar os bolsos.
- Eu tenho outra, olhe - piscou.
- Então, aceito, meu senhor. Obrigada. - Ela fez uma reverência e seus cabelos cascatearam diante do vestido. Depois, foi colocar a pena numa estante repleta de livros. Ainda estava de costas quando o garoto, hesitante, perguntou:
- Hã... Você iria comigo no museu?
Ela não respondeu de imediato. Prendeu a base da pena entre dois livros para que secasse e, sem se virar, murmurou:
- Não posso, Erasmo. Dou aulas particulares para algumas crianças do vilarejo e não posso sair.
- Nem por um dia? - insistiu.
Em passadas leves, ela retornou ao sofá.
- Não, não sei... vou pensar, prometo que vou pensar. Está bem deste jeito? Agora, diga-me qual é a freqüência do rádio de sua casa. Precisamos contar o que aconteceu e que irá passar a noite aqui.
E a noite chegou, transfigurando de negro o cinza do vilarejo, sedimentando sombras, dando matéria aos sonhos maus. Os redemoinhos, agora invisíveis, festejaram por toda parte, atiran-do rajadas de neve uns nos outros como crianças travessas. E, dentro da segurança das casas, todas as pessoas adormeceram sob um céu carente de estrelas. Isso é, quase todas.
Aurora...
Ela tinha 29 anos e havia altivez em sua postura, em seus gestos e modo de se exprimir. Deveria ser mágica também, alguma feiticeira misteriosa e sabedora de encantamentos. Pois, de que outro modo ela poderia, em apenas algumas horas, desvendar todos os segredos ocultos no espírito do menino? Tudo aquilo que ele jurara jamais revelar por melhor que fossem os subornos. Tinha de haver alguma poção da verdade naquele leite saboroso. Ou estaria nos biscoitos? Não era nada de excepcional para a maioria das pessoas, nenhuma grande revelação, porém, importantíssimas para alguém de sua idade; sonhos de um menino-adolescente que faziam do mundo um lugar em que compensava se viver. Sonhava em conhecer lugares longínquos, ser um aventureiro, tornar-se forte e destemido a fim de vencer todos os oponentes. Queria ser astro-nauta - era esta a palavra - para saber o que tinha acima das nuvens e averiguar aquelas histórias sobre as estrelas e um lugar inóspito chamado Lua, onde, segundo vovó Ernestina, pessoas vivi-am em redomas de vidro, distante de qualquer contato desde o princípio da guerra. Quanta coisa um copo de leite quente e bis-coitos caramelados não eram capazes de fazer!
As horas correram sem que percebessem.
Num dado momento, Aurora dirigiu-se até a cozinha e apanhou uma panela, colocando-a sobre o fogo. Jogou os cabelos para trás num gesto inconsciente, e sombras e luzes dançaram sobre seu rosto, detendo a atenção de Erasmo.
Atendendo um pedido dele, ela contou-lhe o que sabia a respeito da guerra. Era uma curiosidade muito comum entre os jovens, apesar de que nem todos os adultos apreciassem falar a respeito. Vovó Ernestina tinha testemunhado aqueles tempos e os anteriores a eles; todavia, ela preferia falar sobre o paraíso perdido pela humanidade a comentar da guerra propriamente. Devia ser por causa do avô desaparecido.
- Já ouviu falar na Antártida? - indagou Aurora.
- Já. São os donos do mundo, não são? Meus pais traba-lham lá.
- Tem muito brasileiro trabalhando por lá.
- Eu também gostaria de ir. Ainda sou muito novo e minha avó precisa de mim... Faz três anos que não os vejo.
- Sinto muito. Eu não queria trazer recordações.
Erasmo abanou a cabeça.
- Tudo bem, continue... a guerra.
- Isso aconteceu há muito tempo, antes de você ou eu termos nascido, quando nossos pais ainda eram crianças ou até bebês.
"A Antártida era composta por uma confusão de colônias de diferentes países que se beneficiavam da exploração de rique-zas naturais. Numa certa época, as colônias se uniram e proclama-ram a própria soberania. Fecharam-se para as outras nações, e estas, evidentemente, não se conformaram e quiseram tomar à força aquilo que a diplomacia não havia conseguido. Subestimaram a auto-suficiência, o desejo de independência e o poder bélico dos antarticanos.
"Eles haviam criado uma arma fantástica e a utilizaram. Todo o planeta pareceu tremer. Vulcões extintos explodiram, e muitos outros surgiram nos mares e em terra firme. Milhões de toneladas de poeira vieram se juntar aos poluentes em suspensão na alta atmosfera e impediram a entrada dos raios solares. Foi assim que surgiu a Nova Era Glacial com suas geleiras, icebergs, e a neve sem fim cobrindo tudo. E o mundo se viu obrigado a assi-nar um tratado de paz."
- Meu professor fala que os antarticanos são uma raça de assassinos - disse Erasmo, lembrando-se do velho colérico de longa barba grisalha, qual um bode.
Aurora torceu os lábios num ar de menosprezo.
- Ele é um imbecil. Essa era a versão dos nossos milita-res depois da derrota e o que as crianças foram obrigadas a engo-lir nas escolas. Tomaram o poder e quiseram controlar nossas mentes e, logo depois, podar todo tipo de informação com o Decre-to de Censura. Mas quem atirou as primeiras bombas? Quem derramou o primeiro sangue? Quem era o invasor? Depois, a ditadura foi derrubada, mas as sementes existem, como seu professor.
Erasmo quis lhe perguntar se descendia de antarticanos, porém não teve coragem. Observou-a lançar mais algumas achas na lareira. Fagulhas voaram, e a chama fortalecida aumentou a lumi-nosidade na sala. A sopa começava a fumegar, e o aroma chegou até ele, perturbando seus pensamentos. Viu o perfil rígido da mulher. Sua súbita mudança de temperamento o deixara surpreendido. Como podia uma mesma pessoa ser simultaneamente tão delicada e tão feroz?
- Hã... Fo... Foi por causa da poeira que a neve ficou cinzenta?
Aurora percebeu a mudança no ar e tornou a sorrir.
- Em parte, penso que sim - murmurou, limpando as mãos. - Mas já nessa época os níveis de poluentes haviam alterado muita coisa. Acho que a cor da neve também, embora não nevasse por aqui até então.
"Não foram poucos os políticos e militares que lamenta-ram o desarmamento nuclear ocorrido anos antes. Queriam uma guer-ra ainda pior. Queriam o fogo ao gelo. Salve o Homo sapiens!"
Os biscoitos haviam terminado, e o resto de leite no copo esfriara. O vento uivou assustadoramente pelas frestas da janela quebrada e o papelão. "Pequenino! Pequenino!", chamaram os espíritos da neve. Erasmo nem prestou atenção. Ficou absorto com alguma coisa.
- Então...
- Sim, Erasmo, diga - incentivou Aurora.
- É possível que um dia a poeira acabe de cair do céu e a neve volte a ser branca outra vez. E que o Sol surja, derreten-do a neve, fazendo voltar o mundo de nossos avós.
- Pode ser que sim. Mas eu não ficaria muito contente com essa perspectiva, ao menos no princípio - alertou Aurora.
Erasmo estranhou.
- Por quê?
- Muita coisa triste se oculta sob as crostas profundas de gelo. Bem piores do que o pássaro que você encontrou. Coisas que as novas gerações desconhecem e as velhas não querem se lem-brar.
Assim, ele compreendeu. Aurora foi a primeira pessoa a lhe dar a verdadeira dimensão do horror da guerra e suas conseqüências. A guerra que ele julgava recheada de feitos heróicos e aventuras em terras desconhecidas. A guerra vencida por um Davi glacial contra o Golias mundial. O surgimento de uma nação-continente onde, agora, as principais decisões do mundo eram tomadas.
A sopa completou sua sensação de bem-estar e segurança.
O sono chegou depressa, entretanto, foi tumultuado por visões de pessoas gritando sob seus pés, enclausuradas no gelo. Reconheceu seus pais entre elas e nada pôde fazer para libertá-los. Seus dedos machucavam no gelo e, a cada pedaço que conseguia tirar, vinha uma escavadeira e atirava uma chuva de fragmentos. Bombas explodiam por toda parte. O mundo era feito de fogo e gelo.
Nos dias que se seguiram, passada a tempestade, Erasmo a visitou muitas vezes. Sempre arrumava um pretexto.
- Pára de amolar a moça - chegou a dizer vovó Ernestina.
- Estou precisando de ajuda em matemática, vó.
- Sei, sei, esqueceu-se de quanto é dois mais dois? Ih! Ih! Ih!
- Ô, vó!
- Arre! Vê se volta logo. Ah, leva este pedaço de bolo para ela. Cuidado para não derrubar no caminho.
Quando foi o momento exato que ele se apaixonou por ela era fácil responder: foi quando a viu sob a luz da lareira, e os reflexos dourados nos cabelos negros atingiram seus olhos num penetrar de setas.
Quando foi o momento exato que ela passou a correspon-der, isso, provavelmente, nem ela saberia determinar.
Relutante, ela concordou em ir com ele ao museu numa manhã amena, em que a neve caía pequenina, praticamente na verti-cal. Não estava muito frio, os galhos dos abetos não se mexiam, mas Aurora colocou um gorro inteiriço na cabeça de forma que somente os olhos e os lábios ficaram à mostra. Nem no interior do museu o tirou, deixando Erasmo intrigado. Ele nada perguntou. Quase não havia movimento, e se dirigiram sem pressa até uma caixa de vidro.
- Columba livia - leu Aurora. - Que lindo!
O peito de Erasmo encheu-se de orgulho, e não era para menos. O taxidermista realizara um verdadeiro milagre. O pombo parecia vivo e prestes a alçar vôo. De asas abertas, os olhos de plástico fitavam o alto da caixa num anseio mudo e eternamente congelado. Uma pequena placa, além de dados sobre o animal, in-cluía um último parágrafo que foi lido em voz alta por Aurora:
- "Descoberto pelo Sr.Erasmo Marcolin de Pádua nas cer-canias do córrego Franquinho, Vila Vera (SP)". Veja só, meu se-nhor, está famoso!
- É, estou mesmo - respondeu no mesmo tom. Puseram-se a rir, atraindo olhares carrancudos.
Viram ainda relíquias do conflito, como destroços de armas, pedaços de latões com marcas de balas, bandeiras e uma granada de nitrogênio líquido utilizada pelas tropas antartica-nas. Um filme mostrava a reconstituição de uma batalha ao som do Hino Nacional. Aviões cruzavam a planície gelada do pólo em alta velocidade, descarregando dúzias de bombas. A neve gemia. Tropas marchavam altivas. Jatos duelavam entre as nuvens. Imagens que antes teriam fascinado Erasmo, agora despertavam apenas pesar.
Gradualmente, ela foi perdendo aquilo que Erasmo julgava ser um excesso de timidez. Não deixou de lado uma certa dose de cautela, mas já não a impedia de sorrir e se divertir.
Andaram pelas redondezas do vilarejo, pelas colinas, pelos rios congelados, pelos campos vazios. Ela viu o local exato da descoberta de Erasmo, patinou pelo córrego com habilidade e construiu bonecos de neve com narizes de rabanetes. Ele esquiou a seu lado, escondeu-se dela, atirou bolas de neve em seu dorso. E quem os visse andando de mãos dadas pensaria imediatamente em dois irmãos queridos, a mais velha levando o mais novo a passear, e voltaria para casa sentindo uma pontada de inveja.
Inveja.
"Por um lado a invejo. Tudo o que viveu, sentiu e com-partilhou. Chego a invejar também o seu silêncio, sua imutabili-dade, sem envelhecer durante tantos anos. É como um sonho que toda mulher deseja ver realizado, e você conseguiu. Não sei dizer se a compreendo, se teria a coragem que você teve e desafiar o tempo como fez. Mas sei que a admiro. Contudo, por outro lado, como todo sonho, chega o dia do despertar, o dia de encarar tudo frente a frente. Se fosse eu, não sei se suportaria.
"Se pudéssemos voltar no tempo tanto quanto podemos pará-lo! Se pudéssemos torcê-lo, alterá-lo, modificar suas regras tanto quanto decidimos sobre o destino futuro das coisas. O que está feito, está feito. Aconteceu. É o momento de acordar. É o momento do sonho acabar."
Conferiu os dados na tela. Estava tudo em ordem. Digitou uma ordem, e a impressora ao lado começou a matraquear. O cabeça-lho saiu com as familiares letras góticas: "CENTRO HOSPITALAR PENHA-CANGAÍBA/ATESTADO DE ALTA".
- Esta é a minha avó Ernestina.
- Prazer, senhora.
- Prazer, filha. Tenho muito que lhe agradecer pelo que fez por Erasmo.
Aurora meneou a cabeça.
- Não, eu...
- Tenho sim. Vamos, vamos almoçar - disse ela.
Vovó Ernestina não era nascida ontem, e logo percebeu o brilho especial nos olhares de ambos. Limitou-se a suspirar. À noite, disse para o neto antes de ir se deitar:
- A guerra impôs novos ângulos para encararmos o mundo. Aqueles que se julgavam certos estavam completamente errados. Todos os valores são falsos, exceto aqueles que vêm do coração. Quem pode afirmar com certeza o que é cinza e o que é branco?
Erasmo, na cama, apoiou-se num dos cotovelos.
- O que achou dela, vó?
- É uma boa moça e sabe de muita coisa. Mas...
- Mas o quê? - perguntou, tenso pela pausa.
- Mas existe alguma coisa de triste nela, no seu jeito, mesmo quando mostrava bom humor.
Erasmo descontraiu-se.
- É, eu sei.
- Sabe?
- Não, eu sei que é triste, mas ainda não descobri o motivo da tristeza. Não tive coragem de perguntar.
- Nem deve. Para tudo se tem um tempo. E se tem uma coisa de que ninguém precisa é de gente abelhuda. Devemos apreci-á-la pelo que ela tem a oferecer. É uma bela moça e tem um bonito nome.
- É sim - emendou Erasmo, feliz.
- Boa noite - disse a velha sob o umbral da porta.
- Boa noite, vó.
No lamuriar dos gonzos, a porta foi fechada.
Dois meses se passaram até ele poder ver o âmago há muito enclausurado. Tinham acabado de esquiar e estavam sentados num tronco de pinheiro duro feito rocha. O ar quente saía de suas bocas em fiapos delicados que logo eram dispersados. O céu era de um cinza claro uniforme, quase branco. No sopé de outra colina, podiam ver um grupo de crianças brincando. Os risos chegavam abafados pelo vento.
Aurora usava um casaco com capuz que a fazia parecer uma esquimó. Sua calça era preta e de tecido grosso, e as botas, também pretas, por pouco não atingiam os joelhos. A roupa de Erasmo não era menos leve. Apesar do capuz de esquimó, ele estava surpreso por vê-la sem aquele gorro de lã parecido com uma másca-ra. O rosto alvo sobressaía-se belo por entre a auréola de pêlos carmesins.
Ela narrou com naturalidade o segredo que a fazia tremer cada vez que alguém batia à sua porta ou quando se via diante de estranhos. Falou pausadamente, enquanto seus olhos mudavam-se das crianças para o céu encoberto.
- Há um ano aproximadamente eu estava noiva. Era um homem formidável, muito bom para mim. Eu o amava, e íamos nos casar. Uma noite, ele começou a passar mal sem motivo. Febre. Distúrbio no sistema circulatório e muscular. Levei-o para o hospital o mais depressa que pude. Custaram para me dizer o que ele tinha. - Fez um breve intervalo.
Erasmo pôde vê-la tentar sentir o anel de ouro através das luvas.
O vento parou de soprar. Os risos tornaram-se mais for-tes.
- Ele adquiriu um vírus geneticamente alterado. Acredito que tenha escapado do laboratório onde foi fabricado e permaneceu inativo durante décadas no frio. Talvez tenha sido reanimado durante o degelo nos reservatórios de água, não sei. O que tenho quase certeza é que deveria ter sido uma arma biológica a ser utilizada contra a Antártida, mas não foi desenvolvida a tempo.
"Os médicos bem que tentaram. Não conheciam nenhuma cura. O melhor que disseram é que poderiam prolongar sua vida durante meses por meio de drogas. A velha conversa... E fico me perguntando se, ao menos daquela vez, eu não deveria ter-lhes dado ouvidos. Perguntei-me tantas e tantas vezes..."
Erasmo ouviu o soluço engasgado e se aproximou. Ela ergueu a mão, fazendo um sinal que estava tudo bem.
- Eu o matei, Erasmo, eu o matei. Ele sorriu para mim ao me ver desligar os aparelhos que o conservavam com vida. Devolvi o sorriso, sabendo que uma parte de mim também perecia.
"Seus parentes não entenderam e, ainda que compreendes-sem, fingiriam o oposto. Não os culpo por isso, entretanto, tam-pouco me julgava errada. Eu o amava mais do que qualquer coisa nesta vida, acreditasse quem quisesse.
"Então eu fugi. Sou uma fugitiva da polícia."
Erasmo viu sua expressão mudar e somar amargura à tris-teza. Mais um riso atravessou a distância.
Aurora continuou:
- O destino quis que, mesmo nesse canto isolado, eu ficasse sabendo... Posteriormente, foi implantado no país um processo de criogenia desenvolvido pelos antarticanos, seguido dos primeiros sinais de uma cura para o mal dele. Como poderíamos saber? E eu fico me perguntando, perguntando, perguntando. Ele poderia ter sido congelado, salvo até... Senhor, fizemos nossa escolha e perdemos. Eu perdi... eu o perdi. - E desligou os olhos do céu.
Erasmo viu a lágrima correr e não soube dizer nada. Que alívio poderia lhe dar? O ciúme que tomou conta do seu peito apenas piorou seu mal-estar. Não estava sendo justo com ela e nem consigo, todavia, era humano; era um humano jovem, tolo e apaixo-nado, incapaz de compreender e consolar. E ali estava ela, tão pertinho, mas inalcançável dentro de um mar de recordações. Uma parte dentro dele ficou imaginando quanto tempo levaria até a lágrima se transformar em gelo.
- Mas tudo isso ficou no passado - murmurou Aurora por fim. - Adoro você, meu pequeno. - Levantou-se, limpando a neve da calça.
- E eu adoro você, Aurora... - disse, imitando-a. Era impossível pronunciar seu nome sem deixar seguir uma pausa, por mais curta que fosse. Ajeitou os esquis.
- O que poderemos fazer?
- Não sei. Gostaria muito de saber.
Aurora vacilou por um momento. Virou-se para o horizonte à frente, inspirou profundamente e chegou a uma conclusão.
- Podemos viver. - Seus olhos sorriram, e ela mergulhou colina abaixo.
- Espere por mim!
Os risos foram interrompidos e as crianças fugiram as-sustadas dos esquiadores malucos. Xingaram um bocado.
E esse foi o dia em que um menino, à luz de uma lareira, deitou, recebendo e dando calor. Foi o dia da descoberta, do esgrimir de toques, do entrelaçar de músculos. Foi o dia da transformação e o acordar de um novo eu.
Estava pensando no ato de amor. Seus olhos continuavam fixos na mulher de néon a levitar sobre a mesa de cerâmica. Havia pequenos redemoinhos circulando por todo corpo sem, todavia, conseguir perturbá-la.
- Fixe o gradiente de restauração, enfermeira.
- Gradiente fixado - respondeu.
Luzes de diferentes cores brilharam no painel. Dr.Paulo grunhiu de satisfação.
- Iniciar decaimento da densidade magnética.
- Pronto - disse um dos assistentes. - Registro normal.
Pesadelos cromáticos inundavam o laboratório.
Seus músculos estavam tensos. Estava pensando no ato de amor. Aurora era um fantasma laranja. Cenas corriam. Fincou as unhas da mão no outro braço, mordeu o lábio inferior. Queria gritar até estourar os pulmões.
- Agora é só questão de tempo - disse Dr.Paulo.
Erasmo quase gritou.
Dentro da jaula magnética começou uma tempestade. Os redemoinhos tornaram-se maiores e em maior número. Um bando de feras esforçando-se inutilmente para escapar da prisão. Ventos interiores sibilaram para ele: "Pequenino, pequenino, em qual jaula ruge a maior das tempestades?" Levou a mão ao peito. Trovões ribombaram a intervalos regulares. "Em qual jaula?", insis-tiram as criaturas de néon.
- Calem a boca - respondeu baixinho.
Os trovões prosseguiram, alimentando a tempestade.
A tempestade ameaçava retornar naquela manhã quando, inesperadamente, ela foi procurá-lo. Fora localizada. Através do rádio, captara uma voz metálica dizer a outra para ir com a via-tura até o vilarejo, levando um mandado de prisão.
A primeira impressão de Erasmo foi a de que ela estava calma, calma demais diante da perspectiva inconcebível de uma separação. Enganara-se quanto à correspondência de sentimentos? Nada havia significado o ocorrido no dia anterior? Não, ele esta-va errado. O desespero injetou adrenalina. A adrenalina agiu como combustível e, no trajeto até a casa de Erasmo, ela havia pensado em algo. Agora, a sós na varanda, ela comentou aquilo que julgava ser...
- ... um plano perfeito. Algo que sempre esteve diante de nós e não pensamos.
- O quê? - indagou, remexendo-se no balanço.
- A neve, o congelamento.
- Como assim?
A aparente calma de Aurora era exasperante. Abaixou o capuz esquimó e colocou a mão pequena do menino-adolescente entre as suas. Seu rosto estava lívido qual um boneco de neve.
- Irei até o hospital - falou pausadamente. - Lá, eles me colocarão em hibernação criogênica e permanecerei assim por alguns anos... quinze... dezesseis... até...
- Não! - protestou Erasmo. Retirou a mão e fitou-a hor-rorizado. A idéia era um absurdo, assustadora, pior do que qual-quer nevasca.
- Sim, Erasmo, meu pequeno querido. Não percebe?
- Não, não percebo coisa alguma, além de não querer ficar sozinho.
O vento gemeu do outro lado da vidraça. Um caminhão sobre lagartas atravessou o campo de visão, apressado. A trilha paralela foi sendo rapidamente coberta pelos flocos cinzentos.
- Psiu! Não diga esta palavra, "sozinho". Eu estarei sempre perto de você.
Erasmo não ouviu.
- Podemos fugir!
- A adolescência é uma etapa fascinante, tão cheia de sonhos e desejos... Já fugi o suficiente para saber que nem tudo o que almejamos é possível. Comprometê-lo é a última coisa que desejo. E você tem sua avó para ajudar, pense nisso. Precisamos conservar os pés no chão, infelizmente, Erasmo.
"Teremos atingido dois objetivos de uma vez. Até lá, até o meu descongelamento, terão deixado de me procurar. No momento não há segurança em lugar algum, muito menos aqui na região. Entretanto, daqui a cerca de quinze anos nem se lembrarão mais de mim. Sem contar que, então, meu senhor - tentou sorrir -, terá idade o bastante para que não pensem que sou uma devassa."
- Ao diabo o que os outros pensam. Porcaria!
Aurora sorriu de verdade.
- Também acho, porém de nada adiantará se eu for presa. Houve momentos em que pensei em desistir de tudo, mas por mim e por ele, por aquele a quem amei, não posso aceitar ser detida pelo motivo que alegam. E, agora, há você, meu menino.
"Não, não há mais tempo. Quantos meses ou semanas mais poderei viver despercebida, sempre à espera de ver minha porta arrombada?"
- Eu terei 30, 31 anos - refletiu Erasmo, cabisbaixo.
- Será um homenzinho! Se eu não me congelasse, estaria com 45. Seria uma velha coroca blasfemando a toda ora sobre minha artrite. Ao invés disso, teremos aproximadamente a mesma idade e uma vida toda a nossa espera.
Ele riu, era um riso estúpido, sabia. Por que ria se queria chorar? Para provar o quão era forte, o quão era homem? "Porcaria! Estúpidos, um; homens, zero", pensou, abraçando-se a ela.
- Farão perguntas no hospital.
- Eu sei. Melhor será um hospital do governo. O dinheiro certo na mão certa é capaz de qualquer coisa. Conseguiremos. Você me esperará?
- Aurora... Eu sempre esperarei você. Irei visitá-la todos os dias, todas as semanas, sempre. Concluirei os estudos. Trabalharei. Acho que não conseguirei ser astronauta... Entrarei para uma academia de boxe também.
- Como? - inquiriu, a testa franzida.
- Nos dias que não for visitá-la - explicou -, terei de ficar esmurrando alguma coisa. Senão, ficarei doido!
- Ah! Querido, meu pequeno querido.
Calados, ficaram por muito tempo observando a neve pou-sar nos pinheirais, na rua, no jardim. Ela cobria camada após camada como os anéis de uma árvore a registrar as eras. Páginas de uma história não contada, perdendo-se na vastidão daquele mundo sem cores.
Vovó Ernestina aproximou-se para lembrar Erasmo da aula. Sem ser percebida, observou os dois no balanço, as faces conti-das, as mãos unidas com força, o olhar sumido no vazio. Deu meia-volta e retornou para o seu tricô.
Como uma lenda antiga, ele a viu mergulhar num sono profundo. Era um sono gelado que beijo algum a despertaria. Era o sono da vida e da não-vida. Um sono onde os sonhos, se é que existiriam, falariam de lugares cobertos de geleiras, de tundras, de mantos de neve cinzenta transformando-se em gelo sob a pressão dos milênios. E, nesse lugar, nada mais haveria, nem mesmo o tempo. Para todos os efeitos, o calendário deixaria de existir.
- Não se preocupe - tranqüilizou o médico, um rapaz cujas sobrancelhas faziam lembrar um par de taturanas. - Ela estará bem - acrescentou, comovido.
Erasmo sequer piscou, sequer moveu os lábios. Viu o corpo de Aurora flutuar magicamente a meio palmo da mesa, simul-taneamente ao brotar de uma neblina branca e leve como os trajes que ela usava. E só depois do casulo gasoso estar completamente formado, foi embora do hospital. Do lado de fora, recebeu as rajadas gélidas de ar, mas suas faces queimavam. A passos vagaro-sos, atingiu o portão de grades em arabescos. Mudas de ciprestes tinham sido plantadas havia pouco tempo e faziam fila ao redor do terreno. Por um momento, tal imagem fez com que se lembrasse de um pelotão em guarda no território antártico como vira no filme. Ouviu a voz de Aurora falando da guerra e dos tempos anti-gos. Tentou pensar num mundo livre da Nova Era Glacial e não conseguiu, soou pura fantasia. Na calçada, fitou o edifício do Centro Hospitalar Penha-Cangaíba. O emblema da rosa envolta por uma serpente estava protegido por uma cobertura em arco. Dezenas de janelas brilhavam numa luz amarela, um monstro de muitos o-lhos. Apertou o anel de ouro na mão, tirou a luva da mão direita e o colocou no dedo mais grosso. Muito tempo se passou até ele deixar de cair.
"Eu sempre esperarei você."
Telas exibiam dezenas de imagens, imagens se alternavam, imagens entravam em close, diagramas piscavam, hologramas salta-vam, vozes de vídeo game reverberavam pelas paredes.
- Temperatura subindo, Dr.Paulo. Está a -150ºC.
- Ótimo. Conserve este nível de elevação.
- Sim, senhor. - Os dedos da enfermeira Márcia bailaram no painel de arco-íris. Seus olhos de serpente refletiram as cores.
"Eu sempre esperarei você."
- Batista.
- Pronto, doutor.
- Muito cuidado agora com o decaimento da densidade magnética. Ela só poderá tocar a mesa no instante exato.
O assistente moveu a cabeça afirmativamente.
- Sei como se sente, rapaz. Sei como todos vocês se sentem. Também fiquei assim na minha primeira reanimação.
A névoa mudou de laranja para vermelho. A tempestade aumentou de intensidade, uma borrasca de sangue. O zumbido no ar aumentou de freqüência para um agudo incômodo. Relâmpagos brilha-ram dentro da nuvem. Aurora permanecia indiferente. Quase sorria.
"Eu sempre esperarei você."
- Temperatura agora a -74ºC. Cromatógrafo neural está-vel, sem nenhum registro. Decaimento da densidade magnética nive-lado em um sexto. Gradiente de restauração mantendo-se em 26,10, dentro do estabelecido.
O vermelho se transformou em azul. Alquimia magnética. Fogo e gelo em combate. Redemoinhos, redemoinhos, redemoinhos.
- Temperatura a -13ºC.
Aurora se moveu. O corpo abaixou lentamente, aproximan-do-se da mesa. A tempestade se estabilizou.
"Eu sempre esperarei você."
- Ponto de fusão atingido. Gráfico fisiológico preparado para mostragem de reações. Densidade programada para pouso.
As cores modificaram-se novamente, retrocederam: azul, vermelho, laranja. A tempestade converteu-se em calmaria. Relâm-pagos desapareceram por encanto. O zumbido voltou a ser grave. Havia um odor penetrante no laboratório.
Cena de amor diante dos seus olhos, embaçando-lhe a mente. Corpos úmidos e brilhantes camuflados pelas sombras, som-bras movediças em murmúrios. Um feixe de luz caiu sobre o rosto da mulher. Trazia uma expressão de dor, mas não sofria.
"Eu sempre amarei você... Minha querida, minha pobre querida, 'sempre' é tempo demais."
Era um rosto diferente do rosto de Aurora.
A névoa voltou a ficar esbranquiçada. Mechas de cabelo se moviam num suave desalinho. Tocou a mesa de cerâmica.
- Temperatura aumentando para 9ºC. Cromatógrafo neural passando a denunciar atividade. Ainda está muito fraca, residual.
- E quanto ao pouso, Gil.
- Pouso normal. Nenhum problema, Dr.Paulo.
- Excelente.
Erasmo de pé no canto do laboratório, a mão comprimindo a outra, querendo esmagá-la. Sua aflição tinha aumentado num ritmo louco, como aquelas luzes nos painéis e nas telas dos com-putadores faiscando de forma incompreensível. Os últimos dezes-seis anos estavam desfilando diante dos seus olhos sem qualquer controle, sem ordem cronológica, sem coisa alguma.
Ao longo dos anos ele mudou, por mais que quisesse se convencer do contrário, por mais que se recusasse a acreditar. Completou a adolescência, entrou na mocidade e tornou-se homem. Semanalmente a visitou em seu "manto de bruma", conforme chamava. E sempre obteve como resposta aquela expressão serena, os lábios formando o esboço de um sorriso, aguardando. "Eu sempre esperarei você. Durma bem, Aurora...", tinham sido suas últimas palavras.
Ele foi mudando. Seu amor adolescente, sua paixão meta-morfosearam-se. Seus pensamentos adolescentes tornaram-se pensa-mentos de homem, diferentes daqueles que tinha.
- Registro de temperatura indica 30ºC. Gráfico neural aproximando-se do normal. Batimentos cardíacos elevando-se rapi-damente. Funções orgânicas controladas pelo programa principal. Respiração acelerando.
- Prepare a adrenalina e o oxigênio.
- Entendido, doutor - respondeu a enfermeira.
- Está quase pronto, Sr.Erasmo - disse o médico ao mirar o semblante angustiado daquele homem. - Está tudo bem. Não há com o que se alarmar. Foi uma longa espera para o senhor. Se isso pode lhe servir de incentivo, considero-o um ser humano admirável - disse o médico.
Dr.Paulo viu Erasmo sorrir sem jeito e, finalmente, aceitar se sentar na cadeira estofada, perto da porta de vidro. De cabeça baixa, este revirou um dos bolsos do casaco de couro sintético e dele tirou algo: o anel.
"Como é que vou lhe dizer?", perguntou-se. O remorso o consumia. Girou a cabeça e olhou para além da porta de vidro. Do outro lado do corredor, como se fosse dotada de telepatia, a enfermeira Eva, cujo nome lembrava bula de remédios, ergueu a vista do atestado de alta, acenou e soprou um beijo inseguro. "Como é que vou lhe dizer?" Quase podia ouvir o espectro irado da avó, retrucando: "Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso!"
Ele precisava contar. Era o mais justo a se fazer, o mais honesto, embora de modo algum lhe soasse o mais digno.
A névoa foi desaparecendo, dissipando-se. O zumbido e os diversos ruídos foram morrendo, afogando o laboratório num silên-cio pesado e frio. Uma voz trovejou:
- Temperatura normalizada. Batimentos cardíacos estabi-li-zados. Funções cerebrais e fisiológicas normalizadas. Respiração regular. É a qualquer momento.
Ele tinha de contar antes que a tarde chegasse ao fim, como aquela outra tarde havia muito tragada no turbilhão do tem-po. Precisava dizer através daquele rosto e da suavidade da-quele semblante que o amor eterno, tão convictamente jurado, não mais existia. Dissolvera-se calidamente com a adolescência, como a neve de maio a cair lá fora. E tanto hoje quanto há dezes-seis anos, ele se sentiu irremediavelmente perdido.
As pálpebras de Aurora se levantaram. Procurou, procu-rou, procurou... e reconheceu. Da garganta recém-descongelada, sua voz rouca e cheia de ternura sorriu numa melodia:
- Ah, querido, meu pequeno querido.
NOTA DO AUTOR:
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