O PERSONAGEM
o personagem
O homem já comprara de outra vez, uma “queimada”: ilustrava o artista a devastação duma floresta pelo fogo.
A pintura certa manhã desapareceu. Apenas um chamuscado na moldura e cinzas no rodapé, indicaram-lhe que a “queimada” se consumara, em certa época, em outro espaço.
O realismo do quadro o encantou: o novo trabalho, alvo de suas atenções, mostrava um músico executando ao piano uma melodia de Palmares.
O porte do personagem o cativou. O estilo, as pinceladas miúdas e o brilho da composição pictórica eram extraordinários. O sapato sempre reluzente e as unhas bem cuidadas do pianista ressaltavam à vista.
O pano de fundo do palco, onde era instalado o piano, era dum lilás de mau gosto. Mas, posto que reformado, o piano de cauda era perfeito. A música, o antiquário supunha audível, num segundo de silêncio total.
Os cabelos grisalhos do pianista pareciam despenteados na hora do instantâneo pictórico. Um candelabro de prata, numa extremidade do piano, produzia sombras perfeitas nas várias direções captadas pelo exímio pintor que, no canto inferior esquerdo do quadro, assinara Salles Dounner.
O homem ficava horas contemplando o velho do quadro na parede e este lhe parecia duma antigüidade diluviana.
À tardinha, os pentes da casa se agrupavam no sofá da sala, após o banho das poltronas e ficavam ali, mirando embevecidos os cabelos em desalinho do personagem.
O espanador do antiquário, toda manhã, tirava o pó do piano. Este, ao mais leve contato, despertava preguiçosamente, distendendo as cordas musicais.
Quando numa noite de inverno faltou energia elétrica em Coivaras, o dono da casa não se surpreendeu com a tênue claridade do vestíbulo: o candelabro da composição continuava iluminando em várias direções, incluindo os móveis da sala, a televisão turista, os abajures em desuso e os velhos cinzeiros de cristal.
Era cristalina a perfeição do quadro. As notas que tirava das velhas cordas soavam límpidas. Sobre o instrumento, as velas do candelabro da tela se consumiam, como em certas fogueiras determinados bonecos humanos se autodestroem.
Terminado o número, o pianista levantou-se lentamente da banqueta aveludada, guardou suas músicas escritas em papiros, fechou o piano de cauda, ajeitou os cabelos e desceu da tela, apoiando-se na grossa moldura trabalhada.
Era o velho de uma solidão permanente, vinda de festas reais que não mais lhe importavam. Tinha em si vários ideais sepultos, várias mensagens naufragadas e inúmeras arcas de incertezas. O dono da casa, ao cumprimentá-lo, notou seu cansaço.
A posição em que foi pintado, deixara-o com os rins afetados e as mãos dormentes. Indicou-lhe um urologista da cidade vizinha, pois Coivaras não tinha médico.
Quando o velho ia saindo - tinha atingido seu tamanho normal - o homem desamarrotou seu fraque e entregou-lhe a cartola.
Depois, esgotada a parafina, o candelabro negou sua luz e a sala, rescendendo a submarinos, mergulhou na escuridão.
O dono da casa continua esperando seu retorno, como esperou durante muitos anos o retorno de seu capataz Perseu. O piano de cauda, fechado, está empoeirado com seus remendos à vista. A silhueta branca do personagem ausente ficou delineada no feio lilás do pano de palco.
Na gaveta, o quadro desafinado permanece praticamente morto.
1973