O SACO (do livro O JUIZ E OUTROS CONTOS)
o saco
COM o volume de entulhos e trastes incoerentes jogado nas costas acompanhando seu gingado, o anão pardo, olhos patagônicos, cumpre seu itinerário cotidiano, alheio aos desencantos políticos e aos desastres econômicos do arraial. Conversa -sussurrando indecifrações- com os pássaros, as borboletas, as árvores e os animais.
O seu linguajar estranho lembra, às vezes, um som glacial há muito esquecido pelos ouvidos do Homem.
Sempre ao pôr-do-sol, senta-se num barranco do rio represado e os peixes vêm à tona e conversam com ele, formulando- quase sempre- queixas ecológicas contra o desaguamento de dejetos fecais em seu meio ambiente. Ele gunguna qualquer coisa que não se entende e os aquáticos saltitam, numa borbulhante demonstração de seu contentamento.
Jamais se conseguiu descobrir o conteúdo do saco que leva às costas. Percebe-se apenas ser duma substância macia como a dos tecidos amarrotados, assim como se fossem máscaras recolhidas ao fim de algum baile a fantasia de eras remotas.
Uma profusão de cordéis e amarrilhos fecha hermeticamente a boca encardida do grande embornal, formando uma espécie de cabo que o pequeno Mutuquinha não solta em hora nenhuma.
Presume-se, todavia, que à noite, quando mergulhamos nos sonhos, então sim, ele abre o depositório de seus segredos, pois, no silêncio de sua choça se ouve nessas horas um burburinho formado de risadinhas esganiçadas, rugidos surdos, xingatórios incompreensíveis e cantigas mortas que se prolonga até o nascer do sol.
Em certo anoitecer, um homem de cor, aproveitando-se de sua fragilidade e natureza pacífica, tomou-lhe à força o enigma ensacado e fugiu, indo satisfazer a curiosidade longe de seus impropérios guturais...
Muitos dias depois, do negro, encontraram apenas a pele já seca, esticada por meio de varas verdes, perto do Matadouro Municipal, dependurada numa grande árvore onde os magarefes, ainda hoje, põem a secar os couros das reses abatidas.
De carapinha, que não foi separada do corpo, os urubus comeram uma terça parte dos miolos e as formigas sugaram os olhos liposos.
Ninguém pensou culpar o homenzinho, uma vez que, depois do furto, nada estancou a torrente de seu choro infantil e seus lamentos se tornaram tão ruidosos que a população de Coivaras não dormiu enquanto ele chorou, sem parar, durante dez dias.
Sua palhoça, nessa ocasião, se coalhou de curiosos tentando consolá-lo, penalizados com aquele arremedo de gente -nem criança nem adulto- chorando sangue quando se acabaram suas reluzentes lágrimas de vidro.
E lá sentia-se, pelo arrepio dos pêlos e pelo zumbido contínuo, a presença invisível de inúmeros seres murmurantes, compartilhando a aflição do pequeno roubado.
Borboletas multicores enfeitaram as paredes sem reboco, se revesando em revoadas ininterruptas; vagalumes incontáveis forraram o teto durante as dez noites do pranto-anão, piscapiscaluzindo iluminação esverdeada no ambiente ladrilhado pelas lágrimas, onde o chão se recobriu de peixinhos de cristal translúcido que refletiam o colorido das borboletas, as luzes dos pirilampos e o escarlate do plasma, inaugurando maravilhosos espectros ainda desconhecidos à visão humana...
No nascente do décimo dia, milhares de pássaros se dirigiram rumo Norte, numa formação tal que lembrava a rigidez marcial das esquadrilhas aéreas.
À tardinha, os que estavam presentes viram e aclamaram a chegada triunfante da mochila que veio planando da direção da Serra do Pico do Cão, trazida pelos amigos alados de Mutuquinha e pousou suavemente em seu quintalzinho de brinquedo.
Só aí sua mágoa terminou e ele sorriu...
Nessa hora, então, seu rosto se iluminou duma tal maneira que ofuscava a vista de todos e, num crescente resplandescimento, numa transparência de asceta em êxtase, ele levitou por longos minutos.
Subitamente, emitindo um urro de alegria ensurdecedor, fez abrir, no centro da casinha, uma cratera sem fundo que, exalando gases intoleráveis, tragou tudo o que se encontrava ao redor, num raio de três metros e quinze centímetros.
Dos curiosos que sobreviveram, nenhum conservou intactos os tímpanos e depois disso nunca mais alguém voltou ao casebre.
Isso foi na véspera do achado do couro seco de Zoé Caolho, aberto e espichado segundo as normas elementares do aproveitamento da pele bovina, que foi reconhecido graças à cicatriz duma pálpebra intacta: a mesma que lhe originou o apelido. Ninguém mais ousou, sequer, tocar o saco encardido.
Ele voltou a perambular pelas ruelas poeirentas carregando nas costas o fardo enfeitiçado de sua solidão...
Mas, na mente e no peito de cada coivarense ficou uma certeza após esses acontecimentos: quando o Mutuquinha achar que é hora e resolver terminar com a farsa da demência inofensiva e despir os trajes da mendicância e assumir sua real condição de Duende Guardião do Tesouro Mineral de Itaniope e, por fim, do alto da torre da igreja matriz, libertar o mistério lacrado por cordilhos e amarréis, o lugarejo se tornará encantado e todos conviveremos, felizes, com toda sorte de silfos, duentes, sacis, bruxas, ogros e dragões oriundos dos contos de fadas ouvidos na infância e perdidos nos meandros do esquecimento humano...